Anastácia
Nem seria preciso dizer, o quanto
é bom ouvir história contada pela mãe da gente. Lá na infância, ao pé da cama
antes de dormir. Aquela época já o era. O tempo passou, eis que sentados lado a
lado. Adulto no limiar da senilidade com muita serenidade. Outras histórias ouvi-la contar, não mais de trancoso, agora reais. Ainda mais prazerosas de ouvir.
Olhando pra uma nesga de céu azul, através de uma área verde, que alumiava a
sala de janta. Ela quis saber se já estávamos na quaresma. Confirmamos.
E passou a relatar o que
contamos. Quando era menina, minha mãe sempre ia passar a quaresma no sítio. Alguns
gêneros de primeira necessidade eram providenciados. Por volta de quarenta
dias, a família ia pra velha casinha do Sítio Capim. Longe da cidade, iam pro retiro até que viesse a páscoa.
Retornariam na semana Santa para acompanhar os ritos litúrgicos da igreja, a
procissão do Senhor Morto, o santo Ofício com a Ladainha, a Missa do Lava-pés,
a Via Sacra, a vigília do sábado da Aleluia. Os fiéis vivenciariam os sacramentos
da Confissão, e da Penitência: do jejum, da oração, da caridade. A cor roxa no
altar, nos paramentos do sacerdote, as imagens cobertas, tudo para lembrar o
luto. Padre Moisés nos seus sermões lembraria aos fiéis que era tempo de
renunciar a velhos hábitos. Diria pro sertanejo que a paixão, de nosso Senhor
Jesus Cristo, significava tempo de renúncia. Tempo de pensar no sofrimento do
redentor. Que tudo fez por nossa causa.
Meu avô Tomaz, era agricultor, pra
complementar a renda, exercia a profissão de barbeiro. No verão, no meio da feira armava uma tolda, cortava
cabelo, fazia barba, a maior parte da sua freguesia os matutos. No inverno ia
pro sítio botar roça. No entanto, de inverno a verão, a vida era uma só, de
tardinha, depois da janta, ia pra porta de casa, pitava um cigarro de fumo
picado. Depois, descia a rua, e na Pensão das Irmãs Ferreira, ia jogar baralho,
até altas horas da madrugada. As irmãs Ferreira vieram de Pernambuco, tentar a
sorte em Alagoas. Tinha freguesia seleta: a guarnição da polícia, o delegado,
Seu Moreninho, o farmacêutico, os mascates vendedores de artefatos de couro, de
calçados, e corda de caruá. Pela devoção que tinha ao padre Cícero do Juazeiro
e a Frei Damião, na quaresma meu avô, suspendia o jogo de baralho, o aperitivo
de antes das refeições. E não cortava cabelo, nem fazia barba pra ganho. Reduzir
até que reduzia, porém não conseguia evitar o tabagismo. Sobre a confissão era
radical, preferia ir até debaixo de um pé de juazeiro. Aonde ia confessar-se
diretamente com Deus. Dizia que não precisava de intermediário pra confessar-se
com Nosso Senhor.
Com o passar do tempo, meu avô
resolveu abrir uma barbearia. Aproveitou um pequeno salão, anexo à casa de
morada – bem ali, na Rua da Assembléia. Porque naquela Rua funcionava a Câmara
Municipal - dividiu o espaço com outro barbeiro, chamado de Tibúrcio. Desde menina, e mesmo na juventude, minha mãe ostentava
vastíssima cabeleira negra. Admirada pelas colegas e pela vizinhança. Diziam
que tinha cabelo de índia, ainda mais pelo corte que meu avô lhe fazia. E
proibiria severamente de cortá-lo, somente ele poderia, quando lhe aprouvesse
aparar as pontas. Cortar jamais. Por essa época, aparava porque acreditava que
a força da lua depois da páscoa faria aumentar de volume. Entre os dois amigos
barbeiros, algumas coincidências minha mãe observou. Tibúrcio e Tomaz, os nomes dos dois começavam
com “T”. Nas duas famílias haviam nascido inicialmente duas mulheres. Osvalinda
e Aucantina, apelidada de “Tinô” na casa de Seu Tibúrcio. Dineusa e Maura na casa de Seu Tomaz. As
esposas dos dois barbeiros ficariam grávidas, e tiveram ambas, filhos meninos.
Rubens na casa de Seu Tibúrcio, e Dorival na casa de Seu Tomaz. Antes de partirem pro exílio quaresmal,
algumas coisas iriam acontecer. Umas sérias, outras pitorescas.
Um dia antes de partirem, minha
mãe foi encarregada de ir comprar pães. Afoita saiu de pés descalços, em
desabalada carreira. Lá ia, pulando, dinheiro na mão. Como gostava de pão. Ao
passar num imenso lajedo, no início da rua que ainda não tinha calçamento, teve
a certeza de ter pisado numa cobra. De volta, buscou outro caminho temendo um
reencontro com o réptil ofídio. Outro susto de idêntica monta, passaria ainda
naquela mesma tarde. Ao chegar à porta de casa, meu avô vinha saindo com um
sapo cururu na mão. Ora minha mãe sempre teve medo de sapos. Brincando, fez
menção de atirar-lhe o batráquio. Não teve jeito, um grito horrendo estrondou
pela rua, acabando por chamar a atenção de todos. Os policiais apreensivos
saíram da delegacia. Dona Amância, minha avó, detestava escândalos, e reprovaria
seriamente tal atitude de Seu Tomaz.
Na manhã do dia de partir pro
sítio, por acaso Dona Amância descobriria que Seu Tomaz, andava de coito com
uma quenga. Como descobriu? Foi assim: Dias antes, lá vinha minha vó, da roça, na
cabeça um balaio, cheio de capucho de algodão e umas abóboras. A rameira, uma negra chamada de Anastácia, que
morava naquela mesma rua. A sem-vergonha teve o atrevimento de pedir uma
abóbora a minha vó. Sem saber do que ocorria lhe deu. De boca em boca o fuxico
correu solto. Até chegar aos ouvidos de minha vó. A discussão foi feia. Nas raras
ocasiões de desentendimento entre seus pais, minha mãe confidenciou que ficava
muito triste. Seu Tomaz nada dizia, calava-lhe a consciência por estar errado.
E dona Amância acabaria por cobrar-lhe: ”-O senhor trate de procurar o padre
Moisés, se confesse de verdade! Pé de pau não perdoa pecado! Não quero um Judas
dentro de casa.”
No exílio, minha vó revirando uma
velha bolsa de tiracolo. Lá no fundo encontrou esta oração:
“Vemos que algum algoz fez da tua
vida um martírio, violou tiranicamente a tua mocidade, vemos também no teu
semblante macio, no teu rosto suave, tranquilo, a paz que os sofrimentos não
conseguiram perturbar. Querida Anastácia: Eras pura, superior, tanto assim que
Deus levou-te para as planuras do céu e deu-te o poder de fazeres curas, graças
e milagres. Amada Anastácia, pedimos por...(aqui faz o pedido), roga por nós,
proteja-nos, envolva-nos no teu manto de graça e com teu olhar bondoso, firme,
penetrante, afasta de nós os males do mundo. Tudo que pedimos, pedimos por Nosso
Senhor Jesus Cristo, na unidade do Espírito Santo. Amém.”
No verso da oração uma gravura
com o rosto de Anastácia amordaçada, e uma breve biografia da mártir dos negros
afro-descendentes. Considerada santa: “Da tribo dos Bantus, na longínqua
África, foi trazida escrava. Por não possuir documento ganhou o nome de
Anastácia. Negra, de rara beleza. Tão bela, causaria inveja as donzelas da corte.
Quis saber que gosto tinha um torrão de açúcar, vista por um malvado feitor,
que acusaria de ladra. Colocaram-lhe uma mordaça de couro que cobria a boca e
parte do rosto. O filho de um fazendeiro caiu doente, e não tendo mais a quem
recorrer, socorreu-lhe Anastácia, suas rezas e benzeduras, fez o rapaz ficar
curado. Pelos castigos que sofria, nos ferimentos contraiu gangrena. Vindo a
falecer desse mal. Teve direito a enterro de escravo alforriado.”
Aquele folheto estava agora em
minhas mãos. Um dia fora da minha avó, que mal sabia ler. No entanto no fundo
do coração, pediu a Deus, e a aquela santa, que lhe desse paciência, e tirasse a
aflição do seu coração, para que pudesse viver naquele ano, uma boa páscoa.
Fabio Campos
Caupolican - 1974
O menino estava dormindo, abriu
os olhos. Nove letras pretas, do tipo bastão, sob um fundo branco. A palavra na
lombada do livro: Geografia. Já conhecidas dele, outra vez apresentava-se pra
sua retina. Deu-se conta que estava na sala de aula. Permaneceu com a cabeça
apoiada na carteira. Um fio de baba escorrera molhando-lhe a bochecha. A professora
continuava a aula. O ventilador de teto, preguiçosamente girava a hélice. Duas
moscas sobre as cabeças esvoaçavam traçando parábolas no ar. Verão de 1972.
Apoiou a cabeça pondo o queixo
por cima das mãos sobrepostas. No alto da parede, próximo a campainha, o quadro
com o retrato do general Emílio Garrastazu Médici. A faixa presidencial, o brasão da república
sobre o peito. E tudo ficou preto e branco. Terno preto, rosto branco. Moldura
negra, fundo branco. Lousa negra, gizes brancos. Birô negro, relógio de parede
branco. Blusa da farda e meias brancas. Sapatos
e bolsa escolar pretos. O cabelo, todos da sala tinham-nos bem penteados. Untados
e cortados ao estilo militar. Por que o chefe da nação brasileira se mostrava tão
sério? Seu olhar inquiridor, como se perguntasse: o que mais vocês querem que
de mim? Já criei o PIS, o BNH. Estamos construindo a hidrelétrica de Itaipu. Em
breve entregarei a ponte Rio-Niterói. Já
está em andamento os serviços de construção da rodovia Transamazônica que
ligará Santarém a Cuiabá. Pra acabar com o analfabetismo criei o MOBRAL. Os
universitários terão oportunidade de explorar o país através do Projeto Rondon.
Ah! Já sei o motivo da
insatisfação, talvez seja porque coibi veementemente as manifestações nas universidades.
Dissidentes políticos e guerrilhas, reprimidas com mão de ferro. Não me diga
que é o Ato Institucional número 05, o motivo da insatisfação? Aceito qualquer crítica,
podem dizer que sou radical, em não reconhecer a UNE, e o MST. Porém não me
compare a governos extremamente ditadores, como o de meu colega Fidel, ou de
meu amigo Pinochet. Muito menos com o que faz Anástasio Somoza na Nicarágua.
Quero que saibam duma coisa, todo povo tem o governo que merece. Denúncia de
torturas, morte e desaparecimento de presos políticos atribuídos ao nosso
governo. Sobre isso, o que tenho a dizer: que, muito do que andam dizendo não é
verdade. Assim como Pilatos dou-me o direito de perguntar: mas o que é a
verdade?
Monocromática sala de aula. Sentados
dois a dois permaneciam os meninos. O silêncio quebrado unicamente pela voz suavemente
melodiosa da professora. Ah! Dona Vanda, tão bonita! Como se fora uma fada com
sua varinha de condão, o cabelo num rabo de cavalo gracioso, balançava pra um
lado e pro outro, toda vez que ela gesticulava, ou apontava a anotação na lousa.
Espádua alvíssima, ornada por belo colar de contas brilhantes. Mesmo que não
quisesse, confiscava os olhos dos infantes. Ó quão cheiroso colo, de inebriar pobres
coraçõezinhos, toda vez que se debruçava para verificar as lições nos cadernos.
Vestida num gracioso tubinho que lhe desenhava as curvas. Cruelmente acabava a
alguns centímetros a cima dos joelhos. O costureiro, músculo da coxa, sempre
requisitado. Flexionava-se retesando o direito, ao tempo que relaxava o
esquerdo. Aquela boca, aqueles lábios,
aqueles dentes. De repente só havia aquela boca. Os incisivos alvos,
cintilantes, como tabletes de chicletes prontos para serem degustados. Indo
preencher pupilas intumescidas. Cílios molhados como de alguém que acabara de
chorar. A língua sorrateira deslizando por entre duas palavras, indo tocar o
lábio superior, tornando discretamente umedecidos... Ai que boca! Que boca
professora! Os lábios de baton vermelho carmim. E falava e falava, sobre astros,
estrelas, satélites, os nove planetas que compunham o sistema solar. E do céu daquela
boca, luas alvíssimas. Lindas e nuas. E o sol? Por que a professora tinha que trazer
uma estrela de quinta grandeza pra sala de aula? Ofuscou, esbaforiu, com seu
calor sufocante fazendo transpirar por todos os poros. E veio a sede, e a
vontade de urinar, tudo ao mesmo tempo. Um jato de adrenalina irrigando entranhas,
estonteante doçura. Sonolência.
Dona Vanda continuava e sua aula
espacial foi atingida por um asteróide. Caupolican - 1974 teria sido descoberto
em 1968, pelo astrônomo Carlos Torres. Achou por bem passar a falar de
História: Quem teria sido Caupolican? Perguntou em voz alta. Abrindo um livro
amarelado. respondeu ela mesma: “- Caupolican foi um líder indígena chileno,
que lutou contra as invasões espanholas, de depois do descobrimento. Após
grandes feitos foi preso. Em 1558, foi executado em praça pública por empolamento.
Um tipo de morte cruenta onde o condenado era obrigado a sentar-se numa estaca.
E sofrer hemorragia pelo reto até morrer.”
Através da janela o menino olhou
pra lá fora, um mundo pavorosamente ameaçador se havia. Um céu grotesco. Donde
um sol quase apagado, tingia as nuvens de Lilás. E aviões de guerra sobrevoavam,
bombardeando as casas. Soldados corriam para se abrigar em trincheiras e
barricadas. Não entendia porque a professora, diante de uma situação tão
caótica ocorrendo lá fora, permanecia passivamente ministrando sua aula. Como
se nada, absolutamente nada estivesse ocorrendo. Isso talvez porque, de lá fora,
nada se ouvia. Nenhum som vinha de lá fora, apenas imagens. O que estaria
acontecendo?
De repente Aldo, o menino, se deu
conta que a professora não mais estava lá. Distraído, em olhar lá pra fora, nem
percebeu que toda a turma evadira. Não havia mais professora, nem seus colegas,
só ele. Apreensivamente só. Enquanto lá fora, a guerra. Não podia continuar
ali, precisava saber pra onde todos tinham ido. E tinha só nove anos. O que um
menino como ele poderia fazer em meio a uma guerra. Ao sair pro pátio,
encontrou alguns dos seus colegas. Indiferentes a hecatombe ocorrendo logo ali brincavam,
de bola de gude, pega-pega, nos balanços. Nem um pouco preocupados, com as
bombas, e mísseis que caiam. E provocavam imensa destruição, pavor e morte. Só a
alguns metros dali. Os meninos sorriam. E se movimentavam com em câmara lenta.
Tudo parecia muito real, exceto por um motivo, não havia som, estrondo das
bombas, nada. Só a imagem, desesperadamente lenta.
Outra vez, Aldo Felix acordou. Estava
noutra sala de aula, havia penumbra, um data-show, exibia um vídeo. Em questão
de segundos, quatro décadas haviam ficado para trás. Instintivamente tocou-se.
Temeu se encontrar no corpo de um menino de nove anos, indefeso, assustado
diante duma guerra. Professor Aldo, talvez vivesse realmente aquele conflito
internamente, lá no fundo no mais íntimo do seu ser. Permanecia tomado de tão forte emoção, de tão
presentes recordações. O vídeo que passava pra seus alunos, referia-se ao
discurso de uma chefa de estado, cujo partido teria sofrido repressão no
período ditatorial do regime militar. Uma presidenta, em cujo país em breve ia
ocorrer uma Copa do Mundo. Dizia: “-O que querem que eu faça? Por favor! Não
aceito, que venham comparar nosso governo, ao do meu amigo lá da ilha de Cuba.”
Sonhos, todos eles devem ter um significado. Por Deus, também este haveria de
ter.
Fabio Campos
O Tesouro Perdido
História de tesouro tem suas
vantagens. A gente sempre vai quer saber, de onde vem, e no que vai dar. Pra
isso, tivemos que ir a Porto da Rua, uma vila praieira, fundada na época do
descobrimento. O vilarejo como que parado no tempo, tinha sua vida e história
atrelada ao município de São Miguel dos Milagres, a quem sempre pertenceu. Acintosas
construções seculares, sobre as placas sedimentares erguidas, dividiam espaço
com rudimentares cabanas de pescadores. Tudo, tudo, vinha-nos naquele instante,
irremediavelmente impregnado do cheiro de mar. E pra aonde quer que fosse a
vista, os olhos haveriam de esbarrar no coqueiral. Com seus canelões encimados
de buquês de palhas verdejantes. Sacudindo, pra lá e pra cá, maresia. Enquanto acenava
pras espumas das ondas, que antes de morrer, beijavam com sofreguidão a areia
da praia, do magnífico mar Atlântico.
São duas as versões de nossa
história sobre o tesouro sumido. A primeira chegou-nos através da saudosa
professora Durvalina Cunha Lima. Filha de família tradicional da cidade de
Porto de Pedras, morava numa das casas mais bela da Rua Coronel Avelino Cunha.
Nome de seu avô, um dos fundadores daquele lugar. A fachada era revestida de
azulejos e cerâmicas em estilo lusitano. Um enorme portão de ferro pintado de
branco acessava um pomar, com toda sorte de arbustiva. Cujos galhos mais
audaciosos, debruçavam-se por cima do muro. De inverno a verão, a calçada
ficava tinta de vermelho rubro, das pétalas de Acácias. E as carambolas maduras
aguçavam os olfatos e paladares dos saguis, e dos meninos quando saía da Escola
Municipal Professora Leonila Cunha Lima, logo ali.
Dona Durvalina, possibilitou dois
locais para nossa conversa, no alpendre que ficava virado pro pomar, ou numa
ante-sala. Donde dava pra ver, esplendor de decoração, diversos objetos
antigos: armas, brasões de família, quadros, etc. no interior da casa. Optamos
por este de cá. Naquela tarde prazerosa,
ensolarada. Regada a chá verde e sequilhos fresquinhos, ouvimos atentamente a
professora contar que, no ano de 1633, a Vila de Águas Belas, como então era
chamada Porto de Pedras, era ocupada pelos portugueses. De onde provinha sua
família, o que era evidente nas suas feições, na tez alvíssima, no sorriso
largo, no jeito esmerado de falar, na entonação da voz. Tudo nela evidenciava
sua origem luso-brasileira. Dizia que, no mês de maio daquele ano, a vila foi
invadida pelos holandeses. A artilharia da esquadra, composta de dez naus, fez
fogo sobre o povoado e conseguiu destruir diversas embarcações portuguesas
ancoradas a lagamar. Os portugueses mantinham na foz do rio, quatro navios de
defesa. Na desembocadura do rio Manguaba que acessava ao forte de Santo Antonio
de Quatro Rios, a doze quilômetros dali. Hoje em dia chamada de cidade de Porto
Calvo.
A população da vila tentou
resistir com barricadas, sacos de areia na entrada do cais. Respondendo ao
ataque com tiros de bacamartes bombardeio de canhões de médio porte. Porem o
poder de fogo dos invasores era maior. Ao perceber que estavam perdidos, os moradores
da vila atearam fogo nas próprias casas, e fugiram mata adentro. Um desses moradores,
o bisavô de dona Durvalina, o senhor Joaquim Ferraz de Lima, era dono do
engenho de cana, Mata Redonda. Conseguiu fugir com a família, mulher e três
filhos pequenos. Com a ajuda de dois escravos, três mulas, e um cavalo, levou o
que pode: arcas cheias de dobrões de ouro, muito dinheiro, e diamantes. Ao
chegar à base de um rochedo banhado por um Arroio chamado de Patacho, se
abrigaram. Afastando-se donde tinham se arranchado, Senhor Joaquim foi até a um
local onde só ele ficou sabendo, enterrou os baús com os diamantes e os dobrões
de ouro. De volta ao local onde deixou a família e os escravos, levantou
acampamento, e partiram dali pro engenho.
Muitos anos depois, Senhor Joaquim retornaria para resgatar seu valioso
despojo. Acontece que já muito velho, e desorientado, o usineiro não conseguiu
mais localizar os recursos enterrados. Vindo a falecer sem conseguir recuperar
o tesouro. A família teria feito muitas expedições e escavações, porém sem
nenhum sucesso.
A outra versão, também foi
contada por outra professora, Dona Belmira Conceição Lins. Na verdade esta, foi
a primeira história que ouvi sobre o tesouro perdido. Recordo de quando cheguei
a Porto de Pedras para lecionar a alunos do ensino fundamental, no Grupo Escolar
Ciridião Durval. À época, a escola era
um prédio velho, carecido urgente duma reforma.
Cheguei de ônibus vindo de Maceió. Por volta das três das tarde, desci
bem em frente ao educandário. Trajado em calça jeans, camisa de meia, dirigi-me
a Diretoria. Um crucifixo pendurado no pescoço, mochila às costas, e alpercatas
de franciscano nos pés. Isso faria com que comentassem que um novo padre havia
chegado à cidade. Dona Belmira era a solicitude em pessoa. Uma velha senhora
negra. Pra mim, era como se materializasse ali na minha frente, uma personagem
de um filme americano do Alabama ou Mississipi, dos anos 60. Depois de alguns
meses já éramos tão amigos, que sempre que eu tinha um tempo disponível, ia até
sua modesta casa na Avenida da Praia, em frente ao campinho de futebol. Sentados
à porta olhando pro mar, conversávamos sobre tudo na vida. Dona Belmira tinha
uma pequena biblioteca. Donde tive a oportunidade de ler toda a obra de
Graciliano Ramos, pegando emprestado de seu acervo. Um dia, Dona Belmira deu-me
de presente uma bíblia.
Era toda grande, de capa dura, de
letras grandes. Com um detalhe, não era nova. Confidenciou-me que havia
adquirido numa feira de livros, promovida pela escola. Não por acaso, encontrei
no início do livro de Eclesiastes, um quadrado de folha de caderno. No pedaço
de papel amarelado, de tão velho, tinha umas anotações escrita a bico de pena com
tinta nanquim: “Cap. 01” vs, 04’-08’; Cap. 05” vs, 09’ – 14’ Joaquim Leão de
Vasconcelos – 04 de maio de 1634. Engenho de Dentro.”
Dona Belmira relatou sua versão
do tesouro escondido na floresta, nunca encontrado. Os fatos, apenas pareciam.
Os usineiros homônimos possibilitava a confusão. No entanto os acontecimentos
eram distintos, bem como os tesouros extraviados. Senhor Joaquim Leão, fugiu
com a família, do vilarejo de Santo Antonio de Quatro Rios, que ficava ao lado
do forte de igual nome. E foi se instalar com a família, nas imediações de
Porto da Rua, fundou a usina do Engenho de Dentro. Com medo de ser pego pelos
batavos, enterrou seu tesouro numa catacumba do cemitério da Vila de Nossa
Senhora Mãe do Povo. Voltando muitos anos depois pra desenterrar. Porem tantos
túmulos novos haviam, e os que já existiam, tinham passado por tantas reformas,
que se tornou praticamente impossível encontrar o local exato. Dali por diante era comum, encontrar o velho Joaquim, altas horas da noite, andando a cavalo
totalmente bêbado, despido. Indo pela estrada que levava ao cemitério da vila
de Porto da Rua. Pra finalmente encontrarem seu corpo nu, jazido em decúbito
dorsal sobre o túmulo do vigário Belo, no alto do Cruzeiro. Há quem diga que tinha
visões com o padre que prometia lhe indicar onde o tesouro se encontrava, caso
se arrependesse dos pecados. Segundo Dona Belmira aquela bíblia pertencera ao
senhor Joaquim Leão.
E só por acaso, imaginei que
aqueles capítulos e versículos do livro do Eclesiastes, poderiam ser algum tipo
de coordenadas, que pudesse indicar onde estaria o tesouro perdido. Tantas
covas contando do primeiro quadrante, na fileira número quatro, a oitava
catacumba. Ou talvez dissesse apenas o que está lá no livro sagrado: “Vaidade
das vaidades! Tudo é vaidade!” “A vista não se farta de ver, o ouvido não se
sacia de ouvir.” “Quem ama o dinheiro nunca se fartará. Quem ama a riqueza não
tira dela proveito.” Ecl. 1-4; 5-9.
Fabio Campos
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