O Padre

Padre Bulhões tinha fama de homem rígido nos tratos. Traços amplamente imprimidos a sua personalidade, talvez trazido dos laços familiares, ou herdade da vida religiosa. Um São Paulo que não careceu de uma visão, pra perseguir os seus. Perseguia-os até torná-los filhos de Deus, a lei do a pulso, se preciso fosse. Casava amancebados, confessava e ditava expiações aos pecadores arrependidos, ou orgulhosos. Precisava de meses à fio, pra varrer, sob as patas de seu cavalo, a imensa paróquia que conduzia. Ia a Vila do Capim, hoje Olivença; Pedrão e Gavião, à hoje Olho D’água das Flores; povoado Riacho Grande, hoje Senador Rui Palmeira; Caldeirão, hoje São José da Tapera; Sítio Cedro e Serra da Caiçara, na atual Maravilha; Sitio Pilões, município de Ouro Branco; Povoado Tanquinhos; Serra do Poço das Trincheiras; A leste ia até a Pedra do Urubu, pertencente a Dois Riachos e mais uma centena de novenas, e capelinhas, por ele erguida, futuras paróquias, sob a égide de santos católicos. Dom Santino Maria Coutinho, arcebispo da arquidiocese de Maceió nomeou-o pároco da paróquia de Senhora Sant’Ana. A igreja matriz ainda não adquirira torre de dez côvados de altura. Assentada na parte arribada das ribanceiras do Ipanema e do riacho Camoxinga. Este de cá, transpassado de singelo pontilhão.
A Ponte
Lá estava assentada, a
confluência do rio e riacho. Enquanto o Camoxinga, lânguido se entregava ao
Ipanema, Riacho João Gomes, lá do outro lado desembocava. Exato no vértice da
cruz de águas - bem ali onde Jesus, na hora dolorida, recostou a cabeça - o
padre daria de habitar imponente casarão. A casa do pároco era construção
solta, resvalada no batente do riacho. Concebida de alegre arquitetura colonial.
Rodeada de vegetação briófita, que escalava pilares dos telheiros profusos, Barroco. As manhãs brincantes e vinha o
sol banhar-se ao regaço, faceiro, platino como se posasse a um quadro. Se a
aura crepuscular, nigromante ar plainava, vespertinando indo amigar-se com os
verdes-azuis, meridional. De tão fluídas as cores sibilando - e tanto de si, se
dando - se entregando, que a ponte sorria.
A ponte nasceu à foz. Na grota,
onde antes o povo lavava os pés quando atravessava o arroio. Enterrando na água
e na areia os pés, se molhando até os tornozelos. Apoiada nas muretas cresceu
nos beiços do riacho. Deixou o pega-pinto, a catingueira lá embaixo - de cada
lado - e escalou meia braça. Esplendor de muro de arrimo, pronto pra enfrentar
as já esperadas pancadas das cheias, dos dois mananciais. Viesse, pois o Camoxinga
bradasse então o Ipanema. Bravia e
paciente aguardaria a pontesca. Lapidada a cinzel, o granito, tomou forma e deitou
o lombo pros passantes. Acessou aos que se destinavam a usina, vapor dos irmãos
Melo. Portal pros que rumavam ao vale do Caiçara e os que tinham Pernambuco por
destino. Santana precisava - muito ainda - se expandir pras bandas da
centenária, Poço das Trincheiras, o rio jamais poderia ser obstáculo, não podia
parar o progresso, nunca fora - jamais seria - empecilho. Era parceiro.
O governador planejava um hospital, pra depois
da ponte. Já as primeiras catacumbas lá no alto, Cemitério Santa Sofia aos
poucos se fazia. Manso, o rio doou de si, água, areia, pedra para untar
argamassa. Possibilitar os santanenses irem e virem livremente, sem precisar
tirar os calçados, a batizar-se de doce salubridade toda vez que rumasse pro
norte. Doravante passariam a pé enxuto, o casco do boi do carreiro – de eixo
azeitado - cantando cantiga de canzil. Seco agora, os cascos do jumento
toque-toque no cimento! Troteando iam também, cavalos e cavaleiros no passeio,
não mais ferindo o espelho d’água. Feixe de aço e concreto musculoso ecoante, então. Enxuto, os negros pés descalços das mucamas, com imensas trouxas de roupa na cabeça, tendo à guisa buguelos, buchudos, pelados, atravessavam a ponte. E ia o
trazedor de água do rio. O vendedor de ui-ui. A preta Nagô - toda vestida de branco
- tabuleiro de tapioca e fubá à cabeça. Açoitando o vento com voz aguda: “-Ô
de lá da casa do padre! A tapioca vai na ponte!”. Passar à ponte, ato pábo de poesia.
Não mais que um lance de olhar tinha
de vão, não mais que isso. O balaústre de peitoril baixo olhava pros meniscos
dos passeantes. Pinos de jogo de damas em alvenaria concebidos. Enfileirados
constituía o minúsculo parapeito, como se feito pra gente anã, causando frenesi
no passante alto, medroso. Olhar lá embaixo, acrofóbica aventura. Nos quatro
cantos - às cabeças do balaústre - postes de cimento com luminárias a farolear
a partir das seis horas da tarde, quando vinha o acendedor de lanternas, munido
de escada, candeeiro e óleo diesel. O intendente Municipal Firmino Falcão, junto
ao Conselho Municipal, orçou os gastos, deu despacho: “-Seja feita! A obra.”.
Primeiro pensou em homenagear o Doutor Bacharel Washington Luiz Pereira de
Souza presidente da República do Brasil. Ponderou que aquele, jamais saberia da
existência, naquele fim de mundo, de metro e meio de ponte com seu nome.
Desistiram. Decidiram a ponte teria o nome do nosso governador, o
senador da república Pedro da Costa Rego. A língua da rua confiscaria pra o
padre. Até hoje pelo povo consagrada Ponte do padre.
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