Tributo ao Cacique Seattle da Tribo Duwamishi
Airumã não dormira aquela noite. Olhos
fixos no manto negro defraudado. Acabaria por testemunhar um azul cobalto, fluindo
pelos flancos do mundo, se insinuando sob o negrume dum céu profundo,
misterioso, empoeirado de estrelas. Pra em seguida vê-lo rasgando-se em nesgas
de amarelo de cádmio, transmutando-se em etéreo lúmen matinal. E eis que era
dia. O índio entrou na oca, e acordou sua filha Manacy. E dariam de iniciar uma
marcha. Pés desnudos seguiram, lentamente seguiram. E era aquele avançar como passos
de um par de bailarinos talhados no ébano. O sentido da audição dava de captar mavioso
canto de jandaias e calopsitas saudando o dia. Exuberância de ópera regida pela
mãe natureza. E a paz proporcionada naquele pedaço de chão, não combinava com a
inquietação que ia, no coração aflito, encerrado dentro do peito do índio. E lentamente
avançavam, rumo a um destino. Destino de índio. No farfalhar de asas duma
borboleta habitava trágica verdade de Manacy. A luta primeira que travavam era
consigo mesmo. Infelizmente alguém morreria.
O índio, e sua filha, vistos
assim, embrenhados de imensa mata, assemelhavam-se a Minotauro e Ariadine no
labirinto de Dédalos. A mata e os índios tinham uns aos outros por companhia. O
índio, a índia, a mata conversavam conversa muda. E abraçavam-se, numa troca de
carinho, e caricias de amantes. Olhos de lince captavam movimentos, os mais
sutis. Como o piscar de uma coruja, escondida no oco de uma árvore. Uma
tarântula que se aventurava na busca de uma presa, podendo naquele mesmo
empreendimento ser predada. Respirações compassadas. Atos reflexos, pra captar o ambiente, o
perfume das flores. O adocicado cheiro da seiva das plantas, fluindo por dentro
dos vasos lenhosos. Levando a boca vez outra, uma folha pra desfrutar o sabor
de seu sumo. O cheiro de húmus revirado nas entranhas do solo, subia até as
narinas dilatadas. Gravetos, seixos pontiagudos pareciam desviar-se, dos seus
pés dando-lhes passagem. Airumã, braços titânicos, tórax largueado, de potentes
músculos elevava o corpo de Manacy no ar, para livrá-la duma planta urticante.
Esquivavam-se para não tropeçarem nas inflorescências recém brotadas, nos
escaravelhos, em suas expedições matinais. Enquanto formigas, apressadas
arquitetavam planos de armazenarem suprimentos de alimento, junto as veias e
artérias da mãe terra.
Airumã deu de iniciar antigas lembranças.
Recordava-se do tempo de curumin, de como achava sem graça, ser uma criança
indígena. E de como achava humilhante pra um futuro guerreiro, as obrigações
com as mulheres, ter que fazer serviços de menina. Pegar água pra os serviços
da oca. Mas tinha também o lado bom, subir em árvores para colher frutos.
Árvores gigantescas, de fino caule, que se partiria, se fossem escaladas, por
um índio adulto. De como desejou ardentemente que chegasse o dia de sua iniciação.
Jamais esqueceria quando o cacique chamando-lhe, pediu que o seguisse, até a
beira do Ibura, nascente d’água. E passou a examiná-lo atentamente, apalpou-lhe
o corpo, os testículos, tocou-lhe o sexo. Ali mesmo com sua itacira, lâmina
afiada, fez-lhe a circuncisão. Daquele dia em diante não era mais curumim,
ganhou um colar que continha um amuleto, que encerrava a alma de um espírito
responsável pela sua proteção. E desde então aprendera a fazer arma, os
segredos da caça e da arte de guerrear.
Desde pequeno aprendiam à
respeitar a mata, sua verdadeira mãe. Tanto acreditavam que teriam vindo da
terra, que se obrigavam a trazer em seus corpos tudo que havia nela. Sob a pele,
os lábios, lóbulo da orelha, narinas, supercílios, incrustavam pontiagudos
pedaços de madeira, pra terem a mata no corpo. Pigmentos, ora tirados do solo,
ora extraídos das plantas, para que seus corpos adquirissem as forças que
possuíam. Verdadeira adoração as plantas e ervas que os alimentavam. Respeito pelas
águas. Plantas para eles eram como pessoas, boas e ruins, pelo poder de curar,
alimentar e de levá-los pra outros mundos. Nos rituais de iniciação, de
casamento, de preparo para caça, de preparo para guerra, era esse o sentido da
vida indígena. Sem plantas não haveria vida. Marijuana com ela iam ao vale dos
guerreiros ancestrais, donde lhes passavam os ensinamentos de sua nação. E que
deviam ser passados de geração em geração.
Em forma de relampejos vinham os
acontecimentos de algumas luas antes. E chegavam com uma nitidez tão brutal que
instintivamente arregalava os olhos para sentir que tudo não passava apenas de
reminiscências. Via as mulheres e crianças. Desesperadamente chorando, que corriam
em disparada tentando se proteger na mata. Não dava mais para ouvir os seus
gritos. Mas via nitidamente seus rostos crispados, e muito pranto derramado de
seus olhos. Bravos guerreiros lutavam e lutavam, e tombavam banhados de sangue.
E as ocas em chamas elevavam ao céu, um fumo negro, que ia lá pro alto até Nianderu,
“pai do mundo”, clamar por justiça. Foi o combate mais sangrento que jamais
vira, em toda sua vida. A aldeia lavada em sangue. Sangue de seu povo. Lembrava
de como atacava os inimigos com raiva, a decepar cabeças, a abrir-lhes as
entranhas com seu punhal, a mutilar corpos. Porém, foi golpeado. Suas vistas
escureceram, desmaiou. Acordou na cabana do cacique Inandê no sopé da grande
montanha. Sete luas haviam se passado, estendido sobre um ubá, lastro de varas
coberto de palha de coqueiro, tomando ervas para cicatrizar as feridas.
Morubixaba falou de seus delírios,
de como vagando no vale onde dormem os espíritos dos seus pais, ouviu-o falando
em línguas estranhas. Contou de como os espíritos da nação Ednaré a deusa
Parecis, vieram buscá-lo para habitar a terra de mãe Ibaretama, lugar pra onde
iam os espíritos dos que habitam as matas, onde descansariam em paz. Mas o deus
guerreiro Obajara se materializou em forma de luz, e travou luta com o espírito
das sombras. E não deixaram levar seu corpo. E em gratidão, teve que fazer um
ritual, uma oferenda ao guerreiro Obajara. Andou três luas até a caverna de
Abaruna - bebe o espírito do padre que voa. Ali ficou sabendo que o cacique
Inhaderê, pai de inandê cometeu um ato que desagradou Obajara. O cacique
deitou-se com uma índia, virgem, que se encontrava em sua oca. Ali permanecia
por trinta luas. Preparando-se pra contrair casamento com o filho de Ibaretama.
E foi o cacique por Ibaretama amaldiçoado. Desde então, quando se aproximavam
as noites do trovão. E as águas de Nianderu estavam pra chegar, o espírito
desencarnado de Inhanderê vinha atormentar os guerreiros da tribo de Airumã.
Era preciso que ele, em sacrifício oferecesse uma linda jovem para que o
espírito de Inhanderê deixasse sua tribo em paz. Nianderu, pai do mundo, e Nandery
sua esposa, mãe da terra, deram-lhe Manacy por filha. E Airumã teria que
oferecê-la em holocausto a Obajara pelo desagravo de Inhanderê.
No alto da montanha, lá onde as árvores
de tão crescidas, se assemelhavam a pincéis gigantes. Cujas pontas mescladas de
musgos, veroneses e clorofila, tentavam tingir de verde os inflados balões de
nuvem branca, lá em cima, iam se metamorfoseando em forma de temíveis monstros
mitológicos. E eis que era chegada a hora. O sol já tinha cumprido mais de dois
terços de seu trajeto antes de ir deitar-se com Aivaré no horizonte. Airumã prostrado sobre a relva, os olhos
fixo, muito além do poente. Iniciou um canto triste. Canto que era um lamento.
Um grito de dor, por Manacy que tão jovem ia retornar a mãe terra, de onde viera.
Canto triste ecoando pela mata. Oração de um índio.
Fabio Campos
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