
Nossa história, vem de um século depois
que a princesa Isabel decretou o fim da escravidão negreira, em terras brasileiras.
Num tempo em que índios e negros legendavam suas sagas. Eram maioria, e poucos
se atinham disso. Tempo em que negros e nativos mais prolíferos e sem posses, acabariam
pelo inchamento da plebe, empurrados pra periferia. Margearam a reboque o braço
do rio. A montante de sua várzea direita a cidade serpenteou, se expandiu. No
centro, soergueram sobrados, instalaram entreposto, empórios e intendência
municipal. O padre reconheceu firma, em livros cartoriais registrou a freguesia
de Senhora Sant’Ana, ergue a Matriz. A periferia alastrada em mocambos. Do
tronco tupi-guarany, os nativos aqui existentes se disseminaram da linhagem
I-atés ou Kaá-r-nijós que significava “Os que habitam as margens da água forte”
e “nascidos do ventre da mata”.
Índios
Santana do Ipanema, imenso legado
indígena herdou. Costumes, cultura muito ainda se teria deles para sempre. Nomes
de ruas, lendas, plantas: Baraúna, Maniçoba, Velame, Kaa-mo-xinga. Famílias
tradicionais de consolidadas raízes aborígenes, Cinésio conhecido por “Caboclo”.
Professor Valter, cujas veias, flui sangue da descendência I-até. “Índio” ex-goleiro do Ipanema Atlético Clube.
Aman-tá -y- Çá que significa “mãe-da-chuva-que-vê”, era minha avó, cuja mãe
viveu e a criou numa aldeia. Aportuguesado, seu nome virou Amância de Sá. Índio
se conhece pela cor da pele amarronzada, o cabelo, a compleição facial. Deixou
pra civilização o hábito de cultivar milho, usar plantas alienantes como a
diamba, em rituais de cura. O tabaco para selar acordo de amizade entre tribos.
Deles que depois terminariam sendo estivadores, por não terem tido oportunidade
de estudar. “Carrinho” índio”, “Passarinho”, dentre outros, ganhavam a vida no carrego e
descarrego de secos e molhados, dos caminhões que chegavam e saiam todos os
dias, levando e trazendo o progresso pra Santana. Açúcar, café, e
manufaturados. E levavam feijão, milho e algodão. “Passarinho” era um de
estatura física fenomenal, braços fantasticamente musculosos. Seu corpanzil
titânico daria a atribuir-lhe feitos formidáveis, enaltecido pelos contadores
de causos nas noitadas de luar à praça São Pedro. Narrativas apoteóticas de
suas caçadas. Numa delas teria enfrentado a cobra Norato, uma serpente gigante
de dez metros de comprimento, que engolia um boi inteiro. “Passarinho” teria
matado-a na ocasião que dera uma cheia no Ipanema, ao tentar atravessar o rio a
nado pelo poço das corredeiras próximo a foz do riacho João Gomes a bichona se
atracou com ele dentro d’água, o ofídio gigante teria o engolido. Dentro das entranhas
do réptil, sacou seu punhal e destroçou suas tripas. Uma vez livre teria nadado
chegando são e salvo a margem do rio.
Negros
Os primeiros autenticamente negros
em Santana do Ipanema, teria vindo de duas linhagens Bantus e Nagôs traficados
da mãe África. Era fácil diferençar uns dos outros, os de origem Nagôs, vindos
de Nova Guiné e Guiné Bissau, eram negros retintos, o pretume da pele era tanto
que reluzia. Bem alimentados, aumentavam no porte físico. Muito prolíferos. Arredios
no manejo com lavouras preferiam trabalhos domésticos, tinham dificuldade de
aprender nossa língua. Exímio no manejo de armas brancas. Sonhavam com a
liberdade por isso eram muito fujões. Ficaram conhecidos como a raça dos Baus.
Bantus eram originados de Moçambique e Angola, eram negros fubentos, a pele
parecia coberta de cinza, não eram dóceis com seus donos. Praticavam rituais de
macumba, com holocaustos de animais e fetos humanos. Eram bons capoeiristas. Ficariam
conhecidos e temidos pela fama de antropófagos, a raça dos Bius.
A Briga
Foi num final de tarde, de um dia
de sábado. Mais um dia de feira livre findo. Mangaieiros começavam a desarmar
suas toldas. Início da Rua Tertuliano Nepomuceno, quase à porta do mercado da
Carne. A via ficava imunda, frutas e legumes estragados jaziam no leito. Cães
vadios catavam o comer no meio dos despojos do burgo. Conhecida também como “Rua
dos porcos”. Leitões e galinhas - entre grunhidos e cacarejos, fezes e lama - vendidos.
Aquela artéria acessava a Intendência Municipal e o baixo meretrício. Virgulino
um estivador morador do mocambo da Lagoa do Junco - da raça dos Bius - com “Passarinho”
se encontrou por acaso. Estavam intrigados por uma desavença anterior. Por ter
ingerido vários grogues de cachaça Virgulino esbarrou com violência contra seu
desafeto. Isso foi suficiente para darem início a uma briga.
Entre gritos da populaça e
curiosos, os raçudos titânicos se atracaram. O choque de músculos produzia
quase um som metálico, como de espadas. Golpes magníficos de capoeira desferidos
atingiam o alvo. Tenazes braços, claves de bronze, catapultavam bancas dos
mascates. Fantasticamente pesadas, flutuavam como se feitas de isopor. Como num
passe de mágica, um machado foi parar na mão do índio que vibrou no ar,
buscando destroçar carne e osso humano. Conseguindo apenas arrancar um silvo do
ar. Virgulino de posse de uma cangalha arremessou-a contra o oponente,
atingindo a espádua de “Passarinho” que foi ao chão. Uma vez engalfinhados desferiram golpes um no
outro. Numa sincronia e reciprocidade de pura fúria de brutamontes, como se
trocassem cortesias. Eis que abrindo passagem entre os espectadores surgiu um
homem, trajado em paletó e de gravata, encheu os pulmões de ar, emitiu um
grito, que tornaria estático o burburinho. Parado no ar o murro, o golpe a ser
desferido congelado. Tudo e todos estratificados por um grito de “parem em nome
da lei”. Diante da voz do homem, os gigantes virados estátuas. Quisera, o tempo
tornasse em pedra aqueles dois titãs, no meio da rua, eternamente. E ao cimento
fresco, o artista autor da obra assinasse: Doutor João Ioiô Filho, juiz de
Direito da comarca de Santana do Ipanema.
Fabio Campos
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