
Um dia foi, e levou um pouco de
nós. Agora era dois. Iam, e voltavam. E dois virou família. Fez-nos tio, duas,
três vezes mais. Vivia e se entendia – em constante diálogo, sem precisar falar
- com a natureza. Sabia de calos doídos, sinalizando chuvas, de aura
acinzentada entorno do luar, avisando trovoadas. De ir lá num canto do muro
catar um punhado de uma plantinha, pra colocar em ferimentos, dar pro cachorro
e pros passarinhos - se lhes diziam estarem - com dor de barriga. Quando podia,
e por vezes podia, levava bichinhos e plantas pra dentro de casa. Cães
vagabundos. Deles, apiedava-se. Cria em coincidências, e na providencial mão do
destino. Num pedacinho de selva, que os homens comuns chamam de quintal, cágados,
saguis, porquinhos da índia, jabutis, iguanas, hamsters. O rouxinol que gostava
de canários, pintassilgos, cancãos, ferreiros, cacatuas, calopsitas. E educar
papagaios pra chamar os donos pelos nomes, cantar arremedando o canto de seus
pares. Encheu de mar um vão de acesso a cozinha, rei Netuno submergindo de
dentro de baús, caravelas, sereias, era de aquário. Um cão amigo, amigo cão. Cúmplices de afagos e
brincadeiras, e conversas sérias também, de passeios nas tardes douradas. Camisa
pólo, calça jeans índigo blue, sapato mocassin. O longo cabelo escorrido, penteado
com esmero – se molhado, camuflava os fios brancos – conferindo-lhe jovialidade.
Ameríndio redesenhando seus caminhos. Saído da zona da mata, indo desbravar
veredas do sertão.
Quando fui à primeira vez a sua
terra natal, apresentou-me aos amigos. No bar preferido, a cerveja preferida. À
mesma mesa, que sempre estaria lá, lhe esperando, morrendo de saudade. O barman
sabia a música que devia tocar. Bebemos, brindamos à vida, ao prazer de ser o
que éramos, e viver tudo o que havia: o instante. O momento era, e pronto. Martins
tinha história, histórias várias. Em cada lugar que ia, a cada esquina um
enredo, novos protagonistas. Moleque engraxate ganhava moeda, carinho, e
apelido. Cumprimentos, acenos ao carroceiro, o estivador, o relojoeiro, a
vendedora de peixe na porta do mercado. Havia história em tudo, em cada canto
da sua cidade. Espraiando no horizonte a Serra da Barriga, gigante verde, encerrado
adormecido. Corpo de negro, deitado de bruços, alma de negro, carne de negro
incorruptível. Impregnado de húmus, de vermes, amalgamado, muito embora, em profundo
sinal de respeito não pervertia. No ventre de barro, soterrado o grito nagô nos
ventos da aflição. Zumbi havia em todo
canto, músculos severos, suados, voltando da roça. Sangue dos Palmares,
derramado no canavial, na lida com o facão ferindo a touça de cana. Bíceps e
peitorais Inflamados do quilombo estrangulando saca de açúcar. A lança de Zumbi
cruzou o ar, foi se encravar no coração da onça. Pés negros desnudos resvalando
entre a pedra e a areia do chão antigo, chão encharcado de império. Vento
assoviando ordem, impondo respeito e temor, nas flâmulas tremeluzentes dos
umbrais desenhados.
O mar de cana ia engolindo tudo.
Engolindo os olhos da gente. Estúpida voracidade de redemoinho. Engolindo
carroções, bovinos, camponeses, negros, cães, latidos e lamentações. O choro do
canzil indo longe, e voltando cego do sal da maresia sufocada de Inferno verde.
Dava pra ouvir o roçar de pele de negro no capinzal, os grilhões, o canto pra
espantar fadiga. As casas rústicas. O fogão a lenha, no meio do terreiro, o
jumento cangalhado aguardando carga. O pano de chita gritando pra gente olhar.
Sob a pele fubazenta dos banhos nos córregos cristalinos, mulatas, carnes
vistosas, as partes íntimas de coito com o sol, pele luzindo n’água, pelos
negros e sedosos de cheiro adocicado de banho com sabão de coco. Corpos
desejados pelos capitães do mato, pelos jagunços, velado desejo dos senhorios
de engenho, bem casados com nobres brancas da corte. O ar labaredeando palha da
cana de dois homens de altura.
O matagal, misterioso olhava
ameaçador, dizendo pra manter distância. Não excitaria em devorar-nos vivo. Árvores
gigantescas se projetando pro anil celestino, e quando à pujança do rei-sol se
ia, viravam dragões, monstros fantasmagóricos, paridos do ventre da mãe terra,
incontestavelmente transportados da idade medieval. Caía o véu da noite e dava
pra ouvir os atabaques e afoxés, vindo da mesa da montanha. Cujo cume custodiava
a negrada fugidia. Refugiados na crista da mata elevavam preces, ofereciam
holocaustos a pai Oxalá, Ogum e Yãssan. No cruzamento da seara, sexta-feira,
meia-noite arupemba com garrafa de cachaça, galinha preta, espelho, cédulas,
moedas, colares, pulseiras, anéis, flores, fumo de rolo, perfume e quindim.
Despacho pra Pomba-Gira e Zé Pilintra. Trabalho feito. Pra conquistar mulher
difícil, pra quebrar senhorio cruel. Lá vinha Jorge de Lima todo de branco
surgido no clarão da noite montado no cavalo do seu santo guardião, empinando a
crina, troteava o pangaré enquanto se ouvia o canto pro acendedor de lampião e pra
Nega Fulô.
Se janeiro, Santa Maria Madalena,
chamava o povo pra igreja. União era festa. O estandarte da santa - roto de
tempo e de história - esmaeceu de colores. Guimarães palmarino deitou contrato
pra pintarmos outra bandeira. Índio Martins apenas observava – por entre a
fumaça azulada do cigarro - acompanhava as voltas que a tinta e o pincel davam
sobre o algodãozinho. Ao cair da noite depois da novena cantava o rouxinol,
canto mavioso de cordas acompanhado. Os janeiros áureos se foram, tragados
feito fumo, pra dentro do abismo do tempo. O rouxinol aturdido por não saber
mais de cantar, alçou vôo, voou.
Fabio Campos
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