["Até os cabelos da vossa cabeça estão todos contados." S. Lucas 12,7]

Lembranças de coisas de quando
era menina, de quando precisava andar muitas léguas tangendo um burro. Indo
levar uma carga de carvão no povoado. Sobrava-lhe tamanha empreitada. Atravessava
o riacho seco. Calcando a areia, o barro. Na caieira tinha outros meninos. A
carga já estava pronta. Trabalho pesado. E quando dava a dor de veado, colocava
entre a calcinha e o ventre, um ramo de melão de São Francisco. Se dava fome, metia-se
a comer maturis de umbu e goiaba, quente do sol. Aí era dor de barriga na certa.
Travava os dentes. A água do cacimbão, o pano d’água salobra. As aves no céu
num perfeito bailado. Perguntava-se por que o mundo fora tão cruel. A fora ter
espalhado os irmãos. A irmã mais velha, preguiçosa que só. Ó Deus de Jacó, Deus
Isaac e de Abraão, que os unisse, porque o diabo tentava desunir, odiar. Os
dias de mágoas, que pensara haver passado. Nem neste, nem no outro mundo, tão
cedo se acabaria.
As cabras, e ovelhas, berravam beirando
o terreiro de casa. O barro dos tapumes ressequido. Assoprava o vento a doer
nos olhos. Disse bem assim: A vó estava boazinha. Do nada, sentiu uma dor, foi
parar no hospital. Teve hemorragia interna, vomitou sangue. Foi a sorte, ter
vomitado, porque senão, uma hora dessa estaria morta. O seu apocalipse não
tinha chegado não dessa vez. Mesmo assim, doravante, preparados estivessem para
qualquer eventualidade. Pelas brechas das tampas de madeira, enroladas com
tiras de pano. As ancoretas iam cuspindo no lombo do burro. Os meninos foram
caçar, com espingarda soca-tempero, e peteca. Nos alforjes farinha de mandioca,
rapadura e carne seca. Passavam dias dentro do mato. Só voltava com boa caça. A moça da janela, com seu jeito
de olhar, dizia coisas do tempo passado. A boca vermelha, de tanto chupar umbu
com sal. Dali a pouco iria à cata de ovos das galinhas. Varria as capoeiras, o
terreiro. Achava estranho o que o mundo um dia ainda ia lhe fazer. Sem
perguntar se queria, se podia. Apenas faria.
Uma noite caiu doente, teve
febre. Na sala do médico, deitada na maca, ficava olhando quadros, admiradamente,
mesmo sem saber o que queriam dizer. Talvez não fosse pra qualquer um, o dom de
ver o que diziam os quadros. Doenças são providenciais quando precisam ser. Por
conta de uma delas teve que viajar. De olhos bem abertos, aos poucos viu, o
único mundo que tinha, ficando pra trás. Foi parar na terra do azul do mar,
donde se abriria portas pra descoberta de muitas outras coisas. Lembrava nitidamente
dum baile de carnaval. Pela primeira vez, provou bebida alcoólica. O namorado
ofereceu lança-perfume. Naquela noite perdeu a virgindade. E se tudo não passasse de um sonho? A tristeza,
a vontade de cortar os pulsos. Acordou
toda suada.
O tio do pai, já fora dono de
tantas terras. Muitas mesmo, nem sabia direito o que possuía. Os vizinhos
vinham dizer: Seu Pedro uma ruma de retirantes se arranchou lá no baixio da ema,
dentro das suas terras. Então dizia: deixe eles, tem nada não. Um quarto dum
dia, inteirinho de caminhada, da casa grande até lá. Dias depois os contrataria,
para o preparo da lavoura. E assim, foi perdendo terra. Lembrou de quando estavam
conversando e o vô disse, estou com tanto sono. Foi fechando os olhos, fechando,
e morreu. No dia do enterro, sempre vinha alguém e dizia: mas, ainda ontem
estive com ele. Outra comentava: assim quietinho, parece que está dormindo. Um
outro: não mudou nada. A vida assim tão volátil, as velas votivas. Os que
ficavam se comunicavam passando a mão nos cabelos, encostavam o braço junto a
parede, metia o pau a chorar. Esfriava-lhe o couro cabeludo, suando suor gelado.
O céu, a dizer, você está aqui.
Quem partiu, partiu. Nada havia a fazer, a não ser dar continuidade ao que
ficou. Uma folha não cai da árvore sem que vós permitais, Senhor. Um cabelo não
deixará a cabeça sem seu consentimento. Talvez fosse preciso a família se
reunir com urgência, forças do mal convergiam pra um único ponto, e isso não
era bom. Quando se mexe com dinheiro a conversa e outra. As decisões de alguém
tomadas sozinhas podem ser mal interpretadas. Os meninos, alheios a
tudo, brincavam e era de todo inocência seus agires, seus pensares. Tomar banho de barreiro, ir pra debaixo da mangueira, correr até a barragem. Não é sensato cobrar
sentimentos de quem não os têm, ou não precisa ter em relação a luto de morte.
Ninguém era obrigado a fazer o
que não queria. Na encomendação da alma o sacerdote esclareceu muita coisa, o
que seria orar, como se devia rezar. A reza não é pra ofender os ouvidos de
Deus. Nem pra tentar vencê-lo pelo cansaço. As moças escandalizavam-se de tanto
sofrimento. E não queria, mas acabava dizendo coisas absurdas para o que erraram. A
mão passando pelo cabelo cada vez mais escasso. O rosto criando sulcos profundos
que diziam: pare de cobrar o que
não foi possível. O padre mesmo falou, se você mesmo não deu, porque agora cobra do
outro. Isso é hipocrisia.
A casa, a barragem. O menino correndo,
o sol quente. A tarde de domingo. O vento soprando onde um dia não haveria mais
tia, nem avó, nem vô, nem o pai do pai. E a foto seria o que ia restar, dizendo
pra que entendessem que era assim mesmo. O menino que havia um dia. Já se fora
e ao mesmo tempo ficara. Como isso era possível? No retrato. A frase desconcertante:
você continua o mesmo, não mudou nada. Agora tinha a obrigação de não ter mudado. Dar
abraço foi uma concepção de si. Abraçar fortemente foi decisão acertada. A
outra irmã que ainda não aprendera a abraçar. Abraçava, mas queria algo em
troca. Não era correspondida.
A moça da foto, a irmã mais
velha, tinha pernas grossas, pele alvíssima, cabelo escorrido, lábios finos bem
pintados. O que será que faltava pra aquele moço se decidir? Talvez não
quisesse se decidir. Talvez fosse mais cômodo deixar do jeito que estava. Não a
assumia definitivamente, porém visitava-a todo dia. E ficavam por horas nos
jardins. Os jardins com sua linguagem própria. Muito mais conteúdo que os ambientes
de dentro de casa. Nele repousava as almas das flores, e insetos alados. Os espíritos
dos antepassados, feito guardiões. Outro dia a mãe da moça encontrou um senhor
estranho, de paletó, sentado nos degraus. Disse perguntando: Ai não está
quente? Não é bom sentar num lugar quente. Só não sabia explicar porque não era
bom. Apenas dizia por respeito aos mais velhos. A música desenhando coisas
muito legais no ar. A tornar a vida mais doce. Mesmo que levasse pra lá atrás.
Mesmo que dissesse coisas melancólicas. Só não podia dizer que tudo aquilo era,
do nada.
O homem do jardim perguntou por
seu irmão. O que já havia morrido. Talvez fosse o próprio. E perguntava só para
lhe testar. Mas não estava prestando atenção. Não naquele momento. Foi numa festa de casamento, que algo incrível lhe aconteceu. Resolveu sair pra fumar. Outro fumante se aproximou,
e ficaram conversando, conversa fútil, pra fazer fumaça. Depois pensaria: era ele... Meu Deus, como não o reconhecera. Um papo legal, que só ele tinha. Só ele
conhecia. Nunca disse ao esposo, com medo de sua reação, de ter uma crise de
ciúme. A vida era assim, a gente acendia um palito de fósforo, e do nada...fogo. E
fogo aquece, alumia. Mas também, destruidor.
Queria que Deus livrasse do mal.
Dos maus, ninguém consegue ficar livre totalmente. As orações, o fogo queimando
o mato. Avançando em direção a casa, o homem apenas olhando sem esboçar a menor
reação. As desilusões da vida podem levar as pessoas a cometerem loucura. Ainda
que aparentemente não parecesse capaz daquilo. Já tivera momentos de surto, em que
se sentia perseguido por seres que não sabia, se desse, ou de outro mundo. Tinha
dias que se trancava em casa, e até as brechas da porta tapava com sabão. Do
nada, pegou uma estrovenga, e saiu destruindo tudo que via pela frente. Matou a
parelha de bois. Matou ovelhas, destruiu a plantação de milho. Queimou a plantação
de feijão, tocou fogo no armazém. E foi embora.
As moças sentadas na calçada alta,
descascavam laranja. Enchendo o ar do orvalho adocicado, do fruto cítrico.
Olhavam a serra. Lá no alto os homens capinavam. e comentavam sobre o dia de
serviço. Um olho no serviço, outro nas moças. E tomava água olhando pra lá. As
costas suadas, a copa do chapéu de palha, molhada de suor. O rádio, a música trazendo coisas muito legais. Tornando a vida mais doce, ainda que
melancólica. Só não dava pra dizer que tudo aquilo era, do nada.
P.S A ilustração: Desenho de Aika [ 6 anos] neta do autor.
Usou tinta acrílica sobre papel sulfite. Com caneta esferográfica azul, o autor, acrescentou o burrinho e o tangedor.
P.S A ilustração: Desenho de Aika [ 6 anos] neta do autor.
Usou tinta acrílica sobre papel sulfite. Com caneta esferográfica azul, o autor, acrescentou o burrinho e o tangedor.
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