O Terezão e a Festa de Santana

A história que a gente se inventa de contar, é história de um povo, de uma festa religiosa, numa cidade do sertão. Num tempo em que dez réis e vintém eram dinheiro. Tempo que ainda existia matuto de verdade. Daqueles que corria léguas só de ouvir pela primeira vez o ronco dum carro. O mês de julho vinha se encostando por ali, como quem não queria e querendo. Aí Santana e os santanenses se viravam noutros. Com afinco, suas ações voltadas todinhas pras festas da padroeira, Senhora Sant’Ana.

A cada ano, um mês juliano, novinho em folha se instalando. E o sertanejo com cara de bezerro que não largou a mama, se pondo a esbanjar alegria. Oferecido, o sertão assanhava suas asas por riba das coisas dos homens, em nuvens brincalhonas, ora inchadas de brancura, ora plúmbeas d’água de chover. Fazendo Senhora Caatinga vestir sua mais exuberante saia verde. Pintassilgado de vermelho o fruto do mandacaru, a saudar com solene reverência a avó de Jesus netinho! Ó povo sertanejo, sapientíssimo! De saber como, e de onde, tirar o máximo de proveito do que ela, a vida sempre estaria a lhes mostrar uma saída. Desconfiado por natureza, um olho no gato outro no peixe: um na roça outro no céu. Assim era o matuto. A volver em preces e pedidos, a avó amabilíssima que providenciasse o necessário pra que sua festa fosse aquela, a mais bonita.

O Largo em frente á igreja nesse tempo nem calçamento tinha. Pelas festas, o prefeito ordenava que colocassem carradas de piçarra no passeio, pra dar condição do povo andar sem se atolar na lama. O secretário de obras baixara portaria, estabelecendo que o trânsito de animais e carros de boi, no período dos festejos, ficaria limitado a Rua da intendência, pela Rua do Sebo, e a Rua da Cadeia Velha. O serviço de difusora da praça central, arribado num poste, a alegrar o rosto do dia. Silabando os avisos governamentais e sibilando aos ventos varonis, belas páginas musicais. Modas de Dalva de Oliveira e Carlos Galhardo. Sempre oferecidas por “alguém apaixonado” a “alguém que já sabia quem era”. Com a proximidade da noite, o palanque oficial amplamente ocupado pelas autoridades. Os discursos solenes engomados, em trajos sóbrios de linho riscado. Flor na lapela, sapato envernizado, chapéu de massa. No parapeito riquíssimo buquê de fitas de cetim, com as cores da bandeira do município. Homens novos, meninos velhos, A se espremerem, protegiam-se da garoa fina embaixo do coreto. A bandinha Santa Cecília nos degraus à porta da igreja. Ladeado de coroinhas portando lanternas dotadas de velas acesas, pendidas nos mastros seguia o cortejo. Pelo corredor central do interior da nave rumo ao altar mor. O coral alumiado pelas vestes e cânticos fulgurantes. Entre floreios de vozes, como se o tempo todo a dizer: “Óóóó!” E as bocas a tomar a forma daquela letra. Dali a pouco dar-se-ia início a mais uma novena em louvor, honra e glória da excelsa padroeira Senhora Sant’Ana.

Tudo ainda era como antigamente, nada tinha mudado. O altar belamente ornado. As imagens da padroeira e de São Joaquim adornadas. Efusiva profusão de flores coloridas e perfumadas entre luzes proeminentes em sibilante fulgor etéreo. Nuvens de incenso se expandido por entre os presentes. Emprestando diafaneidade ao ambiente, instigando narinas. Acólitos, seminaristas, sacristãos, diáconos. O pároco anfitrião, o sacerdote, o vigário, o bispo da arquidiocese, a mitra violeta apontando o alto, estola branca franjada de dourado. O báculo e o anel episcopal à destra. A assembléia de pé atenta, convivas. O sino no alto do campanário escrevendo agudas notas nas partituras celestes borradas de negro, pra muito além do frontispício. Os fogos pipocando, assustando escutas pueris, pardais e pardocas revoando dos ninhos das árvores do centro da cidade. Não era difícil decifrar o que dizia o calendário. Naqueles dias fogos estourariam sempre ao meio dia, e às seis horas da tarde. O banho do matuto na beira do açude de tardinha. O cheiro do sabão da terra, o afetado perfume de meio de feira a muito custo esconderia a inhaca da montaria. Enquanto a brilhantina luzidia no cabelo crespo. O café engolido as pressas. A roupa, especialmente encomendada pra aquela ocasião, voltaria manchada de picolé e banha de carne de galinha. Os sapatos novos criariam calos, o que obrigaria a tirar dos pés antes do fim da festa. O sono reparador debaixo da marquise da loja. E os pisantes novos, que seriam pagos em prestações que iam durar até o final do ano, ganhavam novos donos. O prazer de passear naqueles brinquedos rústicos de doer. Os corrupios, engenhoca que girava e girava, a embebedar gente nas cadeiras de balanços suspensas no ar. As barcas, puxadas por uma corda pelo próprio brincante, era mais desprendimento de força que diversão. 

Mas o que era mesmo o “Terezão”? Tratava-se de um Cassimiro Coco, constituído de bonecos gigantes, que representavam os cangaceiros de Lampião. Enfim, um rude teatro de bonecos. Matuto só ia ver se tivesse coragem! É preciso que se diga que o centro da cidade tomado pelo povo, nas noites de festa da padroeira, ficava dividido em três territórios distintos: Desde a frente da igreja matriz até o fim da Rua Tertuliano Nepomuceno circulava a pobreza, o matuto o povo da roça. Por conta disso se concentrava por ali, os brinquedos mais rústicos; da frente da igreja indo pro lado da Rua de São Pedro, até a entrada da Rua professor Enéas circulava o classe média, principalmente o santanense que morava e vivia em Santana; da esquina do sobrado do hotel de Maria Sabão subindo em direção a Avenida Coronel Lucena, até a bifurcação com a Rua Benedito Melo (antiga Rua Nova) ficavam a prosear a classe mais importante, o classe alta, os filhos de empresários e comerciantes. Em especial os que residiam e estudavam na capital do Estado e em Recife. E nessa área se concentravam os diversos jogos de azar, roletas do bicho, jogos de apostas nos dados era maioria em número de bancas.

Existia um matuto vendedor de inhame e macaxeira que atendia pelo nome de José Costa Cândido, mas que todos chamavam de Zé Cândio. Na última noite de festa uma segunda-feira, a boquinha da noite estava no carteado da Casa de Jogo de Zé Chagas, que ficava ao lado da Vidraçaria “A Triunfante” dos irmãos Carvalhos, um pouco a cima do Cine Alvorada. Consultou o cobrinho que restava no bolso, e viu que o apurado de sábado praticamente havia ficado todo ali. Restando-lhe três contos de réis. Saiu de lá acreditando que quando alguém entrava em uma casa de jogo, um tinhoso chamado Zé Pilintra se encostava no cabra, ou abria as portas da fortuna, ou dava as costas. Aquele fora um dia avessado. Desses que quando a gente acorda parece que pisou em rastro de corno. Ganhou a Rua dos Porcos, entrou no bordel de "Madame" Conceição a cartomante, Ceiçinha pros íntimos. Os dois eram amigos, tiveram longa prosa.  

Depois da conversa com a rameira Zé Cândio ficou mais animado. Pediu um litro de Ron, e refrigerante. Dançou com a rapariga, bebeu, e bebeu. E mais alegre ainda ficou. As orelhas pegando fogo, os pés como se pisasse em rolimã, partiu pelo meio do povo. Quando chegou enfrente a barraca do Teresão, gritou: “- Zé Pilintra seu “fio” duma égua! Devolva meu dinheiro!” E sem mais nem menos resolveu invadir o teatro de bonecos. Em vão o porteiro tentou segurá-lo. Trôpego, sem dizer coisa com coisa, partiu o mangaieiro pra tentar tirar um punhal de madeira que um dos bonecos tinha na cintura. O povo que pagara pra assistir, sem entender patavina. Alguns riam pensando que a cena fazia parte do show. Disposto a tirar o punhal do boneco gigante, assim estava o cabra. Em vão os funcionários tentavam lhe conter. A polícia chegou. Finalmente nosso herói foi dominado. E o último dia de festa de Sant’Ana foi curtir sua ressaca, a ver o sol nascer quadrado, trancafiado no xilindró.


Fabio Campos

Benalmadena Costa

A casa era velha. Igualmente velha, a cidade. Um ao outro, porém valorizavam-se. E tudo ali, soubera entardecer. Duma vivacidade bela, cheia de graça. De tristeza, resquício nenhum havia ali. Rugas, esporadicamente existiam, nos cantos dos vãos das janelas. Cabelos brancos fruíam-lhe, no telhal franjado. E isso era muito natural. Duas claras bóias, olhos que dormitavam. Só não fora engolido por aquela boca, porque fechada estava a porta. Pouco importava. Contentava-se, naquela primeira visita, a vê-la, apenas pelo lado de fora. Afinal custara-lhe uma bagatela. Por algumas centenas de dólares, a possibilidade de realizar mais um de seus sonhos.


Não dava pra entender, a simples mortais, como um cara endinheirado, feito doutor Vicente, fora comprar aquele casebre, naquele lugar. Sócio majoritário duma das mais conceituada empresa de construção civil da América Latina. Dono de uma das maiores fortunas do país. Dinheiro aplicado em paraísos fiscais. Mansões em Miami, palacetes as margens do mediterrâneo. Era só querer, pegava o jatinho, voava até as Antilhas. E a bordo dum iate, ia navegar numa ilha do Caribe. Por que ali? Que segredo encerraria aquela casinha virada pra praia de Benalmodena Costa?

Era preciso dizer que nem sempre fora assim. O poderoso empresário, engenheiro civil, doutor Vicente Albuquerque, não nascera em berço de ouro. Tampouco tinha aquele patrimônio adquirido por herança. Do seio de uma família pobre de agricultores do sertão de Alagoas, descendia. Em meados da década de trinta, seus pais migraram do meio da caatinga, pra morar na urbanidade, de Santana do Ipanema. No centro da cidade, construíram um sobrado, e passariam a viver do ramo de secos e molhados. Prósperos comerciantes. E viria a crise. Sucessivos anos de estiagem. Tudo que tinham, vendido a crédito. Não tendo como receber dos seus devedores, foram à banca rota. Aos nove anos de idade Vicente, e seus outros quatros irmãos menores ficaram órfãos. De tanto sofrer, a mãe acabaria contraindo tuberculose. Teve que ser internada no hospital Sanatório de Maceió. Aos domingos as visitas. Era muito doído ver os parentes. Chegarem usando máscaras cobrindo-lhes boca e nariz. Traziam-lhe broas de nata, goiabada e queijo do reino. Meses de tratamento sem apresentar melhoras. Definhou, definhou até morrer. Num dia de sábado, no meio da feira, depois de fazer uma cobrança, a um de seus credores, o pai acabaria morto. Vítima de cinco golpes de faca peixeira.

Os parentes, tios e tias adotaram os órfãos. Dois deles acabaram sobrando: Vicente e Alfredo. O padre Bulhões enviou Alfredo pra casa duma tia sua, em Garanhuns. Ao completar noves anos de idade a tia do padre ingressaria Alfredo no Seminário Menor dos Redentoristas de Santo Antonio de Pádua. Ali Alfredo estudou Teologia, Filosofia e Direito Canônico. Pela Universidade Católica de Pernambuco se formou advogado. Tornou-se empresário do ramo imobiliário.  Vicente foi levado pro Rio de Janeiro, onde permaneceu na casa de padrinhos até os dezoito anos. Depois foi pra casa dum tio militar, na cidade de Campinas, no estado de São Paulo. E ingressaria na Escola Preparatória de Cadetes do Exército. Chegaria a Oficial Engenheiro Militar de Carreira. A disciplina, a rigidez do serviço militar tanto influiria na sua formação moral. Participou ativamente na construção da Fazenda Chapadão, no interior do estado, que serviria para alojar o contingente de Cadetes da AMAN, os famigerados ‘’Agulhas Negras’’ do qual o general Nilton Cruz era integrante. Estava-se no ano de 1942.

A Fazenda Militar, projeto em estilo colonial espanhol, das mãos do engenheiro-arquiteto Hernani de Val Penteado concebido. Oficial Vicente participou também da construção da ‘’Torre Duque de Caxias’’ edificação propositadamente erguida para servir de símbolo pra elevar o espírito de honradez que o nome do patrono do Exército brasileiro evocava nos militares.  Estadista, soldado, guerreiro e pacificador, Caxias constituía para aqueles bravos e obstinados soldados fonte de luz e guia inspiradora.  Vicente tomara o oficialato como compromisso sagrado, a qual se dedicava integralmente, a ponto de considerar-se patrimônio vivo do Exército e da Pátria brasileira. Dentre os vários preceitos do Código de Honra do Soldado, um lema imprimira-se com suor e sangue na sua alma: ‘’Sede irrepreensivelmente honesto em todos os atos da sua vida, não faltando jamais a verdade, nem obtendo por meios condenáveis aquilo a que não tem direito ou que não pode conseguir a custa de seu próprio esforço.’’ Coronel Vicente Albuquerque, de coração amava o brasão que trazia na túnica e na barretina. A singela composição da Escola dos aspirantes a Cadetes de Caxias. Os versos da canção de vibrantes acordes de tão belos e profundos sentimentos, a enaltecer o ideal de respeito pela pátria e seus honrosos ideais:

‘‘No azul do firmamento/Cintilante apareceu/ A estrela abençoada/ Da escola que venceu/ EPC és gloriosa/ Tua marcha é triunfal/ Os alunos vão chegando/ Com seu garbo marcial/ Certo de que venceremos/ Luta mesmo desigual/ Ombro a ombro marcharemos/ Pra conquistar nosso ideal/ Teu destino está traçado/ EPC nascestes pra vencer/ Com seu garbo varonil/ Oh Aluno sempre avante/ Para maior glória do Brasil/ Hurra!’’

O governo ditatorial não demoraria a subir ao poder, recrutaria as Negras Agulhas pra frente de batalha. Coronel Vicente Albuquerque nomeado pro DEIC. Atuou, tanto no Rio como em São Paulo. Na ‘’Casa da Morte’’ em Petrópolis. Qualquer um, pra ser considerado subversivo bastaria pertencer a UNE, a um movimento revolucionário, as guerrilhas comunistas. Ou simplesmente  ser universitário, ou artistas. Daí passava a ser vistos como inimigo nacional. Militar que se preze trazia tatuado no braço o Lema ‘‘Brasil: Ame-o ou deixe-o’’. Coronel Vicente, torceu pela conquista do tricampeonato de Futebol da Seleção Brasileira, tomando cerveja, no Palácio Itamaraty,  ao lado do seu maior ídolo, o presidente Emílio Garrastazu Médici, ex-Comandante dos ‘‘Agulhas Negras’’. Sentia-se um homem feliz e realizado, por fazer o que mais gostava: ajudar o governo a exterminar o mal. Dessa forma construiria seu patrimônio.

E o mundo deu meio mundo de voltas. E tantas foram, às voltas dadas na lapa do mundo que o passado ficou lá pra trás. Dedicava-se doutor Vicente com afinco, agora a descobrir sua descendência, a sua origem. Sabia que em Santana do Ipanema duas eram as fontes a serem buscadas:  padre Francisco José Correia de Albuquerque, um dos fundadores da cidade. A outra, Coronel Lucena Maranhão de Albuquerque. Pensou em seu irmão Alfredo, aquele, talvez poderia ser um Albuquerque vindo do homem de Deus. Quanto a ele, preferia que sua descendência viesse do outro. Daquele que ajudou o governo a acabar com uma praga no sertão.

Benalmadena Costa, vilarejo debruçado, a espojar-se na praia do mar mediterrâneo, a oeste de Málaga - Espanha. O por do sol vislumbrava o Estreito de Gibraltar. A molhar de sal, os pés da Europa. Dali, do meio daquele casario caiado e florido, de humilde casebre. Pras terras devolutas - Partira o primeiro Albuquerque - pra recém descoberta colônia de Portugal, em busca de aventura.

Fabio Campos

  

Zabelê

Fez as malas e disse a si mesmo: “-Vou embora.” E foi. O único céu que havia levou com ele. Tinha consciência do que estava fazendo. Deixando pra traz um apartamento Raul Seixas. Jamais estivera disposto a ficar com a boca escancarada cheia de dentes e esperar a morte chegar. Demorou-se na esquina, uma eternidade esperando um táxi. Ainda dava pra ver o jardim e as acácias. Enquanto a lua, lá encima, continuava fingindo que dormia, porém não o enganava. Com a boca dizendo “c” de cebola branquinha, a lua, boiando num lago azul de ponta cabeça, congelado e frio.

Sabia que não era a primeira vez. Algum tempo atrás havia passado por aquela experiência. Mudar de vida, de ares, de cidade. Era como morrer, e dar-se o direito de nascer de novo. O colégio, os amigos, a namorada, o trabalho. Tudo mudado em outros. Dos mesmos, sendo outros. Cópias das cópias do que sempre foram, e sempre seriam. O amigo doido, apelidado de “gordo”, que sonhava em mudar o mundo. Mesmo no outro, continuava gordo. Porém tinha agora, uma tatuagem duma águia que tomava todo o delta do braço direito. Impossível lembrar dele estático. Sempre gesticulando pulando, gastando-se, consumindo de si pra si. Aquele que levara o chapéu do seu pai, no carnaval, e que tinha mania de falar sobre sexo. Agora virara revolucionário, sabia tudo sobre Che Guevara. Jurava que ainda veria Brasília sitiada. E o cabeludo que amava astronomia, era fã de Marcelo D2, e quando tomava um porre cantava todas as músicas de Renato Russo, e se emocionaria quando chegasse naquela que dizia: 

“mudaram as estações, nada mudou/ eu sei que alguma coisa aconteceu/ Está tudo assim tão diferente/ Mesmo com tantos motivos pra deixar tudo como está/ Nem desistir, nem tentar/ Agora tanto faz/ Estamos indo de volta pra casa”  

E eram tantas incertezas que não sabia se continuava com aquele sonho de montar uma banda, gravar um disco. No meio do pantanal mato-grossense não fazia muito sentido. Lembrou do tio, que quando casou foi parar no meio do serrado. Trabalhou numa empresa de exploração de madeira, disfarçada de empresa mineradora. Começou nas frentes de derrubada de árvores. Sofreu “o pão que o diabo amassou.” Viu companheiros morrerem de malária. Tomou picada de cobra venenosa, passou dias entre a vida e a morte. Nos delírios via o sertão onde nascera, e era como voltar ao paraíso. Chegava a sentir o sol vindo fazer-lhe carinho. E o sonho que sonhava era em vermelho cor de brasa. No rosto rolavam grossas lágrimas incandescentes e quando uma atingia o chão provocava alucinante explosão, que estranhamente não emitia som de espécie alguma. Tornou-se operador de máquina. No mês de julho era obrigado a acordar no meio da madrugada, e fazia um frio tão intenso que a água congelava dentro dos canos. A luz do alojamento de névoa envolta. E as lâmpadas penetradas de tanta umidade duravam só uma semana, queimava o filamento. O óleo combustível, armazenado num galpão com regulador de temperatura pra não congelar. Ter que dormir sobre um barril de pólvora era opção. Tudo pra fugir da geleira. Agora sabia o significado de sentir frio. “-Fatalmente mãe morreria se viesse prá cá.” pensou.

“O sol pediu a lua em casamento/ E a lua, disse: Não sei, não sei vê se me dá um tempo/ O sol congelou seu coração/ Mas o astro rei com todos os seus planetas, cometas asteróides/ Terra, marte, Vênus, netuno e uranos/ Foi se apaixonar justo por ela/ Que o despreza e o deixa esperar.”

Nilba tornara-se colega de trabalho, podia até considerá-lo amigo. Tudo nele era cheio dum misto de graça e estranheza. As feições de indiano, a origem árabe. Viera de Kizimkazi uma das ilhas de Zanzibar. As coisas esquisitas que comia, jamais tivera coragem de provar. Era, no entanto, aromática e colorida. Nunca faltando nos seus pratos das especiarias que seus antepassados comercializavam e enriqueceram. Em tempos imemoriais, cravo, canela, pimenta do reino. Por muito tempo traficaram escravos pedras preciosas e marfim. Mas vieram os Otomanos com seu exército muçulmano, à custa de muitas batalhas, conquistaram a região. O estreito de Gibraltar, a cidade de Constantinopla. O dia da conquista 28 de julho, trazia-lhe recordação das festas de Sant’Anna. Os antepassados de Nilba viriam surgir o poderoso império Turco. Cuja bandeira ostentava aquela lua que Zabelê deixou, no céu que trouxe de Maceió, no Jardim Acácia, dizendo “c”, e uma estrela de cinco pontas, tendo ao fundo o vermelho, que representava o por do sol no deserto, o sangue derramado dos bravos heróis. Abrasador, árido de vidas durante o dia, aterrador e gélido de almas à noite. Temia-o. Matar e morrer fazia parte da genética de seu povo.

“Escravos de Jó jogavam caxangá/ Tira põe deixa o Zabelê ficar/ Guerreiros com guerreiros fazem zigue-zigue-zá.”

Estefane era a única mulher do grupo de amigos. Longos cabelos revoltos. Tocava bateria. Tatuara cinco estrelas no tornozelo, um beija flor na nuca e a palavra “The Blue Lagoon” na parte interna do pulso direito, em alusão ao filme que mais assistira na vida, pelo menos seis vezes. Chorou muito quando o trágico acidente aéreo levou “Os Mamonas Assassinas”. Fumou um artesanal, o que ajudaria a aliviar a dor da perda. O namorado tinha também uma Brasília amarela. No verão, todo ano iam acampar na praia. E voltavam de corpos bronzeados, pêlos oxigenados, desmelaninizados. Lia tudo de Paulo Coelho, e pretendia um dia fazer o caminho de Santiago de Compostela. Uma tarde de shopping, um tênis novo, uma prancha de surf, a estourar o cartão de crédito. Sobrou a mensalidade do cursinho pré-vestibular, um dia seria Assistente Social. Isso se até lá não ficasse famosa, e aí iria pro Festival da canção de Mônaco o “Word Music Awards”, o cassino de Monte-Carlo, faria top-less nas paradisíacas praias a misturar-se com os galegos e ruivos monegascos. Seria recebida por Sua Alteza Sereníssima princesa sua xará, e o príncipe soberano da Casa de Grimaldi Alberto Segundo.

“É perigoso o seu sorriso/ É um sorriso assim jocoso, impreciso/ Diria misterioso, indecifrável riso de mulher/ Não sei se é caça ou caçadora/ Se é Diana ou Afrodite, se é Brigite, Stephanie de Mônaco, inteiro ao seu dispor (princesa)/ Pobre de mim..."


Zabelê encontrou Saladino altivo, tomando toda a cena. Sem saber ao certo porque, saiu da sala de projeção. Preferiu ganhar as ruas de Belém, o Mercado De-Ver-o-Peso, a Praça do Relógio, a Estação das Docas, uma verdadeira Xangai. Por mais que quisesse jamais se misturaria, no meio daquele povo bronzeado, de rosto raso, olhos puxados, a Casa das Onze Janelas, encerradas de mistério. E voltou pro apartamento, pois nem os mergulhões posados nas estacas do cais, nem o sol bravamente lutando contra as nuvens, seriam suficientes para impedir a chuva torrencial do fim da tarde.

Fabio Campos


Zabelê(Crypturellus noctívagus zabele) ave cinegética. Habita as matas brasileiras, e a Caatinga do Nordeste do Brasil, onde também é chamada de Zambelê.  

A Usina (Parte Três)

Desde o começo, era aquele um dia diferente. De feira nunca era um dia qualquer. As toldas plainavam suas panadas cirandantes trançando vias e ruelas. Vapores de calor se assoprando dum sol bonachão. Risonho sol, de fim de tarde. Bufava uma brisa amarela feno do leste. Esturrava, indo resvalar nos beiços do Panema. Redemoinho de gente matraqueava sobre o burburinho dos amantes, flagrados pelo próprio marido traído. Dados a um amor lascivo, tendo a relva macia por coiteira. A zoada dava a vender piaba ao litro, na porta do mercado da carne. A guarnição da polícia, parelha de soldado, assustados seguiram pelo caminho de pedras ladeira. Entre os curiosos, seguravam os revólveres nos coldres para não cair, davam a vasculhar. Como desejavam saber ao certo o que procuravam. O povo também procurava. Cornélio de arma branca empunhada o pioneiro na procurada. Amada e amante nuzinhos em pêlo simplesmente haviam sumido.  

‘’Nossa senhora do Desterro, desterrai o mal de minha vida. Ó Bem-aventurada Virgem Maria, mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo Salvador do Mundo, Rainha do Céu e da Terra, advogada dos pecadores, auxiliadora dos cristãos, desterradora das indigências, das calamidades, dos inimigos corporais e espirituais, dos maus pensamentos, dos sonhos pavorosos, das ciladas, das pragas, dos desastres, bruxarias e maldições, dos malfeitores, assaltantes e assassinos.’’

Virados em vultos os amantes, tragados por Caapora. O deus protetor da mata branca abocanhou os amantes, com toda a luz do sol, com todo seu calor. Enquanto seus mitológicos pulmões exalavam calor vulcânico em larva fluída por cima das pedras. Seu hálito sorrateiramente se precipitava sobre o céu do sol, feito vento tinto de preto, numa força tão intensa e violenta que não suportando, desmaiou o dia. E desde então ninguém via mais nada sem a ajuda dum luzeiro. A rua foi contar fuxico na madorna da porta. No enfado do dia engenhoso, novamente a diluir-se no oitão da usina de algodão de Seu Luiz dos Anjos. João Dorotheu, Enéas e Antonio Tenório, jogavam: o bispo, a torre e o cavalo. Nem um dos três avançava. Um jogo de palavras, travado. Num campo da sevícia lingual.

‘’Minha amada mãe, eu prostrado agora aos vossos pés, com piedosíssimas lágrimas, cheio de arrependimento das minhas pesadas culpas, por vosso intermédio imploro perdão a Deus infinitamente bom.  Nossa senhora do Desterro, atendei o meu pedido!
(em silêncio faça o seu pedido) Rogai ao vosso Divino Filho Jesus, por minha família, para que ele desterre de nossa vida todos estes males, nos dê perdão de nossos pecados e nos enriqueça de sua divina graça e misericórdia.Nossa Senhora do Desterro, desterrai o mal da minha vida!’’

O Bispo disse; ‘’-Eu tive uma conversa com o demônio.’’ Ora mais que história mais sem pé nem cabeça! Enéas e Seu Antonio queriam saber como foi. Seu João estava disposto a contar, foi assim: “-Eu estava escutando o rádio. Toda noite tenho por costume escutar “A voz do Brasil”. Como sempre, “O Guarany” de Carlos Gomes abrindo o programa, a bela voz de Luiz Jatobá dizendo que em Brasília eram 19 horas, daí começou a falou do “Jango”. Disse que o presidente estaria criando a partir daquele mês o 13º salário, para o funcionário público. O governo dali em diante iria taxar os óleos lubrificantes vendidos por empresas estrangeiras e o governo outorgaria o monopólio da Petrobrás. Novamente falou da tragédia no Senado Federal a pouco ocorrido, onde o senador de Alagoas Arnon de Melo em plena tribuna teria sacado um revólver e deu três tiros noutro senador seu conterrâneo Silvestre Péricles, no entanto sem atingir o alvo. Porém um dos tiros acabou matando o senador José Kairala do Acre que infelizmente nada tinha a ver com a briga. Daí o rádio começou a chiar como se fosse sair do ar. E uma voz vinda das profundas do inferno soou dizendo: “-João! Eu sou o demônio, fique certo que eu vou soltar as pestes em cima de você! Tá pensando que eu não sei o que anda aprontando? Cabra de pêia safado!”  “-Ora, compadre! Não passou pela sua cabeça que o cão estivesse dirigindo essas palavras ao presidente da República que também se chama João!

Cobri-me com o vosso manto maternal e desterrai todos os males e maldições, e em especial atendei o meu pedido, que tanto necessito agora. Afugentai, ó Senhora, de minha casa a peste e os desassossegos.”

A “Torre” que até então permanecera calado, quebrando o silêncio disse ”-Se for pra contar história de trancoso é comigo mesmo. Conheci um jogador de baralho, que por sinal se chamava João. Certa ocasião passou três dias com três noites numa mesa de jogo. Estava ganhando um dinheiro avultado! Os outros jogadores começaram a desconfiar que estivessem sendo trapaceados. Então lá pro meio da terceira madrugada resolveram acuar meu compadre João! Um deles sacou um revólver, no que tentou disparar a arma engripou. Se aproveitando do tumulto o homem simplesmente sumiu. Invultou-se na frente de todo mundo! E só apareceu uma semana depois quando tudo já tinha se acalmado. Se apresentou na delegacia de Polícia de Santana do Ipanema, contou sua história pra Seu Caroula o delegado, e tudo ficou resolvido.’’
Que por vossa intercessão, minha família e eu, possa obter de Deus a cura de todas as doenças, encontrar as portas do Céu abertas e convosco ser felizes por toda a eternidade. Amém. Nossa Senhora do Desterro, desterrai o mal de minha vida!’’
Seu Antonio Tenório tinha um belo alazão trotador. Tão belo animal simplesmente fantástico. Homem e montaria uma só criatura. Viviam como se fosse um, a extensão do outro. Sabia um, o que outro pensava. Sentimentos fundidos. A fama de ‘’Apolion’’ em pega de boi na caatinga ia longe. Sempre se sagrava vencedor. Uma coisa intrigava a todos; a longevidade do animal. Ora, era sabido que um cavalo vivia no máximo, por volta dos 30 anos de idade. Fazendo as contas “Apolion” deveria ter mais de 40 anos.  Ora, essa nem de longe era a história mais escabrosa sobre o equino. Diziam que o cavalo era cego e quem o guiava era o próprio demônio.
“Ó Nossa Senhora do Desterro! Os que tiverem confiança nas vossas misericórdias serão felizes em seus negócios e viagens. Não morrerão sem a confissão e ficarão livres de uma morte repentina e traiçoeira.”
Certa vez ao retornar duma pega de boi no mato, Seu Antonio deparou-se com uma visão pavorosa no meio da caatinga. Plasmando-se do meio das trevas surgiu um cavalo de fogo montado pelo capeta que com muita fúria investiu contra eles. Antonio bradou alto, a Nossa Senhora do Desterro, que viesse em seu auxílio. Imediatamente uma ponta surgiu na testa de “Apolion” e um escapulário que Antonio trazia no pescoço virou-se numa armadura. Investiram contra o cavalo do cão, em cheio atingindo seu coração. O que provocou uma grande explosão. No outro dia encontraram Seu Antonio desmaiado enquanto o cavalo calmamente pastava ali perto, esperando que seu dono acordasse.
Fabio Campos