João Acácio estudara no Grupo Escolar Padre Francisco Correia. Tantos anos já se passaram desde então. Desses mistérios que jamais conseguiremos explicar direito, veio-me a lembrança dele naquele instante. Será que ainda vive ele? Não sei. Vivo eu. Quando o conheci, percebi-o menino diferente dos demais de infância. Comprido e magro, trazia morenice, na pele, nos olhos. Os cabelos pretos luzidios, terminava numa pequena franja. Falava com voz suave, que deslizava por entre lábios finos e dentes perfeitos, alvíssimos. João Acácio era diferente dos outros meninos, não apenas fisicamente.
Estabeleceu-se entre nós, relação de amizade mútua. Num daqueles momentos em que estávamos ao recreio, contar-me-ia que não era filho legítimo, e como acabara sendo adotado. Sua mãe de sangue, teria sido uma jovem cabocla, que o concebera com um índio. Era quase uma menina quando pariu a ele. Teve-o sozinha, embaixo de um pé de Cácia Ferrigínea, no meio da noite, dentro da mata. E o abandonaria à sorte, envolto num pedaço de pano. O raiar do dia, e o calor do sol veio lhe aquecer. Mosquitos e formigas vieram, atraídos pelos despojos do parto. O que acabaria atraindo também o perdigueiro de Doutor Apolinário. O caçador casual, encheu-se de espanto ao ver a criança que não chorava, pensou-a morta. Não estava. Esqueceu a caçada e retornou à casa com o menino. Aquele se tornaria seu padrasto, e Dona Flora a esposa, sua mãe de criação.
Dona Flora e Doutor Apolinário da Mata, já haviam jubilado, quando veio João Acácio. Os Da Mata, era família tradicional da sociedade santanense. Sete filhos tiveram deles mesmo. Todos já saídos da casa paterna. As filhas cursaram o normal. Professoras e donas de casa, quiçá bem casadas. Dois dentre os varões, seguiriam a vocação do pai, bacharel em Direito. O bosque onde o pequeno Acácio havia sido encontrado ficava dentro de uma das propriedades do casal. À fazenda Barra do Tigre, que começava em Alagoas e adentrava a terras pernambucanas. Dona Flora, ex-funcionária pública estadual, não recebera de bom grado a chegada do rebento rejeitado. Àquela altura da vida, tendo os seus já se encaminhado aos destinos. Preferia a calmaria, nos aposentos da confortável casa que possuíam à rua do comércio, em Santana do Ipanema.
Sinhá Flora gostava de plantas ornamentais. Tinha-nas em abundância e as cultivava em todos os ambientes da casa. Comigo-ninguém-pode à sala de visitas - pra espantar olho gordo - dizia. Sugestivos Copos-de-Leite na sala de janta. Samambaias enchiam de verde as idéias de quem cruzasse os corredores. Orquídeas e tulipas num herbário. Espadas-de-São-Jorge e bromélias punham graça ao jardim. Amores-perfeito - amarelos, lilás e púrpuras – carinho especial recebiam, tanto que conversava com eles. Deitando-lhes zelo como a filhos, não adotados, mas legítimos. Indo à feira, procurava adquirir novas mudas, e apresentava as demais.
A senhora do Doutor Apolinário, desenvolvera uma empatia desfavorável por João Acácio. - agora esse, já se tornara o menino que eu conhecera - Roupas e calçados folgavam no corpo franzino, comprados sempre um número a cima do seu, pra demorar a perder. Humilhava-o. Jamais demonstrando isso na presença do consorte, que dispensava mais amor ao garoto que aos filhos genuínos.
Obrigava-o a realizar serviços, tais como limpar o jardim, lavar a privada. Mesmo dispondo de empregados para tais serviços. Por vezes privava-o do lanche matinal, ou mesmo das principais refeições, se ausente se fizesse o esposo. Punha-lhes ameaças a sua própria a vida, se acaso o menino relatasse ao padrasto o que lhes ocorria, da parte dela. Dúvida nenhuma tinha João de que ela seria capaz de lhe fazer algo mau. Afinal gostava tanto de plantas e estudara os poderes maléficos de algumas. Conhecia plantas que podiam matar uma pessoa, se acrescentadas à comida.
Além do que já possuíam, os padrastos de João Acácio tinham outra fonte de renda. Advinda do aluguel de casas. Era propriedade deles, todo um lado da Rua da Cadeia. Mais de dez casinhas estreitas de três e quatro cômodos. A cada fim de mês os inquilinos, iam à mansão dos Da Mata, pagar o dinheiro do aluguel. Bons pagadores ganhavam muda de planta. Dona Flora prometia visitar o inquilino pra ver se cuidava da planta, o propósito mesmo era ver como estava a situação da casa. Maus pagadores recebiam cobrança, num recado bem comportado, levado por João Acácio. Sem que o Doutor Apolinário soubesse que dessa maneira se procedia.
Certa vez, determinado soldado por nome de guerra Craveiro, do quartel de Mata Grande, fora designado pra destacar em Santana do Ipanema. Alugara uma das casas de Dona Flora. Um belo varão, no vigor da juventude. Casara-se não tinha ainda um ano. O pagamento do aluguel, todos os meses, ia ele mesmo levar. Tudo aparentemente tão correto. Seria se João Acácio não passasse a desconfiar da madrasta. Inquietava-lhe a atitude de receber o militar presenteando-o sempre com um Amor-perfeito. Numa ocasião amarelo, noutra rôxo. Levava-o com especialidade, pra dentro do escritório do Doutor Apolinário. Trancafiados, se demoravam nesse comércio. Numa dessas vezes, cobrindo-se dos devidos cuidados, João aproximou-se da porta. Procurou escutar de lá dentro, sem nada conseguir. Arriscou olhar pela fechadura. Eis o que viu, sua madrasta sentada sobre a escrivaninha do Doutor. O vestido içado até a cintura, desnudava coxas e ventre. A Flora enlaçava o Craveiro entre as pernas. Tendo este as calças arriadas, beijavam-se na boca. Viola tricolor era o código, roxo se o Doutor estivesse à casa. Amarelo, livre estava.
O tempo, senhor da razão, encarregou-se de separar os amantes. O soldado Craveiro, meses depois seria transferido pra destacar noutra praça. O tempo separaria também, Dona Flora de Doutor Apolinário. O bacharel acometido por um estranho mal, aos poucos foi definhando, sucumbindo. Ao cabo de menos de um ano, viria a morrer vitimado por problemas respiratórios. O senhor tempo, sempre ele, se encarregaria de levar pra longe de minha infância, o grande amigo João Acácio. Bem, creio que está chegando a hora de encerrar por aqui nossa história. Pois tudo que por acaso acrescentássemos daqui por diante, não passaria de mera especulação.
Fabio Campos