Bom seria se fosse outono, já que era outubro. Chegou como quem chega. Sempre assim chegaria. Como era bom rever mamãe, os irmãos. Filho longínquo de volta. A casa em que nascera continuava a mesma, mumificada. Mas o céu, já não era o mesmo céu que deixou desde que se fora, não era mais. Abraços, apertos de mão. Tão bom tudo tão família. Mãos falantes, como dantes sudoríparas, tremeluzentes. O sorriso ainda mais inteiro. Compondo melhor o rosto sulcado pelo arado do tempo. Talvez já sentisse a ferrugem lhe comer. Em cima da cama, a mala aberta no quarto que jamais lhe pertencera. Voltava a ser, ainda que assim fosse. Novamente a cama reclamou o peso extra que o menino velho adquirira. Chorou, mas pouco adiantava, tudo muda como tudo mudou. Porém mudo nunca esteve, não estava, jamais estaria.
A casa continuava a explorá-lo. E ia andando empurrado pelas paredes dos longos corredores. Corredores que talvez lembrassem manicômios. O cheiro nauseabundo de hospitais virado em fumaça de cigarro e nicotina. Viciado o único ar respirável. Ala escura, ala clara. A cadeira de balanço calada, nem gemia, nem balançava a anciã. Por um instante olhava fixo à área verde depois a parede. Na nesga de flora havia uma planta que a muito pedira socorro, uma escora. Porém alguém que ninguém sabe quem, amputou o galho que carecia de muleta. Ódio ao intruso, que se fez deus, e decidiu quem merecia viver e quem merecia morrer, porque agonizante não estava. Nas paredes desfilavam elefantes, cobertos com tapetes persas, eram silhuetas e jamais resplandeceriam em cobertores vermelhos com dourado na franja, nunca seriam belos. Aqueles não estavam sob o sol de Istambul donde sultões e odaliscas surgiriam. Um enorme cão de raça indefinida guardava a mesquita. Pássaros revoavam. E cantavam canto novo, autêntico, mavioso como valsa de Strauss. Diferente do canto mecanizado dos pássaros de metais que sobrevoavam o Rio. Onde as notas musicais se materializavam na fumaça, do cigarro de plantas colossais que nunca soube como utilizar. Entrar naquela mesquita era preciso.
Havia mais de um cão guardando a entrada. Entrar lá era questão de honra. Mas não tão necessário que todo o tempo do mundo não pudesse esperar. As paredes velhas foram pintadas na véspera do natal. Para renovar o ar da casa. Por sinal, muito mal pintadas. Tentativa vã de expulsar espíritos vagabundos que vão chegando e vão ficando porque gostam de lugares sombrios. Apesar da pintura, havia nódoas como impigem. Feridas mal curadas. Por conta das infiltrações, ou talvez da salinidade mantida no reboco argamassado com barro e areia do Panema. Nos umbrais, cantoneiras e portas havia um azul cansado mesmo antes de ser. Um branco e um pastel lagartixando as paredes. Minha mãe via ursos polares e palhaços, e um lobo preste a atacar uma mulher que não tinha rosto. Noutro momento do dia, o calor era mais intenso, e um dos ursos polares acabava virando o elefante de Istambul de quando ainda era Constantinopla. E tudo não passava apenas de parte de um todo que ainda estava pra acontecer. Episódios violáceos, com gosto salgado de lágrimas, guardados no fundo do poço das memórias, aflorados. E isso era o suficiente para acordar sonhos velhos. E que jamais conseguiriam acalentar um menino triste que não parava de chorar, um choro triste, choro de fim de tarde. Tudo porque o pai não o deixou ficar com o filhote de cachorro que ganhou, talvez de Geraldo. Mas o menino não seria menino a vida inteira. E uma vez menino velho ganhou outro cão.
A cadela de Jário teve cachorrinhos. Cães de bom pedigree. Pastor alemão era venda certa. Vendeu quase todos. Estava escrito em algum canto que aquele último seria dele. E foi. Jário disse que não precisava pagar, sabia que seria criado com carinho. Não era um cãozinho, era uma cadela. Saramandaia era nome de novela da época. Porque aquela cadelinha era sonho de menino que precisava voar. E voou o tempo, sobrevoou o Rio, cão alado. Cão do segundo livro, dotado de asas. Braços abertos. Não achava nem ruim, nem bom, o apelido. Tantos outros deviam haver. E isso acabou por lembrar, do tempo do Grupo Escolar Padre Francisco Correia, de como os adultos recomendavam as outras crianças para manterem distância. Não se sentia uma ameaça da terceira guerra mundial, uma catástrofe ou a vida no planeta Alfa Centauro. Sucedeu que numa das vezes que foi buscar leite na casa de Seu Domício achou a carteira de alguém na sarjeta. Havia dinheiro, documentos. A ingenuidade de criança levaria a mostrar a mãe, e foi orientado a devolver. Assim o fez. E acabaria suspeito de ato impróprio, acusaram-no de ter surrupiado o objeto de um lugar seguro, onde “na certa” deveria se encontrar.
E não parava de contar histórias incríveis! Onde agentes da KGB, ou do KGB? Isso pouco importa. O fato é que se infiltravam noutras histórias de um irmão que escreve apaixonadamente, feito um louco, desvairado. De como já havia andado pela cidade e personagens de contos daquele, saltaram na sua frente, cobrando-lhes atos rebeldes, que somente um trem bala retrocedendo no túnel de muitos calendários, conseguiria resgatar. A “admoestação” havia se fixado num canto qualquer da memória e vez outra saltava. Como o trecho citado em “Zé Sapo – Saltimbanco Condutor”
“Manhã de domingo de carnaval. Ano qualquer, de 2000 em diante. De azul anil, vasto céu, admoestado por nuvenzinhas pálidas de verão.”
Finalmente ia entrar na Mesquita. De repente, salve Jorge! Com seu cavalo saltou sobre. E os céus do Rio, ameaçador. Um dia quiçá seriam vividas histórias novas se fundindo com outras velhas. Se espalhando pela cozinha, por cima da geladeira. Empoleiradas na tesoura que sustenta os caibros. Em cima da mesa, se molhando de café e sintaxe. Colóquio infindável que fatalmente culminaria com riso. Riso às vezes rido, às vezes gargalhado. Em meio a muita fumaça e cinza de cigarro, riso-espasmos, crises de tosse. E Breno Accyoli vindo, num turbilhão de sentimentos, fazer-lhe constatar que se encontrava num exílio. E tudo o que importava naquele instante era rever o Rio, a companheira, os filhos. E se foi.
Fabio Campos 25.10.2012