Havia um anjo, que se punha sentado no pináculo da igreja. Sereno, de pernas cruzadas. Sim, eu o via, estava lá. Aonde os frisos e arcos arquitetônicos arrematavam, entre a cruz e a torre da campânula. De onde estávamos não dava pra ver suas asas. Não precisava, era um anjo, eu sabia. Além de mim, ninguém mais o via. Também ele olhava a rua, o movimento daquela tarde. Para nós tudo era novo, nunca tínhamos visto. Estrangeiros éramos ali.
As casas. Sem elas não haveria cidade, não haveria a rua que olhávamos. Estavam lá, ainda que desfalcadas, estavam lá. Carregadas de tragicidade víamos as que sobreviveram. Como se nada, nunca tivesse acontecido, lá estavam. Como se nunca tivessem passado pelo que passaram. Convidados que fomos a seguir adiante, fomos olhar o rio. Os visitantes precisavam conhecer o vilão. O fantástico ser monstruoso, a que, num tempo não tão remoto, destruíra a vida de tantos. Era preciso que soubéssemos dos que haviam padecido, e se foram. Saber dos que padeceram e ficaram. O rio, agora um fantasma, de tudo e de todos. Bastariam as nuvens empardecem, e os trovões roncarem pras bandas da sua cabeceira. Assustava a plena luz do dia. O rio que tragara a felicidade e a cidade, e os destinos que levou pro mar. Íamos ver aquele que detinha o poder de decidir quem devia e não, ser feliz. Não sabiam como, nem porque, mas isso era parte de seu poder. Continuávamos andando na rua, de repente uma ponte e o vimos. E lá estava. E se nos mostrou um rio pacato, manso. Tão relegado a rio, tão submisso feito nosso “Panema”. Diferente daquele que pintaram, de uma época não tão pra trás assim. Enquanto captavam os ouvidos atentos os relatos, daquele dia fatídico, os olhares iam lá longe. Os olhos como se quisessem virar rio. Como se os cílios dos observantes, de um momento para outro, se transformassem em tentáculos, ou imensos cordões, que talvez tentassem fazer daquela cidade um descomunal presente, embrulhado com o papel do tempo enlaçado com as lágrimas dos que sobreviveram. As serras eram paisagens novas, e diziam novos relevos, e exigiam que nossos sentidos assimilassem aquela realidade. Paisagem renovada, vistosa, resquícios do que um dia fora: mata atlântica.
E tudo era úmido. Nada, ou quase nada, remetia ao nosso sertão como de fato o conhecemos. Acontece que pra onde quer que vamos, vai nosso legado conosco. A encosta escarpada ameaçava vir interditar o passeio. Quem sabe naquele dia, uma barreira interrompeu o trânsito? Árvores frondosas, exibiam ventres volumosos de raízes lenhosas, que não conseguiram entranhar a terra escura. A força da enxurrada havia arrastado a porção de terra que as circundavam. E punham a mostra o esqueleto retorcido de carnes expostas, de celulose e lignina lustrosa, feito músculo de negro açoitado, fugidio pro quilombo, logo ali. Castanhais, pinheiros, caramboleiras, tamarindos, felizes pela tarde de sol tímido, anuviado, de tarde chuvosa, revestiam de verde os olhares. Ruas dançantes, num bailado como a um piano que fora estraçalhado, tornado desiguais os paralelos, que subiam e desciam numa sinuosidade desconexa, como nunca quisesse se encontrar. Uma casa, um terreno baldio. Casa, espaço vazio, casa, escombros, casa, ruína de uma casa, encostada noutra casa, que de tanta umidade ameaçava desabar. Tudo refletia umidade. O sol refletia as gotículas de chuvas, faziam reluzentes as folhas verdes. As paredes das edificações choravam sangue de barro vermelho. Descendo desde a cumieira, ora traziam uma linha de molhação, dizendo até onde as águas haviam subido. Infelizmente não conseguiram livrar-se do excesso de água, depois que submergiram nas águas do rio, e nem o tempo conseguira dissimular.
Decidimos que era preciso conhecer o lugar onde éramos estrangeiros. Enquanto íamos andando, a professora ia contando, recordando os fatos que lhe ficaram marcados na alma, naquele dia dantesco. Lembrava dos fatos à medida que ia passando nos lugares onde eles ocorreram. Se lá longe. Ela apontava mostrando. O rio tomou a cidade em questão de minutos. Os que conseguiram se salvar largaram tudo pra trás, não dava tempo salvar nada. Os que se salvaram, lá de cima, da encosta viam uma haste negra e fina tremulando no meio do mar de água barrenta apontando pro céu. Depois que as águas baixaram descobriu-se o que era: os trilhos do trem, retorcidos. A Biblioteca Municipal, A Estação Rodoviária, A quadra poliesportiva, O juizado das Pequenas Causas, agora só havia o terreno vazio, foi o que restou. Os ônibus, os carros de passeio, naquele dia, desciam na correnteza, feito barquinho de papel que os meninos de nossa infância em dia de chuva, punha na sarjeta pra água levar.
"-O rio tomou muita água! -Ligeiro! -Depressa minha gente! -Salvem a si mesmo! Não dá tempo levar nada!” O rio foi até a prefeitura, não respeitou o segurança prostrado a entrada. Molhou e sujou de barro a farda Branquinha do contínuo. Subiu pelas pernas do chefe de gabinete, entrou na sala onde o prefeito despachava. Invadiu, sem pedir licença, que atrevimento! O prefeito e a primeira dama tiveram que escalar os móveis, subiram ao teto da prefeitura. Também até a escola foi o rio, feito menino danado tomou lápis e os cadernos dos pequeninos, se apossou dos livros da professora, apagou a anotação no quadro de giz. A professora não podia por o rio de castigo. Fez o que pode, pela janela escalaram o teto da escola, ali se sentiam a salvo. Rezando para que as águas não subissem mais. O dono do armazém de secos e molhados, agora só tinha molhados. Com seus empregados tentaram por a salvo a mercadoria. Em vão, o rio estava faminto, sedento, e vorazmente foi engolindo, sacas de feijão, arroz, fubá, charque e grades de refrigerante. De repente um monstro de ferro no meio das águas, sendo arrastado pela correnteza, somente parte dele dava pra ver: Era a fornalha da usina de açúcar! Descia rápido, tragicamente a gigantesca parafernália de aço acenava, levada sabe Deus pra onde.
Dona Maria morava sozinha, na beira do rio. Bem ali, ao lado da ponte, construíra sua morada, de dois pavimentos. Dona Maria percebeu a água entrando de casa adentro. Sabia o que estava acontecendo, rapidamente pegou dinheiro e documentos. Já na porta ia saindo, lembrou-se da sua cachorrinha Lili. Não podia deixar Lili. Voltou, tinha que dar tempo! Onde estaria Lili? No primeiro andar, subiu. Achou Lili, estava na cama! Sua danada! Vamos! Pronto agora era só descer e salvar-se, a si e a Lili. Cadê a escadaria? Não tinha mais degraus, só água. Tempestuoso, deseducado o rio subiu, e invadiu o quarto. Dona Maria não teve outra alternativa a não ser alcançar o telhado do sobrado. Mas o rio foi em seu encalço. E o rio abraçou dona Maria e Lili, e arrastou-lhe pro turbilhão de água. E nunca mais dona Maria, nem a cachorrinha Lili voltariam ao sobrado.
Pra professora a imagem que ficaria marcada pra sempre, era a de uma menininha, resgatada por um pescador, toda molhada, envolta num cobertor, tremia de frio. Perplexa, olhava fixo pra monstruosa serpente d'água barrenta ameaçadora, ia devorando tudo que interpunha seu caminho. Os olhinhos molhados não tirava-os das águas turbulentas, talvez alimentasse a esperança de ver surgirem dali, seus irmãos, sua mãe. A professora confidenciou que por muitos dias, após o sinistro acontecido, foram muitas noites insones, e saía de casa, perambulava pelas ruas desertas, escuras e tristes. As vagações nas madrugadas culminavam sempre na barranca dele, o rio, agora domado. Ali passava horas, fitando as águas calmas e escuras. Chorava, e chorava e perguntava: “-Por que?”
Mais uma vez, volvemos nosso olhar pra fachada da igreja, que o rio lavou naquele dia. Apenas a cruz ficara emersa. A linha d’água divisava dois tons de branco: branco seco, branco molhado O anjo continuava lá, encimado no pináculo. Um olhar mais acurado, mais profundo, mais transcendental até lá lançado, e conseguiríamos ver, em cima dos telhados, meninas e meninos alados, brincando de “pega”, brincando de soltar pipas azuis celestiais, e se deliciavam com algodão doce, feito de nuvens em dois tons de branco.
Fabio Campos