A história que a gente se inventa
de contar, é história de um povo, de uma festa religiosa, numa cidade do sertão.
Num tempo em que dez réis e vintém eram dinheiro. Tempo que ainda existia
matuto de verdade. Daqueles que corria léguas só de ouvir pela primeira vez o ronco dum carro. O mês de julho vinha se encostando por ali, como quem não queria e
querendo. Aí Santana e os santanenses se viravam noutros. Com afinco, suas
ações voltadas todinhas pras festas da padroeira, Senhora Sant’Ana.
A cada ano, um mês juliano,
novinho em folha se instalando. E o sertanejo com cara de bezerro que não largou a
mama, se pondo a esbanjar alegria. Oferecido, o sertão assanhava suas asas por
riba das coisas dos homens, em nuvens brincalhonas, ora inchadas de brancura,
ora plúmbeas d’água de chover. Fazendo Senhora Caatinga vestir sua mais exuberante
saia verde. Pintassilgado de vermelho o fruto do mandacaru, a saudar com solene
reverência a avó de Jesus netinho! Ó povo sertanejo, sapientíssimo! De saber
como, e de onde, tirar o máximo de proveito do que ela, a vida sempre estaria a
lhes mostrar uma saída. Desconfiado por natureza, um olho no gato outro no
peixe: um na roça outro no céu. Assim era o matuto. A volver em preces e
pedidos, a avó amabilíssima que providenciasse o necessário pra que sua festa
fosse aquela, a mais bonita.
O Largo em frente á igreja nesse
tempo nem calçamento tinha. Pelas festas, o prefeito ordenava que colocassem
carradas de piçarra no passeio, pra dar condição do povo andar sem se atolar na
lama. O secretário de obras baixara portaria, estabelecendo que o trânsito de
animais e carros de boi, no período dos festejos, ficaria limitado a Rua da
intendência, pela Rua do Sebo, e a Rua da Cadeia Velha. O serviço de difusora da
praça central, arribado num poste, a alegrar o rosto do dia. Silabando os
avisos governamentais e sibilando aos ventos varonis, belas páginas musicais.
Modas de Dalva de Oliveira e Carlos Galhardo. Sempre oferecidas por “alguém
apaixonado” a “alguém que já sabia quem era”. Com a proximidade da noite, o
palanque oficial amplamente ocupado pelas autoridades. Os discursos solenes
engomados, em trajos sóbrios de linho riscado. Flor na lapela, sapato
envernizado, chapéu de massa. No parapeito riquíssimo buquê de fitas de cetim, com
as cores da bandeira do município. Homens novos, meninos velhos, A se
espremerem, protegiam-se da garoa fina embaixo do coreto. A bandinha Santa
Cecília nos degraus à porta da igreja. Ladeado de coroinhas portando lanternas
dotadas de velas acesas, pendidas nos mastros seguia o cortejo. Pelo corredor
central do interior da nave rumo ao altar mor. O coral alumiado pelas vestes e
cânticos fulgurantes. Entre floreios de vozes, como se o tempo todo a dizer: “Óóóó!”
E as bocas a tomar a forma daquela letra. Dali a pouco dar-se-ia início a mais
uma novena em louvor, honra e glória da excelsa padroeira Senhora Sant’Ana.
Tudo ainda era como antigamente,
nada tinha mudado. O altar belamente ornado. As imagens da padroeira e de São
Joaquim adornadas. Efusiva profusão de flores coloridas e perfumadas entre
luzes proeminentes em sibilante fulgor etéreo. Nuvens de incenso se expandido
por entre os presentes. Emprestando diafaneidade ao ambiente, instigando
narinas. Acólitos, seminaristas, sacristãos, diáconos. O pároco anfitrião, o
sacerdote, o vigário, o bispo da arquidiocese, a mitra violeta apontando o
alto, estola branca franjada de dourado. O báculo e o anel episcopal à destra.
A assembléia de pé atenta, convivas. O sino no alto do campanário escrevendo
agudas notas nas partituras celestes borradas de negro, pra muito além do
frontispício. Os fogos pipocando, assustando escutas pueris, pardais e pardocas
revoando dos ninhos das árvores do centro da cidade. Não era difícil decifrar o
que dizia o calendário. Naqueles dias fogos estourariam sempre ao meio dia, e às
seis horas da tarde. O banho do matuto na beira do açude de tardinha. O cheiro do
sabão da terra, o afetado perfume de meio de feira a muito custo esconderia a
inhaca da montaria. Enquanto a brilhantina luzidia no cabelo crespo. O café
engolido as pressas. A roupa, especialmente encomendada pra aquela ocasião, voltaria
manchada de picolé e banha de carne de galinha. Os sapatos novos criariam calos,
o que obrigaria a tirar dos pés antes do fim da festa. O sono reparador debaixo
da marquise da loja. E os pisantes novos, que seriam pagos em prestações que
iam durar até o final do ano, ganhavam novos donos. O prazer de passear naqueles
brinquedos rústicos de doer. Os corrupios, engenhoca que girava e girava, a embebedar
gente nas cadeiras de balanços suspensas no ar. As barcas, puxadas por uma
corda pelo próprio brincante, era mais desprendimento de força que diversão.
Mas o que era mesmo o “Terezão”?
Tratava-se de um Cassimiro Coco, constituído de bonecos gigantes, que representavam
os cangaceiros de Lampião. Enfim, um rude teatro de bonecos. Matuto só ia ver se
tivesse coragem! É preciso que se diga que o centro da cidade tomado pelo povo,
nas noites de festa da padroeira, ficava dividido em três territórios
distintos: Desde a frente da igreja matriz até o fim da Rua Tertuliano Nepomuceno
circulava a pobreza, o matuto o povo da roça. Por conta disso se concentrava por
ali, os brinquedos mais rústicos; da frente da igreja indo pro lado da Rua de
São Pedro, até a entrada da Rua professor Enéas circulava o classe média,
principalmente o santanense que morava e vivia em Santana; da esquina do
sobrado do hotel de Maria Sabão subindo em direção a Avenida Coronel Lucena,
até a bifurcação com a Rua Benedito Melo (antiga Rua Nova) ficavam a prosear a
classe mais importante, o classe alta, os filhos de empresários e comerciantes.
Em especial os que residiam e estudavam na capital do Estado e em Recife. E
nessa área se concentravam os diversos jogos de azar, roletas do bicho, jogos
de apostas nos dados era maioria em número de bancas.
Existia um matuto vendedor de
inhame e macaxeira que atendia pelo nome de José Costa Cândido, mas que todos chamavam
de Zé Cândio. Na última noite de festa uma segunda-feira, a boquinha da noite
estava no carteado da Casa de Jogo de Zé Chagas, que ficava ao lado da
Vidraçaria “A Triunfante” dos irmãos Carvalhos, um pouco a cima do Cine Alvorada.
Consultou o cobrinho que restava no bolso, e viu que o apurado de sábado praticamente
havia ficado todo ali. Restando-lhe três contos de réis. Saiu de lá acreditando
que quando alguém entrava em uma casa de jogo, um tinhoso chamado Zé Pilintra se
encostava no cabra, ou abria as portas da fortuna, ou dava as costas. Aquele
fora um dia avessado. Desses que quando a gente acorda parece que pisou em rastro
de corno. Ganhou a Rua dos Porcos, entrou no bordel de "Madame" Conceição a cartomante, Ceiçinha pros íntimos. Os dois eram amigos, tiveram longa prosa.
Depois da conversa com a rameira Zé
Cândio ficou mais animado. Pediu um litro de Ron, e refrigerante. Dançou com a rapariga, bebeu,
e bebeu. E mais alegre ainda ficou. As orelhas pegando fogo, os pés como se
pisasse em rolimã, partiu pelo meio do povo. Quando chegou enfrente a barraca
do Teresão, gritou: “- Zé Pilintra seu “fio” duma égua! Devolva meu dinheiro!” E
sem mais nem menos resolveu invadir o teatro de bonecos. Em vão o porteiro tentou
segurá-lo. Trôpego, sem dizer coisa com coisa, partiu o mangaieiro pra tentar
tirar um punhal de madeira que um dos bonecos tinha na cintura. O povo que
pagara pra assistir, sem entender patavina. Alguns riam pensando que a cena fazia
parte do show. Disposto a tirar o punhal do boneco gigante, assim estava o cabra. Em vão os funcionários tentavam lhe conter. A polícia chegou. Finalmente
nosso herói foi dominado. E o último dia de festa de Sant’Ana foi curtir sua
ressaca, a ver o sol nascer quadrado, trancafiado no xilindró.
Fabio Campos