O Pintor do Diabo

Darei de contar história, que só serve pra se contar de noite. Noite, em que os ventos vão uivar pelas frestas das portas, a se tornarem sombrios assobios, lamurioso uivo. Vindo provocar calafrios que dariam de ir percorrer o mais profundo do ser que sentiu. E só o sabe o quão horripilante seria os que já passaram por isso. Já muitos anos se passaram desde então, porém uma única vez, nos lembramos de ter sentido. Já  muitos anos se vão. E me foi tão marcante, que desde já ponderei mil vezes, se enveredava ou não, na arriscada e difícil empreitada de contar.

Naquela rua morava um pintor. Na verdade um artista plástico, pois pra ser pintor bastaria que pintasse, fosse o que fosse. Ele morava na casa da esquina que dava acesso ao chafariz municipal. Ao lado da casa, ficava a cadeia pública, um bloco solto, quadrado. De concreto e argamassa, sobre si mesmo erguido. Em dois pavimentos soerguidos, um térreo e um superior. Dois pares de janelinhas laterais. As duas da parte inferior, ornadas de vigas de aço enxadrezada, de tão velhas enferrujadas. As duas superiores, ornadas de madeira almofadada e envidraçadas, todas traziam sinais maciços do desgaste do tempo. A porta única com três degraus de acesso, em tudo, lembrava a antiga cadeia da sua terra natal. O sóbrio prédio da cadeia pública era ponto limítrofe entre duas ruas. Rua Vigário Belo lado da casa do pintor. Rua Nossa Senhora da Piedade, do lado contrário, mas que todos só chamavam Rua da Piedade. Dando-se um giro de trezentos e sessenta graus, ficava-se de frente pro mar. Esplendor de dois tons azuis, um deles esverdeado, com espumas brancas. E davam-se de se tocar. O que era etéreo flutuava no ar. E de um infinito ao outro acabavam fundindo-se, tempestuosamente tendo que vir morrer na praia. Trazendo de lá longe, barcos, homens com cheiro de peixe, marisco e maresia.

A primeira visão veio quando olhou pra data, afixada em alvenaria de alto relevo, na base da torre central da igreja: 1638. A igrejinha era muito menor que a cadeia, ficava lá adiante. Seguindo a fileira de casas da rua, todas olhando pro mar. O campanário, ao lado, arribado numa trave, de badalo, pendido numa velha corda, carcomida pelo tempo. Madeira, pintura e aço todos comprometidos pela salina. As três torrezinhas floreadas em frisos misturando rococó e barroco, dizia: Igreja branquinha de doer, feito pelo de carneirinhos, entornada de azul claro nas bordas! De certo, lá no altar-mor, aos pés da imagem da virgem santa, anjozinhos só cabeças e asas, olhar nipônico, bocas minúsculas de quase sorriso. E viu a caravela chegando, trazendo trezentos negros nas entranhas, e trezentos anos de história separavam tudo a todo momento. O altar-mor, o alto mar, a nau imponente, porém resignada, balouçava ao remanso das ondas, touro bravo, domado pelo laço e o pesado aço da âncora, descida ao fundo. Não podia avançar mais do que havia avançado, sob o risco de se espatifar sob os arrecifes de corais, que formavam uma barreira natural no arrebol. Ainda mais perigosos e ameaçadores, quando a maré ia abaixando. E deu de iniciar chuva fina, que se vinha sempre no cair da tarde, tornando úmida, a mata que circundava a vila, que circundava a entrada da noite.

Os escravos, homens, mulheres, trazidos até a praia nas pequenas embarcações, adornados por grilhões e correntes, que lhe iam atando os pés, e grotescamente lhes uniam pelos pescoços. E chegavam tão fracos, e tantos dias haviam ficado na mesma posição, que os músculos desacostumados lhes imprimiam dificuldade no andar. E nem se davam conta que faziam história. No caminho antes de chegar à cadeia, um dos escravos, tombou sob as grandes pedras do calçamento. Calçamento feito por mãos de irmãos seus de sangue. E defronte da igreja iam. O capataz, do senhor dono do lote daquelas vidas humanas, muda ordem recebeu, aproximou-se do negro estendido no passeio. Sem dizer palavra, iniciou uma série de chicotadas com um relho de couro, cheio de esporões de ferro pontiagudos nas hastes que abriam enormes cortes no dorso do negro. Negro sangue do negro, jorrava. E salpicava de negro sangue, a negra pedra. Dentro da noite luzidia, de fina garoa que caía. E o bisavô do pintor da Rua Vigário Belo, que era  mercador de escravo, tendo consciência ou não, ia pintando seu mais macabro quadro no cais do porto de pedras. Pedras tão duras quanto o coração do algoz. Duras quanto o dono daquele lote de vidas humanas de cujas cor da pele perante ele, tornavam-se seres inferiores. 
  
E como se do nada, apareceu uma mulher, que trazia um véu sobre a cabeça, as vestes brancas reluzentes lhes desciam até os pés. Disseram em jura, os que observaram aquela cena que do rosto da bela dona emanava uma luz que iluminava toda a extensão da rua.  E tomada de coragem, resoluta a madona segurou na mão do capataz. Pedindo com humildade porém com veemência e sagacidade, que parasse de açoitar o pobre escravo. O homem embrutecido nos atos, não tinha a menor intenção de interromper seu ato vil. Intencionava sim, dum safanão livrar-se da religiosa, pois assim a julgava ser. Dizia em si mesmo, só podia ser uma freira, vinda ou ida, do convento das irmãs carmelitas. Cujo convento ficava no fim da rua. Porém, paralisado ficou o brutamonte ao encará-la. Havia algo nos olhos daquela mulher que lhe encheu de horror. Crispou-lhe o semblante, e como se aquela mão lhe queimasse as carnes do antebraço, por onde fora segurado, se desvencilhando saiu em desabalada carreira. Aos gritos, despencou em direção a praia. Chegando ali entrou no mar, e nunca mais foi visto.

Professor Zenofonte, era pintor. Não era a primeira vez que era convidado a ir a sua casa, porém foi naquela vez que teve à segunda visão. Aliás, não cria que podia ser considerada visão. Uma vez que se apresentava tão real, distante de algo metarreal, muito menos insanorreal. Tudo estava lá, ele mesmo podia tocar. Estavam no sótão do velho sobrado. As telas caprichosamente pintadas. Talvez um total de trinta e três delas ali estavam. Estendidas em cavaletes, cobertas com lençóis brancos, que foi retirando um a um. Cheios de poeira e fungos admirava-as. Bancada transmutada em arte, de tantos restos de tintas por descuido derramadas. Repleta de pequenos objetos: estiletes, trapos tintos, copos de louça branca, melados de tinta ressecada. Jarros cheios de pincéis de pelo de camelo de diversas espessuras, e tintas, em fracos de cores opacas. Vernizes cristalizados, laca de garância petrificada. Tudo entrelaçado por teias de aranha. Senhor tempo se encarregara disso. Entre as obras, naturezas mortas, paisagens retratavam as ruas da cidade, em tempos de outrora.

E lhes apareceram mulheres nuas. Lindas mulheres, negras, morenas, brancas. Numa diafaneidade jamais imaginada, desfilavam como que se flutuassem, como se noutra dimensão se encontrassem. E aproximando-se, lhes faziam carinho. Carinho insano, inumano afago. E lhe lambiam a face, de barba apontada, lhes intumesciam o lóbulo da orelha. Toque sensual que eriçavam-lhes os pelos da nuca. Cobertas de sangue acariciavam-lhe o sexo semi rijo. Suas vastas cabeleiras, negras, volumosas, lisas e encaracoladas desciam-lhe pelo colo, e contrastavam com os pelos da púbis. Os longos seios fartos roçavam-lhe o rosto, e deles, emanavam adocicado cheiro de leite das impudicas mamas. E lhes vinham as cenas de maus tratos aos seus parceiros, no leito da rua. Vastas coxas carnudas, de escravas, retalhadas de faca. De cujas vaginas em flor despetaladas, brotava néctar em puro licor, em tons vermelhos. Como se acabassem de serem defloradas, a força. E foi se aproximando das telas até perceber que algo grotesco, desumanamente real ocorria. O bisavô de Zenofonte, Zoroastro da Hora, o mercador de escravos, também era pintor. E pra pintar aqueles quadros havia usado sangue de escravo. Tudo pra dar mais realidade as suas malditas, insanas e seculares telas.

Fabio Campos     

Sete Casas, Sete Pecados

Essa é história de infantes, que já foram dormir, ou quem sabe envelhecidos, jubilosos. E darão de contar, sobre tempos de outrora, dum chão de giz, num risco de avião. De ir aos pulos, de casa em casa, algumas num pé, pra noutras apoiar os dois. E ir chutando um caco de telha. E hoje, passados mais de dez lustros, o sentido da brincadeira vir dizer. Duma caminhada da vida, onde, ora estaríamos seguros, apoiados nos dois pés, pra noutros momentos passar por perigos físicos e espirituais, e ter de ir pulando num pé só. Porém a meta final, a que todos almejariam chegar quem sabe viria o céu.

Na rua dessa e daquelas infâncias tinha quatro casas. Aliás, como toda rua tinha muitas casas, porém quatro delas interessam-nos falar no momento. A casa da minha vó. Segundas-feiras, dia de feira livre, ficava cheia. Gente humilde, vindas dos sítios, de quase toda redondeza arranchavam-se lá. As montarias amarradas embaixo dos pés de fruta. Tinha um pé de fruta do conde, que a gente chamava de pinha. Um limoeiro baixo, de estender a mão e pegar limão. Uma goiabeira alta, de ter que tacar-lhe varadas para conseguir goiabas. No oitão do lado da nascente, um monte de panelas de barro todas emborcadas, pra não encher d’água da chuva. Sapos e grilos aproveitavam pra fazerem sua morada. Naquele lado tinha uma janela que de tanto viver fechada, criara limo nos encaixes. A misteriosa janela da dispensa de minha vó, que nunca ninguém veria aberta. Uma velha calha de zinco entortada pelo tempo, presa por pedaços de corda de agave aos caibros roliços, ia terminar num tonel revestido de argamassa enegrecida de musgo, apropriada para se camuflarem as jias. De dia, o sol vinha dourar o granito dos paralelos da rua. Nas noites enluaradas, pelo mesmo caminho traçado pelo sol, viria a lua, desta vez prateando o calçamento. 

Meus avós tinham compadres protestantes. De manhã cedo chegavam. Por horas discutiriam religião. Descrentes da santidade de Nossa Senhora desdenhavam: “-Nossa Senhora? Senhora de vocês! Minha mesmo não! Virgem? Não acredito!” E havia um moço chamado Zé Costa, que não era protestante, nem compadre, nem parente dos moradores daquela casa. Era só um bom moço. Ia até lá, porque queria namorar uma das donzelas da casa. Prestativo feito cão de caça. De pouca fala, respondia apenas o que lhes era perguntado, talvez receoso em deslizar na arredia língua portuguesa. Para agradar a pretendente, cercava de cuidado, os da casa. Ia muito longe buscar água, mas moça que é moça não dá valor a esse tipo de trabalho. E quando o pobre moço se ausentava, minha vó ralhava chamando-as de ingratas pelos desagravos. Apesar de que a água, vinda de tão longe, era salobra. Pra minha vó dedicação de um pretenso partido sempre devia ser reconhecida. Porém o pecado daquela casa, não era aquele orgulho. Era o orgulho por uma razão inexplicável, o padrinho de uma das meninas chamado Pizeca, que tinha uma pensão na outra rua, não ia até a casa da afilhada, nem os pais daquela, frequentavam sua casa. Quando viesse a páscoa a afilhada iria levar uma prenda, um peru cevado, e esperaria uma retribuição. Apesar de tudo permanecia neles, o pecado do orgulho. 

A rua era uma algazarra. Julieta e Terezinha eram irmãs e moravam na próxima casa, pelo lado do nascer do sol. E do viver da lua. Julieta na infância tivera poliomielite, por isso tinha os dois pés tortos, os dedos virados pra dentro. Terezinha tão jeitosa com os tecidos, os crochês, os filós, as rendas, e os fuxicos, principalmente com estes últimos. Enfim era pois costureira de mão cheia, de costurar pra fora. Pobre Julieta tivera dificuldade de aceitar o que o destino lhe havia reservado, invejava as moças que tinham os pés sadios. Diferente da irmã Terezinha tinha um coração bom. Mas nem seria a inveja o pecado retido naquela casa. Ainda havia uma maior tristeza no coração de Deus. Porque do coração de um pobre, ainda mais dos que padecessem duma enfermidade, não devia de ter escassez de caridade. Coração endurecido, que negava ajuda a um pobre, que lhes batia a porta. Isso pra Deus era ainda mais dolorido. E se podia se denunciar ali, havia o pecado da soberba, e da avareza.

Ainda faltava falar de três casas. A casa do lobisomem, do pederasta, e do ladrão. Primeiro precisamos saber que história é essa de lobisomem. De como em nossa história daria de aparecer uma figura tão lendária feito o lobo homem. Casteado era primo legítimo das meninas da primeira casa. Era o fato de ser muito esquisito nos jeitos e trejeitos, que levava-o a ser comparado a um lobisomem. Casteado tinha uma casa naquela rua, porém não morava nela, ou em canto nenhum. Desde a juventude a acromegalia, deformara seu corpo. Braços, rosto, testa, e queixo proeminentes. Mantinha nos lábios, um permanente sorriso imbecilizado. Na semana santa, nas luas cheias do mês de agosto diziam que corria bicho. Muitas vezes, pelos fazendeiros, contratado para serviços braçais, diziam, ter parte com o demônio, porque num serviço que normalmente levaria uma semana pra terminar, dava conta em um, ou dois dias. E depois comia com voracidade e esvanecimento de fera. Era comum encontrar Casteado amoitado em lugares ermos, fazendo sexo com jumentas, éguas e outros animais semelhantes. E sentia prazer em expor suas intimidades avantajadas. E se masturbar, pra moças e senhoras passantes verem. Aquele daria de amasiar no corpo, pelo menos sete demônios, que lhes imprimiam pecados da gula, e da luxúria. 

Um dia. Melhor dizendo, uma noite, minha vó chegou da igreja. Sentiu que sua casa tinha sido invadida, a porta da cozinha aparentava ter sido forçada. É preciso que se diga que era assim: quando era a boca da noite, depois da janta simples, onde não faltava um derivado do milho, regado a bom e encorpado café de caco, meu avô acendia seu modesto cigarro de fumo picado, com esmero manufaturado, numa fina folha de papel seda, branquinho de dá gosto. Saía, ainda na mesma rua, ia pra casa duns amigos, jogar baralho. Ali permaneceria até muito tarde da noite. O ladrão sabia de tudo isso, que minha vó ia pra igreja mais as filhas pequenas à tiracolo. Aproveitando-se do negrume da noite anuviada. Entrou pelo quintal passando com facilidade o cercado de arame farpado. Forçou o trinco da porta e entrou. Indo direto pro quarto, onde sabia escondido, a lata de manteiga do reino, onde minha vó guardava o apurado da venda de cocada, e doce de leite, que ela mesma fazia, e vendia em casa. Minha vó encontrou no meio do pequeno corredor o fitilho com que amarrava a latinha. Daí ficou evidente que algo havia acontecido. Pobre gatuno, faltas gravíssimas retinham n'alma. Era um que achava honestidade qualidade insuportável, aliado a falta de coragem de agir com lisura. Demônios se lhes refugiavam n'alma que infelizmente lhes imprimiria pecados da ira e da preguiça.

A derradeira casa que aqui relatamos, é a casa de Paulo. A respeito da casa de Paulo serei breve, e moderado no falar, ainda mais pelo desagravo em família. Homem do campo. Um camponês era Paulo, porém fascínio tinha pela vida urbana. Seduzia-o os encantos da boemia, de jogos e cassinos. Vestia-se com recato e cuidava-se com esmero, mormente as longas madeixas, empoladas de brilhantina. E depois de uma vida jubilada com Zefinha, companheira fiel. Depois dos filhos crescidos e criados, o comedido homem do campo revelou uma enrustida paixão por um mancebo, arrimo de família. A pobre companheira envergonhada, abdicou, já não mais tinha sentido ser a rainha daquele lar. Amargaria uma revolta incontida até vir a perecer. Sob endiabrados amores ardentes, de fogo fátuo, também pereceriam eles. E dos alagadiços iam se elevando aos céus, brando fumo da maldita fogueira das vaidades. 

Fabio Campos

Delírios e Divagações (Devaneios em VG, HTL, LD)

Havia uma estrada, e ia andando. E se deu conta, que todos os dias sobre ela ia. E era uma manhã de baia de cavalos, e feno dourado que lembrava campo de girassóis, num amarelo Van Gogh. Um dia que negava quase tudo. Dizia uma não brisa, na copa das árvores. Um não azul de natiê, no teto do mundo. Um não querer, ao menos não querer, que fosse daquele jeito. Olhando assim tudo parecia muito velho. Tão velho de tempo. Velho de mesmas coisas, de velhas angústias. De sapatos acostumados ao mesmo chão. De blusões que ao chegar a casa iam pendurar-se no cabide, atrás da porta do quarto. E lamentariam a chegada do verão, e tristemente esperariam pelo próximo inverno. E chorariam lágrimas de desgostos, e de mofo desbotariam.

Quem sabe fosse outono no hemisfério norte. E era muito provável que alguém naquele instante, se não estivesse vivendo, ao menos já teria vivido sua outra história. História de querer viver de desenhos e pinturas, porque era o que mais gostava de fazer. De sonho alimentado de quando tinha quinze e poucos anos. De ter um irmão de quem muito gostava, e admirava seus trabalhos, de exímio desenhista que era. Sonho de ir morar em Londres, de conhecer outros pintores e com eles interagir, e trocarem experiências, mas também divergir de suas ideias. E tempos depois querer morar em Paris, de ir estudar na escola de Belas Artes. De ter um amigo a que muito confiava, porém se desentenderiam profundamente, e se distanciariam um do outro, e por isso cairia em depressão, porque não valia a pena se desentender com o melhor amigo, ainda que o motivo da desavença fosse uma linda mulher. E devido a influência religiosa de família, querer ingressar num mosteiro pra estudar teologia em Amsterdã. De impressionar-se com o trabalho de mineiros pobres do subúrbio de Haia. De produzir uma série de desenhos à lápis, usando técnica de jogo de luz, tendo o ser humano como principal tema. E deixar-se apaixonar pela vida bucólica, a ponto de querer viver o resto da vida, na zona rural em Holanda.

E o caminho ainda se havia. Lá longe antigas fachadas de casas, de velhos telhados que de mais nada entendiam que não fosse telhar. Nos seus ápices, velhos e cansados, sempre os mesmos pensamentos deslizavam. Não tinha certeza se contra sua vontade, porém vinham encontrar-lhe, quase sempre nos mesmos lugares. Como se em cada lugar, um pensamento resolvesse morar. E permaneceriam ali. Presos numa estação de fóton energia, que somente seu dono tinha o segredo, o código, a chave para colocá-los em liberdade, ao menos quando por ali ia passando. Uma vez passageiro da espaçonave chamada mundo, novas divagações vinham resgatá-los, a cada manhã. Admoestados de sol e sofreguidão, corpo físico e metafísico, de músculos, vasos e veias irrigados, por energia cósmica percorridos. Células neurais, cada uma delas, dentre as milhares existentes, eletricamente ativadas, em sinapses de nauseabunda vertigem, colocando amaro gosto entre palato e assoalho lingual. E se aceitasse como delírios, tudo poderiam ser bem mais fácil, era só aceitar.

Ao chegar à escola, propôs aos seus discípulos que produzissem um nu artístico, e fez questão de ser ele próprio o modelo. E acabaria ficando excitado porque entre seus aprendizes havia meninos e meninas. Sentir tantos pares de olhos pousados sobre seu corpo desnudo, penetrando-lhe no mais íntimo do ser, percorrendo cada fibra, cada detalhe, desconsertou-lhe. E era como se o grafite dos lápis lhe perfurasse as carnes. De invadido passou a invasor. E se pôs lascivo. Não lembrava jamais ter se sentido assim, como se mantivesse uma relação pansexual, com todos os seus discípulos. A masculinidade exarcebada, tendo seu membro viril, saído do estado de repouso, o que infelizmente interferiria em todo o resultado da obra. E houvera múltiplos orgasmos.

Foram necessários muitos dias pra se recuperar. Muitos momentos de perda de equilíbrio emocional, da falta de identidade de si mesmo. A ponto de sentir-se ridículo, a um momento pelas atitudes pouco ortodoxas. Na falta de intimidade com o espelho, na aparência física, a muito custo aceita. A quase negação da carcaça, atrelada a seu espírito. E isso era mais do que suficiente para querer afogar as mágoas no álcool. Não possuía baixa estatura, não sofrera o infortúnio de ter tido na infância uma atrofia óssea incomum, a ponto de ficar com baixa estatura, como o amigo parisiense, porém, rejeitava a cor que tinha, e isso era suficiente para sentir-se, rejeitado por si mesmo. Herdara na pele, alta melanina, da tez materna. O pai era branco. E já ia o meio dia quando sentiu-se Henri Toulouse-Lautrec. Na sua cor, nas suas aquarelas, nos seus guaches, cheios de luz. Abrasados de tons amarelos, dos cabarés que frequentava, e das prostitutas que desenhava e pintava. Descontraídas, desleixadas, se quer sabiam que lhes servia de modelo. No começo era cerveja e vinho, mas o gosto foi ficando apurado. E as bebidas finas, acabaram substituídas por destilados fortes. Era a fase do prazer oral.

Leonardo se fez no mesmo dia, quando diluía-se a tarde naquela quase noite. E o pano de fundo daquele cenário deslumbrante, era um céu marmóreo, como que feito a cinzel e martelo. Sem dó nem piedade feito. Providencial tarde pra se ir ao necrotério, do hospital psiquiátrico. Dissecar, manipular cadáveres, na intenção de obter mais conhecimentos de anatomia. E sob àquela quase noite ferindo a tarde, quis pintar Monalisa. Na sobriedade dos trajes escondia bela curvas, do ventre da deusa Europa, de Zeus. Tarde de enigmático sorriso de Monalisa. E Gioconda que nunca se aceitou menino, apenas sorriu.  

Fabio Campos  

Lembranças Por Tras de Um Grito

Tributo ao Cacique Seattle da Tribo Duwamishi

Airumã não dormira aquela noite. Olhos fixos no manto negro defraudado. Acabaria por testemunhar um azul cobalto, fluindo pelos flancos do mundo, se insinuando sob o negrume dum céu profundo, misterioso, empoeirado de estrelas. Pra em seguida vê-lo rasgando-se em nesgas de amarelo de cádmio, transmutando-se em etéreo lúmen matinal. E eis que era dia. O índio entrou na oca, e acordou sua filha Manacy. E dariam de iniciar uma marcha. Pés desnudos seguiram, lentamente seguiram. E era aquele avançar como passos de um par de bailarinos talhados no ébano. O sentido da audição dava de captar mavioso canto de jandaias e calopsitas saudando o dia. Exuberância de ópera regida pela mãe natureza. E a paz proporcionada naquele pedaço de chão, não combinava com a inquietação que ia, no coração aflito, encerrado dentro do peito do índio. E lentamente avançavam, rumo a um destino. Destino de índio. No farfalhar de asas duma borboleta habitava trágica verdade de Manacy. A luta primeira que travavam era consigo mesmo. Infelizmente alguém morreria. 
     
O índio, e sua filha, vistos assim, embrenhados de imensa mata, assemelhavam-se a Minotauro e Ariadine no labirinto de Dédalos. A mata e os índios tinham uns aos outros por companhia. O índio, a índia, a mata conversavam conversa muda. E abraçavam-se, numa troca de carinho, e caricias de amantes. Olhos de lince captavam movimentos, os mais sutis. Como o piscar de uma coruja, escondida no oco de uma árvore. Uma tarântula que se aventurava na busca de uma presa, podendo naquele mesmo empreendimento ser predada. Respirações compassadas.  Atos reflexos, pra captar o ambiente, o perfume das flores. O adocicado cheiro da seiva das plantas, fluindo por dentro dos vasos lenhosos. Levando a boca vez outra, uma folha pra desfrutar o sabor de seu sumo. O cheiro de húmus revirado nas entranhas do solo, subia até as narinas dilatadas. Gravetos, seixos pontiagudos pareciam desviar-se, dos seus pés dando-lhes passagem. Airumã, braços titânicos, tórax largueado, de potentes músculos elevava o corpo de Manacy no ar, para livrá-la duma planta urticante. Esquivavam-se para não tropeçarem nas inflorescências recém brotadas, nos escaravelhos, em suas expedições matinais. Enquanto formigas, apressadas arquitetavam planos de armazenarem suprimentos de alimento, junto as veias e artérias da mãe terra.

Airumã deu de iniciar antigas lembranças. Recordava-se do tempo de curumin, de como achava sem graça, ser uma criança indígena. E de como achava humilhante pra um futuro guerreiro, as obrigações com as mulheres, ter que fazer serviços de menina. Pegar água pra os serviços da oca. Mas tinha também o lado bom, subir em árvores para colher frutos. Árvores gigantescas, de fino caule, que se partiria, se fossem escaladas, por um índio adulto. De como desejou ardentemente que chegasse o dia de sua iniciação. Jamais esqueceria quando o cacique chamando-lhe, pediu que o seguisse, até a beira do Ibura, nascente d’água. E passou a examiná-lo atentamente, apalpou-lhe o corpo, os testículos, tocou-lhe o sexo. Ali mesmo com sua itacira, lâmina afiada, fez-lhe a circuncisão. Daquele dia em diante não era mais curumim, ganhou um colar que continha um amuleto, que encerrava a alma de um espírito responsável pela sua proteção. E desde então aprendera a fazer arma, os segredos da caça e da arte de guerrear.

Desde pequeno aprendiam à respeitar a mata, sua verdadeira mãe. Tanto acreditavam que teriam vindo da terra, que se obrigavam a trazer em seus corpos tudo que havia nela. Sob a pele, os lábios, lóbulo da orelha, narinas, supercílios, incrustavam pontiagudos pedaços de madeira, pra terem a mata no corpo. Pigmentos, ora tirados do solo, ora extraídos das plantas, para que seus corpos adquirissem as forças que possuíam. Verdadeira adoração as plantas e ervas que os alimentavam. Respeito pelas águas. Plantas para eles eram como pessoas, boas e ruins, pelo poder de curar, alimentar e de levá-los pra outros mundos. Nos rituais de iniciação, de casamento, de preparo para caça, de preparo para guerra, era esse o sentido da vida indígena. Sem plantas não haveria vida. Marijuana com ela iam ao vale dos guerreiros ancestrais, donde lhes passavam os ensinamentos de sua nação. E que deviam ser passados de geração em geração.   
       
Em forma de relampejos vinham os acontecimentos de algumas luas antes. E chegavam com uma nitidez tão brutal que instintivamente arregalava os olhos para sentir que tudo não passava apenas de reminiscências. Via as mulheres e crianças. Desesperadamente chorando, que corriam em disparada tentando se proteger na mata. Não dava mais para ouvir os seus gritos. Mas via nitidamente seus rostos crispados, e muito pranto derramado de seus olhos. Bravos guerreiros lutavam e lutavam, e tombavam banhados de sangue. E as ocas em chamas elevavam ao céu, um fumo negro, que ia lá pro alto até Nianderu, “pai do mundo”, clamar por justiça. Foi o combate mais sangrento que jamais vira, em toda sua vida. A aldeia lavada em sangue. Sangue de seu povo. Lembrava de como atacava os inimigos com raiva, a decepar cabeças, a abrir-lhes as entranhas com seu punhal, a mutilar corpos. Porém, foi golpeado. Suas vistas escureceram, desmaiou. Acordou na cabana do cacique Inandê no sopé da grande montanha. Sete luas haviam se passado, estendido sobre um ubá, lastro de varas coberto de palha de coqueiro, tomando ervas para cicatrizar as feridas.

Morubixaba falou de seus delírios, de como vagando no vale onde dormem os espíritos dos seus pais, ouviu-o falando em línguas estranhas. Contou de como os espíritos da nação Ednaré a deusa Parecis, vieram buscá-lo para habitar a terra de mãe Ibaretama, lugar pra onde iam os espíritos dos que habitam as matas, onde descansariam em paz. Mas o deus guerreiro Obajara se materializou em forma de luz, e travou luta com o espírito das sombras. E não deixaram levar seu corpo. E em gratidão, teve que fazer um ritual, uma oferenda ao guerreiro Obajara. Andou três luas até a caverna de Abaruna - bebe o espírito do padre que voa. Ali ficou sabendo que o cacique Inhaderê, pai de inandê cometeu um ato que desagradou Obajara. O cacique deitou-se com uma índia, virgem, que se encontrava em sua oca. Ali permanecia por trinta luas. Preparando-se pra contrair casamento com o filho de Ibaretama. E foi o cacique por Ibaretama amaldiçoado. Desde então, quando se aproximavam as noites do trovão. E as águas de Nianderu estavam pra chegar, o espírito desencarnado de Inhanderê vinha atormentar os guerreiros da tribo de Airumã. Era preciso que ele, em sacrifício oferecesse uma linda jovem para que o espírito de Inhanderê deixasse sua tribo em paz. Nianderu, pai do mundo, e Nandery sua esposa, mãe da terra, deram-lhe Manacy por filha. E Airumã teria que oferecê-la em holocausto a Obajara pelo desagravo de  Inhanderê.

No alto da montanha, lá onde as árvores de tão crescidas, se assemelhavam a pincéis gigantes. Cujas pontas mescladas de musgos, veroneses e clorofila, tentavam tingir de verde os inflados balões de nuvem branca, lá em cima, iam se metamorfoseando em forma de temíveis monstros mitológicos. E eis que era chegada a hora. O sol já tinha cumprido mais de dois terços de seu trajeto antes de ir deitar-se com Aivaré no horizonte.  Airumã prostrado sobre a relva, os olhos fixo, muito além do poente. Iniciou um canto triste. Canto que era um lamento. Um grito de dor, por Manacy que tão jovem ia retornar a mãe terra, de onde viera. Canto triste ecoando pela mata. Oração de um índio.


Fabio Campos