
Quem sabe fosse outono no
hemisfério norte. E era muito provável que alguém naquele instante, se não estivesse
vivendo, ao menos já teria vivido sua outra história. História de querer viver
de desenhos e pinturas, porque era o que mais gostava de fazer. De sonho
alimentado de quando tinha quinze e poucos anos. De ter um irmão de quem muito
gostava, e admirava seus trabalhos, de exímio desenhista que era. Sonho de ir
morar em Londres, de conhecer outros pintores e com eles interagir, e trocarem
experiências, mas também divergir de suas ideias. E tempos depois querer morar
em Paris, de ir estudar na escola de Belas Artes. De ter um amigo a que muito
confiava, porém se desentenderiam profundamente, e se distanciariam um do
outro, e por isso cairia em depressão, porque não valia a pena se desentender
com o melhor amigo, ainda que o motivo da desavença fosse uma linda mulher. E devido
a influência religiosa de família, querer ingressar num mosteiro pra estudar
teologia em Amsterdã. De impressionar-se com o trabalho de mineiros pobres do
subúrbio de Haia. De produzir uma série de desenhos à lápis, usando técnica de
jogo de luz, tendo o ser humano como principal tema. E deixar-se apaixonar pela
vida bucólica, a ponto de querer viver o resto da vida, na zona rural em
Holanda.
E o caminho ainda se havia. Lá
longe antigas fachadas de casas, de velhos telhados que de mais nada entendiam
que não fosse telhar. Nos seus ápices, velhos e cansados, sempre os mesmos
pensamentos deslizavam. Não tinha certeza se contra sua vontade, porém vinham
encontrar-lhe, quase sempre nos mesmos lugares. Como se em cada lugar, um
pensamento resolvesse morar. E permaneceriam ali. Presos numa estação de fóton
energia, que somente seu dono tinha o segredo, o código, a chave para
colocá-los em liberdade, ao menos quando por ali ia passando. Uma vez
passageiro da espaçonave chamada mundo, novas divagações vinham resgatá-los, a
cada manhã. Admoestados de sol e sofreguidão, corpo físico e metafísico, de
músculos, vasos e veias irrigados, por energia cósmica percorridos. Células
neurais, cada uma delas, dentre as milhares existentes, eletricamente ativadas,
em sinapses de nauseabunda vertigem, colocando amaro gosto entre palato e assoalho
lingual. E se aceitasse como delírios, tudo poderiam ser bem mais fácil, era só
aceitar.
Ao chegar à escola, propôs aos
seus discípulos que produzissem um nu artístico, e fez questão de ser ele
próprio o modelo. E acabaria ficando excitado porque entre seus aprendizes
havia meninos e meninas. Sentir tantos pares de olhos pousados sobre seu corpo
desnudo, penetrando-lhe no mais íntimo do ser, percorrendo cada fibra, cada
detalhe, desconsertou-lhe. E era como se o grafite dos lápis lhe perfurasse as
carnes. De invadido passou a invasor. E se pôs lascivo. Não lembrava jamais ter
se sentido assim, como se mantivesse uma relação pansexual, com todos os seus
discípulos. A masculinidade exarcebada, tendo seu membro viril, saído do estado
de repouso, o que infelizmente interferiria em todo o resultado da obra. E
houvera múltiplos orgasmos.
Foram necessários muitos dias pra
se recuperar. Muitos momentos de perda de equilíbrio emocional, da falta de
identidade de si mesmo. A ponto de sentir-se ridículo, a um momento pelas
atitudes pouco ortodoxas. Na falta de intimidade com o espelho, na aparência
física, a muito custo aceita. A quase negação da carcaça, atrelada a seu
espírito. E isso era mais do que suficiente para querer afogar as mágoas no
álcool. Não possuía baixa estatura, não sofrera o infortúnio de ter tido na
infância uma atrofia óssea incomum, a ponto de ficar com baixa estatura, como o
amigo parisiense, porém, rejeitava a cor que tinha, e isso era suficiente para
sentir-se, rejeitado por si mesmo. Herdara na pele, alta melanina, da tez
materna. O pai era branco. E já ia o meio dia quando sentiu-se Henri
Toulouse-Lautrec. Na sua cor, nas suas aquarelas, nos seus guaches, cheios de
luz. Abrasados de tons amarelos, dos cabarés que frequentava, e das prostitutas
que desenhava e pintava. Descontraídas, desleixadas, se quer sabiam que lhes
servia de modelo. No começo era cerveja e vinho, mas o gosto foi ficando apurado.
E as bebidas finas, acabaram substituídas por destilados fortes. Era a fase do
prazer oral.
Fabio Campos
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