
-Seu Antonio, Dona Maria, Júlia
está grávida. Queremos nos casar, o mais breve possível!
Da mãe vieram palavras de
aflição. Um anjo desses que são atirados a traquinagens arrebatou minha alma. E
a levou alto, muito alto. Pousamos no pináculo do tempo. Retornei à época que Júlia estava pra nascer.
Eu tinha muito medo, daquele momento. Pensava: E se Maria entrasse em trabalho
de parto ali naquele fim de mundo que morávamos?
Voltemos pois, um pouco mais no
tempo: Eu havia feito exatamente como minha menina Júlia fazia agora, há
dezoito anos atrás. Disse a Seu Floriano, meu então futuro sogro, que Maria
estava grávida, e que eu queria casar com ela. Tudo foi realizado nos
conformes. Faltando vinte dias pra completar os nove meses, Maria foi pra casa
de sua mãe. E completados os dias, Eduardo veio ao mundo, numa madrugada do mês
de agosto, no meio da caatinga nordestina, no sítio Calango Verde. Foi aparado
por Dona Mãezinha parteira, a mesma que aparou Maria, a mesma que aparara sua
Mãe Marinete esposa de Seu Floriano. Acho que também Seu Floriano por suas mãos,
viera ao mundo.
E lá estávamos nós três, eu,
Maria e Eduardo. Era uma chuvosa noite do mês de julho. Morávamos num casebre
na beira da praia da Vila de Porto de Pedras. Maria teimando não quis ouvir-me quando lhe pedi
que viajasse, pro sertão pra casa de sua mãe. Em vão meu pedido, estava decida
a dar à luz a nossa filha Júlia em casa mesmo. Dizia que já tinha um filho
nascido da mata branca, queria agora uma filha nascida nas águas de sal. Muito
poético dizer isso agora. Pra mim naquela hora só havia aflição. Eu temia pela
sua vida e a de Júlia. Temia pela minha falta de preparo na hora do parto. Morávamos
numa choupana na beira da praia. Morar ali, fora uma decisão minha. A casa
pertencia á paróquia de Nossa Senhora da Glória que havia cedido à escola onde
eu ensinava. Morar ali, era a concretização de um sonho nunca antes sonhado,
porém simplesmente vivido. Assim, simplesmente vivido. Ficava um pouco afastado
da Vila de Porto de Pedras. Gozávamos de uma paz indescritível, acordar todas
as manhãs olhando o mar. Olhando o sol saindo de dentro do oceano. Aquela
imensa bola de fogo que acordava o mundo. Os pescadores a muito já haviam saído
pra lida, breve estariam de volta trazendo os frutos tirados do mar. Engraçado,
pescador colhe o que Deus semeou. Meu Deus, como era bom sentir o cheiro do
mar, a brisa da praia. O canto das ondas. A maré ora subindo, pra noutra banda
do dia secar. Andar na praia de manhã, enfiar os pés na areia fina e fria.
Sentir a onda brincando de correr pra molhar nossos pés. Eduardo tinha apenas
três anos.
E naquela noite tempestuosa e fria do mês de julho, muito embora já tivesse nome, já tivesse nove
meses de vida, Júlia ainda não estava entre nós. Iniciou-se na tarefa de querer vir
ao mundo naquele dia. Chovia muito. Pra ir a Vila eu teria que enfrentar o
temporal, atravessar a pontezinha de tronco de coqueiros, do riacho do Patacho.
Tudo tão simples, tão rústico. Parecia que não havia nada a fazer, a não ser
entregar aquele momento a Deus. Estava consumado. O que havia de ser feito com
certeza não dependia de mim. Só agora sei, não era eu quem estava no controle. Resolvi fazer como via nos filmes. Coloquei
água no fogo pra esquentar, não sabia bem qual seria a utilidade disso, mas
fiz. Acho que serviu pra banhar Maria e Júlia depois que nasceu.
Júlia nasceu. Eu estava ali ao pé
da cama, segurando a mão de Maria. A primeira figura humana que os olhinhos
molhados de Júlia viram fui eu. Lembro de tê-la colocado de encontro ao colo de
Maria que lhe ofereceu o seio. Eduardo dormia. Sai da casa numa carreira doida,
enfrentado o temporal. Cheguei à Vila, direto pra casa de Dona Dora parteira.
Quase não acreditou quando disse que Júlia já havia nascido. Precisava de seus
serviços para concluir o parto. Ela não parava de falar, parecia minha mãe a
dar-me reprimendas quando praticava um ato traquino. Dizia coisas a mim como se
falasse com Maria. Eu já nem mais a ouvia. O que me confortava era que ela
fazia o que eu mais queria: acompanhava-me até a casinha da praia.
Muito tempo se passou e viemos
morar no sertão. Na rua Delmiro Gouveia em Santana do Ipanema. Júlia agora
tinha onze anos quando pediu pela quinquagésima nonagésima vez que contássemos
a história do seu natal. Sempre pedia, antes de ir dormir. E numa noite dessas,
ela na cama, em sua camisola de dormir, seus longos cabelos derramado no
travesseiro, olhava com seus olhos fixo pra meu rosto ouvindo. De repente
falou:
-Papai, eu não estou conseguindo
mais ver o senhor! O que tem meus olhos?
Uma aflição cortou-me o coração.
Disse para mim mesmo ter calma. Perguntei-lhe o que sentia. Disse que os olhos
doíam muito e que tudo estava ficando escuro. Nada enxergava. Maria clamou a
Deus. Prostrada, lançou-se num pranto misturado com lamento e oração. Tudo
junto. E bradou olhando pro alto tendo as mãos elevadas à cima da cabeça:
-Valei-me meu padrinho Frei
Damião! Antônio! Vamos levar nossa filha a um médico, pelo amor de Deus! Nossa
filha está ficando cega...
Não sei como, ainda hoje me
pergunto por que, lembrei-me de um frasco de água que trouxemos da Vila de
Canafístula, da fonte de Frei Damião. E pedi a Maria que o buscasse. Ela o
localizou na dispensa e prontamente o trouxe. Molhei a ponta do lençol com que
Júlia se cobria, com a água do frasco. E comecei a passar em seus olhos. Num
gesto instintivo ela não parava de esfregar os olhos e eu pedia que ela parasse
daquilo, que deixasse a água penetrar suas vistas. E ela falou:
-Pai meus olhos não mais estão
doendo, e tudo já não é mais escuridão. Eu já consigo ver! Eu consigo ver o senhor papai.
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