
Na casa de Seu Benjamim, ele fazia
questão de ir com a família inteira. Dona Isaura acordava bem cedinho fazia
café reforçado, na mesa um cuscuzeiro fumegante, uma jarra com leite, num tacho
enorme ovos de galinha de capoeira fritos. Pães num saco de pano com renda de
filó nas bordas. Manteiga, uma panela de macaxeira fumaçando no fogão. E o
cheiro de charque torrado ia lá longe aguçar os olfatos dos viventes, e dos que
já morreram que vagavam errantes. Intumescido o focinho dos felinos, e de saliva
se enchiam os dentes dos caninos. Dez filhos, todos eles iriam. Lucinha, uma
das filhas moça de seu “Bêja”, naquele ano, não pode ir porque estava
menstruada. Moça “naqueles dias” devia evitar entrar em cemitério. Os mais
velhos diziam que não era bom, apenas diziam, não explicavam porque, ai de quem
perguntasse. Alguém arriscava dizer que se a moça tivesse perto de suspender o fluxo,
se entrasse lá, a regra, acabava se estendendo por mais dias. E isso era o
bastante para quem queria uma explicação. Dona Maria José a parteira morava pra
lá do bebedouro, todo ano ia fazer sua penitência. Naquele ano deu de aparecer
uma ferida na perna, da sua erisipela recorrente. Foi, mas ficou no portão, não
entrou. Tinha medo que a ferida demorasse a sarar. Assistiu a missa, de longe.
Fez sua oração pros seus entes queridos, pensou com saudade em Durval, seu
falecido marido que era marceneiro, um acidente vascular cerebral o levou, já
fazia três anos, rezou. E sua reza fez de tudo pra subir aos céus, sufocada
pela algazarra reinante no mundo dos vivos. Os vendedores de vela, e do
sorveteiro a toda altura anunciava pros viventes, e os mortos no seu dia ouviam,
porém não sentiam os sabores dos picolés que tinha na caixa de isopor a
tiracolo.
Adonias e Zé Cutia eram amigos,
dois serventes de pedreiro, gostavam de beber cachaça todo dia. A depender da
ocasião, o dia todo. Encontravam-se na bodega de Ciço “Pé Cotó”, bem no meio da
ladeira da Rua Santa Luzia. Maria do Carmo fazia-lhes companhia. Nos vigores da
juventude Do Carmo fora linda meretriz. Os melhores anos de sua vida vivera no
baixo meretrício. No Cabaré de Suné, uma daquelas casinhas acanhadas, que
margeiam o aterro da Avenida Pancrácio Rocha. A música alta, copos cheios de
cerveja. O perfume, a muito custo conseguia disfarçar o cheiro do lamacento lodaçal,
em que transformaram o Camoxinga, lá no bairro Artur Morais. Depois de velha,
Do Carmo virou macumbeira e ganhou o apelido de Maria Paçoca. Naquelas mentes
encharcadas de vapores de álcool, surgiria um plano macabro. Na véspera do dia
de finados, resolveriam que os dois homens, iriam invadir o cemitério pra
decapitar um defunto. Segundo a rameira, num ritual de magia negra, a cabeça do
finado, imploraria para que lhes devolvesse o corpo. E eles prometeriam que só
faria o que pedia depois que relatasse os números da loteria, e os três
ficariam ricos.
Depois de escalarem o muro, eis
que estavam no cemitério. Já sabiam direto aonde ir. Eles mesmos tinham ido pro
sepultamento de um ancião, um agricultor, que se chamava Pedro Cândio e morava
na Rua de Zé Quirino, falecera naquele dia. Zé Cutia levava um facão e uma
enxada, Adonias portava uma lata de querosene vazia pra colocar o sinistro
dentro. Tudo era breu, acostumados à escuridão vislumbravam os contornos das
tumbas arribadas de cruzes. Delas erguidas em alvenaria, delas gradeadas de
ferro, delas nuas, somente um montículo de barro. E as mães piedosas, mais
tarde acenderiam velas, e chorariam seus filhos ali sepultados. Se criança
ganhavam o nome de anjinhos.
Seguiam, e o que reinava era o silêncio. O
álcool anestesiava-lhes os pensamentos, o que ajudava a disfarçar o medo.
Ignorando o efeito do anidro, os sentidos lhes davam nos nervos. E qualquer
ruído, além dos produzidos por eles mesmos, respiração ofegante, chiado dos
chinelos e deglutição de cachaça, era motivo de calafrio. Pra chegar até a
sepultura de Seu Pedro Cândio eles passariam em baixo de um pé de castanhola.
Era um pé amêndoa razoavelmente pequeno, seu tronco fino e copa reduzida, lembrava
a silhueta duma avestruz gigante, no meio duma cidade fantasma. De repente
entre uma catacumba e outra, os dois homens se depararam com um enorme lobo
negro, de pelo viscoso e eriçado. O grotesco animal nem parecia estar em
posição ameaçadora. Sequer dava pra ouvir o rosnar de sua ira, ou o ranger dos
seus dentes, nem a baba viscosa a correr-lhe pela boca. Porém o que fez os dois
viventes, no campo dos mortos, se encherem de horror, era que no lugar dos
olhos, o cão tinha duas bolas de fogo. E havia algo preso a sua boca. Isso
mesmo era uma cabeça humana! O maldito trazia a cabeça de Seu Pedro Cândio
presa aos dentes pelos cabelos.
Os infelizes lacaios, largando o
que traziam, saíram em desabalada carreira. Tanto era o medo que os cegava, e
já não sabiam pra que lado ir. Saltavam as catacumbas, feito trôpegas gazelas
desengonçadas. Pro lado pra onde estavam indo havia um velho poço, desativado, coberto
com velhas tábuas. Um e outro pisaram em cima, com o excesso de peso as tábuas
cederam e os dois foram tragados pela boca do poço. Engolidos por mais de vinte
metros de abismo, em trevas e água podre despencaram. No fundo pontiaguda vara
de vergalhão os aguardava para o abraço da morte, e os espetou dum lado a
outro. Com o impacto abriu-se enorme fenda donde jorrou sangue aos borbotões.
Nem se deram conta que transpassados pelo ferro pareciam nacos de carne num
espeto pronto pra assar no fogo. Tinham pressa de fugir dali, se desvencilharam
do ferro, porém perceberam que seus corpos permaneciam lá, inertes. Não
importava que ficassem então, precisavam sair dali. E escalaram a fétida parede
de pedras do poço. Ainda deu pra ver ratazanas enormes chegando sobre eles
mesmos, atraídas pelo cheiro de sangue.
Ainda era madrugada quando
chegaram a casa de Maria Paçoca. Ela já havia iniciado os preparativos para o
ritual de bruxaria. Várias velas acesas no chão formavam um cinco Salomão, no
centro vários objetos grotescos, cabeça de caveira, dentes de animais entre
outros. Eles entraram, já não precisavam que ninguém lhes abrisse a porta.
Aproximaram da mulher, que não dava conta de suas presenças. Em vão tentaram
falar-lhe sobre o ocorrido, simplesmente ela não os via. Com raiva começaram a
derrubar o que havia na mesa, cartas de tarô, uma estatueta do preto velho voou
sobre a cabeça da mundana. A do capeta vermelho sorrindo caiu e partiu o
pescoço. A garrafa de cachaça tombou e um incêndio se alastrou rápido. As
labaredas num segundo consumiu o forro da mesa e se espalhou como agilidade.
Maria Paçoca sob o feito de maconha, em vão tentava salvar seus malditos
relicários de praticar magias. Nem se deu conta que o fogo lhe lambia as vestes,
e seu cabelo em chamas dava-lhe o horripilante aspecto de uma medusa flamejante.
Pra finalmente tombar e ir aos poucos vislumbrando entre as chamas seus dois
amigos. Sem se darem conta que agora eram finados.
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