DÊ LÍRIOS...



A montanha de frente, semelhando um cuscuz de espinafre gigante. O entardecer se deitando por baixo de si mesmo, se cobrindo com forro de um azul índigo. Os olhos do sol aos poucos se fechando. Sob pesadas pálpebras de sono. O enfado devagar entrevando as engrenagens do dia. As casas com seus telhados achocolatado. Sobrepunham paredes de arroz doce, em barras de cocada de coco queimado. Os meninos, pobres meninos, tão satisfeitos, voltavam do jogo de bola no campinho, pelado de grama. Arremedando jogadores de verdade. Os meões acima do número que calçavam. Os calções também, uns 5 anos maiores do que vestiam. As bicicletas de aros e raios cantantes estalos. A subirem ladeiras íngremes. De faróis que acendiam com o auxílio de dínamos, na imensa descida da ladeira da serra.

Os campeonatos, tinha deles que ocorriam em campos tão longe da cidade. Ao encerrar o certame, os meninos jogadores, suados, iam comprar cajuína, salame e pães francês. A festejar e se deliciarem com o fim do dia de domingo. Os alçapões de gaiolas que pegavam pequenas aves. Se não tivessem valor como canoras, matavam-nas de petelecos. Assopravam a cabeça pra ver se estavam mortos. A beira do açude Aproveitariam pra fazerem novas balas de barro. Árvores que contavam histórias, histórias de cada vida. Cajueiro, mamoeiros, trapiás, umbuzeiros. As goiabeiras e limoeiros detrás da casa de vó. As goiabas que não deixava pegar no quintal, pois quebrariam galhas, derrubariam muitas folhas. A bicicleta de papo pro ar, com um pneu furado. O menino pedalava, e jogava lama na roupa. Roupa que a mãe iria ralar pra lavar. As bicicletas tinham que ser resistentes, bem como os ciclistas. Aparatados andava com gêneros de socorro mecânico, cola, lixa, pedaço de câmara de ar, bomba de encher pneus. Ao entrar no ínfimo povoado, um dos meninos, achou de perguntar onde ficava o comércio. O velho ficou bravo. Entendeu a indagação como pilhéria. Respondeu com meia dúzia de impropérios. Era domingo de setembro, a noite caiu e foram os meninos jogadores pra missa. Depois iriam assistir ao filme no cine Glória. Se o dinheiro que ganhara do pai não fosse o suficiente para a entrada do cinema, ao invés de colocar, tirava da caixa de coleta da igreja. Na brincadeira da praça, as embalagens das carteiras de cigarro viravam dinheiro de brincadeira. Mais valor teria, quanto mais difícil fosse adquirir mais valiosas. Os brinquedos daqueles tempos eram outros, a vida era outra, as coisas tão diferentes de hoje, parecia pertencer a um outro mundo.

As estatuetas de elefantes ficavam de costa pra porta. Os patos brancos, três biscuits na parede da sala. As maçãs de cera, na fruteira, receberiam mordidas de criança traquinas que achou-as apetitosas. A calminha chegando na criança, a noite. Um terço dedilhado a luz de vela. Nossa Senhora tão bonita, a pele tão límpida, jamais ficaria velha. Serena, a dizer com o coração aberto o quão valiosa seria a oração. Tia Maria tinha câncer. No meio da reza lembrou-se de pedir por ela. Como ia ser quando ela morresse? A sua filha não tinha um pingo de juízo. Dizia, se soubesse que a mãe tinha câncer, ia se matar e mataria também ela. Se alguém lhe pedir rosas. Dê lírios.

Os preás, fruto da caça de ontem, quaravam no arame. Tratados com sal, abertos a faca, da cabeça ao ânus, despelados, os rins de fora. Tinha que se por cuidados, se não, os cassacos viriam no faro, tentar pegar. A neta, chegava cansada, as bochechas vermelhas do sol quente. Tinha uma lição pra responder. O vô dizia pra dobrar as roupas da farda quando chegasse da escola,  ajuntasse os sapatos e as meias, embaixo da cama. O lanche que sobrava, às vezes esquecia de tirar da bolsa. Daí acabava arruinando lá dentro. Os jornais, estes nunca arruinavam, nunca ficavam velhos. As crianças, e suas imensas mochilas as costas. Era tudo o que possuíam de mais valioso. Nada na vida tinha mais valor pra uma criança que seus pertences. O lápis, a borracha, a cola, a lapiseira, o caderno. O livro de tarefas. O inimigo trama, sempre. O inimigo está sempre tramando contra as criaturas de coração reto. De coração puro. Se alguém surtar. Dê lírios.

O menino Thômas, também chegando da escola, disse: Vô, o senhor sabia que podemos fabricar uma bomba caseira? Apenas com material encontrado dentro da própria escola, vô? Não. Não sabia. De onde tirou esta ideia? Um colega viu num livro, de química. As bombas, são feitas de material explosivo. Vô, sabe o que é um explosivo? Não... É tudo capaz de entrar em combustão tão rapidamente,  que provocaria o deslocamento do ar instantaneamente! E isso causa um estrago danado! Ora, vô, um explosivo pode ser conseguido com três componentes básicos: salitre, carbono e enxofre. O salitre vô, é muito fácil de encontrar. Na escola, basta ir no depósito da horta comunitária. Nas aulas de Técnicas agrícolas. O carbono ainda mais fácil conseguir, o grafite da ponta do lápis! O enxofre, encontramos na cabeça do palito de fósforo. É também um dos minerais da aula de pecuária. Como vê vô, é fácil produzir uma bomba!

Os tempos eram outros. Era jovem, estudante do curso de direito na faculdade da Bahia. Enquanto o homem pisava na lua. Aqui na terra, se queria liberdade para consumir drogas. Tempo do viva a paz e não a guerra. Os filhos da elite virando hippes. Os festivais da canção, Woodstock, os Beatles, o iê iê iê, a Bossa Nova. Caetano, Gilberto Gil e Gal Costa iniciavam um movimento chamado Tropicália. Tempo bom de ouvir Paulo Diniz e Tim Maia e Os Mutantes. Início da era de Aquarius. Levar as crianças a Disney World era um sonho de consumo. Domingo no parque Ibirapuera. No Rio praia de Copacabana, Ipanema, Leblon.  Fazer uma tatuagem sobre o amor livre, curtir as praias de nudismo, Saquarema, Angra, Búzios, Cabo Frio. A camiseta pedia a liberação da maconha, tempo de querer ir pra Cuba, Berlim, Copenhagen. Estava na moda os jovens defender o comunismo.. Se era uma Juventude transviada, da calça Lee, do jeans, do viva a revolução, do nylon e do anticoncepcional, do LSD, e do Haxixe, da heroína e do ópio. Dê Lírius.  De viagens sem volta.

As crianças tinham sonhos de voar, e de nascer. De ganhar disquinho de vinil colorido com histórias infantis: Pedro e o Lobo. Tão bem orquestrada, de sacha e o oboé, do vovô medroso. E Pedro tão corajoso. Raul dizendo Pedro aonde você vai eu também vou. Aika pra fazer sua tarefa teria que conseguir três palavras que começassem com a sílaba “va”. Palavras garrafais de velhos jornais: “Viva a Revolução!” não servia, por que o “va” estava no fim da palavra. Tinha que ser no início. “Presidente Vargas visita hospital...” Vargas também não servia. Por que era nome próprio. “Vai um tigre no seu carro?” O vai, na propaganda da Esso, serviu. Mais uma: “Vaticano se manifesta sobre a guerra.” 

Os dias de criança deviam ser para sempre. As ruas com seus ladrilhos de pedras, antiquíssimos levaram chuvas e poeira, a lavarem a alma das avenidas. Até o rio levariam. Pelas sarjetas escoaram as velhas lembranças e as verdades e mentiras que soaram de boca em boca. E os homens que ficaram velhos adoeceram, e morreram de câncer, e de tantas doenças incuráveis. Tramaram nas caladas da noite, nas madrugadas frias traíram suas esposas. E chegaram em casa embriagados. Revoltados com o que souberam a respeito de um político em quem tanto confiara e votara, na eleição passada. Aquele pelo qual tinha alguma consideração e respeito. Atitudes inescrupulosas, para com o amigo, a que muito o considerava, e a quem daria um filho para ser padrinho, e portanto se diziam compadres. Em sua casa o recebeu, e serviu-lhes os melhores pratos, e as melhores bebidas. E por ele fora traído. E marcariam outros encontros que jamais ocorreriam, por que a morte chegaria antes. Os cafés acabariam gelando nas garrafas térmicas. Mesmo assim tomariam com o maior gosto. E acenderiam cigarros que fariam fumaça em torno da lâmpada até se dissiparem. E vieram-lhe pensamentos maus de destruição, de procurar meios para matar o adversário, o inimigo. Sim, porque agora, nisso ele se tornara. Eliminá-lo de sua vida, para sempre.

Naquele tempo não se podia esculhambar com os que estavam no poder, não assim tão abertamente. As crianças eram usadas para dar recados em forma de afagos, de carinho, de poesia, de flores. Usadas, inocentemente. Uma criança foi a casa do candidato levando um embrulho. A polícia foi acionada. Suspeitou-se que podia ser uma bomba. Como o amigo  podia ser tão sórdido a esse ponto? Usar uma criança, uma menina, de apenas seis anos levando um presente pro deputado. Sem saber que se tratava de uma carga explosiva a ser detonada, assim que chegasse as mãos do deputado. Assim que ele abrisse. O serviço secreto foi acionado. As ruas foram interditadas. Ninguém se aproximava da residência do parlamentar. 

De repente, a menina surge, sozinha no meio da rua, com o embrulho na mão. O exército com sua tropa de choque, fechou todas as ruas das proximidades. Atiradores de elite se posicionaram em pontos estratégicos. Na cobertura dos edifícios. Do alto de um prédio a menina era monitorada. As lentes das armas de longo alcance, tinham sua cabeça na mira. Se disparasse o tiro pegaria na nuca. Um homem com roupas especiais do esquadrão anti-bombas se aproxima, pega o embrulho da mão da menina. Perplexa, atônita, indefesa. A menina é resgatada por um fuzileiro que descera de helicóptero no meio da rua.  Ao abrir a caixa o que havia. Um bilhete alguns ramos de lírios, colhidos no jardim da escola. Um lencinho xadrezado, uma frase bordada: “Te amo papai!”. Dê Lírios...

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