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E passou a relatar o que
contamos. Quando era menina, minha mãe sempre ia passar a quaresma no sítio. Alguns
gêneros de primeira necessidade eram providenciados. Por volta de quarenta
dias, a família ia pra velha casinha do Sítio Capim. Longe da cidade, iam pro retiro até que viesse a páscoa.
Retornariam na semana Santa para acompanhar os ritos litúrgicos da igreja, a
procissão do Senhor Morto, o santo Ofício com a Ladainha, a Missa do Lava-pés,
a Via Sacra, a vigília do sábado da Aleluia. Os fiéis vivenciariam os sacramentos
da Confissão, e da Penitência: do jejum, da oração, da caridade. A cor roxa no
altar, nos paramentos do sacerdote, as imagens cobertas, tudo para lembrar o
luto. Padre Moisés nos seus sermões lembraria aos fiéis que era tempo de
renunciar a velhos hábitos. Diria pro sertanejo que a paixão, de nosso Senhor
Jesus Cristo, significava tempo de renúncia. Tempo de pensar no sofrimento do
redentor. Que tudo fez por nossa causa.
Meu avô Tomaz, era agricultor, pra
complementar a renda, exercia a profissão de barbeiro. No verão, no meio da feira armava uma tolda, cortava
cabelo, fazia barba, a maior parte da sua freguesia os matutos. No inverno ia
pro sítio botar roça. No entanto, de inverno a verão, a vida era uma só, de
tardinha, depois da janta, ia pra porta de casa, pitava um cigarro de fumo
picado. Depois, descia a rua, e na Pensão das Irmãs Ferreira, ia jogar baralho,
até altas horas da madrugada. As irmãs Ferreira vieram de Pernambuco, tentar a
sorte em Alagoas. Tinha freguesia seleta: a guarnição da polícia, o delegado,
Seu Moreninho, o farmacêutico, os mascates vendedores de artefatos de couro, de
calçados, e corda de caruá. Pela devoção que tinha ao padre Cícero do Juazeiro
e a Frei Damião, na quaresma meu avô, suspendia o jogo de baralho, o aperitivo
de antes das refeições. E não cortava cabelo, nem fazia barba pra ganho. Reduzir
até que reduzia, porém não conseguia evitar o tabagismo. Sobre a confissão era
radical, preferia ir até debaixo de um pé de juazeiro. Aonde ia confessar-se
diretamente com Deus. Dizia que não precisava de intermediário pra confessar-se
com Nosso Senhor.
Com o passar do tempo, meu avô
resolveu abrir uma barbearia. Aproveitou um pequeno salão, anexo à casa de
morada – bem ali, na Rua da Assembléia. Porque naquela Rua funcionava a Câmara
Municipal - dividiu o espaço com outro barbeiro, chamado de Tibúrcio. Desde menina, e mesmo na juventude, minha mãe ostentava
vastíssima cabeleira negra. Admirada pelas colegas e pela vizinhança. Diziam
que tinha cabelo de índia, ainda mais pelo corte que meu avô lhe fazia. E
proibiria severamente de cortá-lo, somente ele poderia, quando lhe aprouvesse
aparar as pontas. Cortar jamais. Por essa época, aparava porque acreditava que
a força da lua depois da páscoa faria aumentar de volume. Entre os dois amigos
barbeiros, algumas coincidências minha mãe observou. Tibúrcio e Tomaz, os nomes dos dois começavam
com “T”. Nas duas famílias haviam nascido inicialmente duas mulheres. Osvalinda
e Aucantina, apelidada de “Tinô” na casa de Seu Tibúrcio. Dineusa e Maura na casa de Seu Tomaz. As
esposas dos dois barbeiros ficariam grávidas, e tiveram ambas, filhos meninos.
Rubens na casa de Seu Tibúrcio, e Dorival na casa de Seu Tomaz. Antes de partirem pro exílio quaresmal,
algumas coisas iriam acontecer. Umas sérias, outras pitorescas.
Um dia antes de partirem, minha
mãe foi encarregada de ir comprar pães. Afoita saiu de pés descalços, em
desabalada carreira. Lá ia, pulando, dinheiro na mão. Como gostava de pão. Ao
passar num imenso lajedo, no início da rua que ainda não tinha calçamento, teve
a certeza de ter pisado numa cobra. De volta, buscou outro caminho temendo um
reencontro com o réptil ofídio. Outro susto de idêntica monta, passaria ainda
naquela mesma tarde. Ao chegar à porta de casa, meu avô vinha saindo com um
sapo cururu na mão. Ora minha mãe sempre teve medo de sapos. Brincando, fez
menção de atirar-lhe o batráquio. Não teve jeito, um grito horrendo estrondou
pela rua, acabando por chamar a atenção de todos. Os policiais apreensivos
saíram da delegacia. Dona Amância, minha avó, detestava escândalos, e reprovaria
seriamente tal atitude de Seu Tomaz.
Na manhã do dia de partir pro
sítio, por acaso Dona Amância descobriria que Seu Tomaz, andava de coito com
uma quenga. Como descobriu? Foi assim: Dias antes, lá vinha minha vó, da roça, na
cabeça um balaio, cheio de capucho de algodão e umas abóboras. A rameira, uma negra chamada de Anastácia, que
morava naquela mesma rua. A sem-vergonha teve o atrevimento de pedir uma
abóbora a minha vó. Sem saber do que ocorria lhe deu. De boca em boca o fuxico
correu solto. Até chegar aos ouvidos de minha vó. A discussão foi feia. Nas raras
ocasiões de desentendimento entre seus pais, minha mãe confidenciou que ficava
muito triste. Seu Tomaz nada dizia, calava-lhe a consciência por estar errado.
E dona Amância acabaria por cobrar-lhe: ”-O senhor trate de procurar o padre
Moisés, se confesse de verdade! Pé de pau não perdoa pecado! Não quero um Judas
dentro de casa.”
No exílio, minha vó revirando uma
velha bolsa de tiracolo. Lá no fundo encontrou esta oração:
“Vemos que algum algoz fez da tua
vida um martírio, violou tiranicamente a tua mocidade, vemos também no teu
semblante macio, no teu rosto suave, tranquilo, a paz que os sofrimentos não
conseguiram perturbar. Querida Anastácia: Eras pura, superior, tanto assim que
Deus levou-te para as planuras do céu e deu-te o poder de fazeres curas, graças
e milagres. Amada Anastácia, pedimos por...(aqui faz o pedido), roga por nós,
proteja-nos, envolva-nos no teu manto de graça e com teu olhar bondoso, firme,
penetrante, afasta de nós os males do mundo. Tudo que pedimos, pedimos por Nosso
Senhor Jesus Cristo, na unidade do Espírito Santo. Amém.”
No verso da oração uma gravura
com o rosto de Anastácia amordaçada, e uma breve biografia da mártir dos negros
afro-descendentes. Considerada santa: “Da tribo dos Bantus, na longínqua
África, foi trazida escrava. Por não possuir documento ganhou o nome de
Anastácia. Negra, de rara beleza. Tão bela, causaria inveja as donzelas da corte.
Quis saber que gosto tinha um torrão de açúcar, vista por um malvado feitor,
que acusaria de ladra. Colocaram-lhe uma mordaça de couro que cobria a boca e
parte do rosto. O filho de um fazendeiro caiu doente, e não tendo mais a quem
recorrer, socorreu-lhe Anastácia, suas rezas e benzeduras, fez o rapaz ficar
curado. Pelos castigos que sofria, nos ferimentos contraiu gangrena. Vindo a
falecer desse mal. Teve direito a enterro de escravo alforriado.”
Aquele folheto estava agora em
minhas mãos. Um dia fora da minha avó, que mal sabia ler. No entanto no fundo
do coração, pediu a Deus, e a aquela santa, que lhe desse paciência, e tirasse a
aflição do seu coração, para que pudesse viver naquele ano, uma boa páscoa.
Fabio Campos
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