
Sabia que não era a primeira vez.
Algum tempo atrás havia passado por aquela experiência. Mudar de vida, de ares,
de cidade. Era como morrer, e dar-se o direito de nascer de novo. O colégio, os
amigos, a namorada, o trabalho. Tudo mudado em outros. Dos mesmos, sendo
outros. Cópias das cópias do que sempre foram, e sempre seriam. O amigo doido,
apelidado de “gordo”, que sonhava em mudar o mundo. Mesmo no outro, continuava
gordo. Porém tinha agora, uma tatuagem duma águia que tomava todo o delta do braço
direito. Impossível lembrar dele estático. Sempre gesticulando pulando,
gastando-se, consumindo de si pra si. Aquele que levara o chapéu do seu pai, no
carnaval, e que tinha mania de falar sobre sexo. Agora virara revolucionário, sabia
tudo sobre Che Guevara. Jurava que ainda veria Brasília sitiada. E o cabeludo
que amava astronomia, era fã de Marcelo D2, e quando tomava um porre cantava todas
as músicas de Renato Russo, e se emocionaria quando chegasse naquela que dizia:
“mudaram as estações, nada mudou/
eu sei que alguma coisa aconteceu/ Está tudo assim tão diferente/ Mesmo com
tantos motivos pra deixar tudo como está/ Nem desistir, nem tentar/ Agora tanto
faz/ Estamos indo de volta pra casa”
E eram tantas incertezas que não
sabia se continuava com aquele sonho de montar uma banda, gravar um disco. No
meio do pantanal mato-grossense não fazia muito sentido. Lembrou do tio, que
quando casou foi parar no meio do serrado. Trabalhou numa empresa de exploração
de madeira, disfarçada de empresa mineradora. Começou nas frentes de derrubada
de árvores. Sofreu “o pão que o diabo amassou.” Viu companheiros morrerem de
malária. Tomou picada de cobra venenosa, passou dias entre a vida e a morte.
Nos delírios via o sertão onde nascera, e era como voltar ao paraíso. Chegava a
sentir o sol vindo fazer-lhe carinho. E o sonho que sonhava era em vermelho cor
de brasa. No rosto rolavam grossas lágrimas incandescentes e quando uma atingia
o chão provocava alucinante explosão, que estranhamente não emitia som de
espécie alguma. Tornou-se operador de máquina. No mês de julho era obrigado a
acordar no meio da madrugada, e fazia um frio tão intenso que a água congelava
dentro dos canos. A luz do alojamento de névoa envolta. E as lâmpadas penetradas
de tanta umidade duravam só uma semana, queimava o filamento. O óleo combustível,
armazenado num galpão com regulador de temperatura pra não congelar. Ter que dormir
sobre um barril de pólvora era opção. Tudo pra fugir da geleira. Agora
sabia o significado de sentir frio. “-Fatalmente mãe morreria se viesse prá cá.”
pensou.
“O sol pediu a lua em casamento/
E a lua, disse: Não sei, não sei vê se me dá um tempo/ O sol congelou seu
coração/ Mas o astro rei com todos os seus planetas, cometas asteróides/ Terra,
marte, Vênus, netuno e uranos/ Foi se apaixonar justo por ela/ Que o despreza e
o deixa esperar.”
Nilba tornara-se colega de
trabalho, podia até considerá-lo amigo. Tudo nele era cheio dum misto de graça
e estranheza. As feições de indiano, a origem árabe. Viera de Kizimkazi uma das
ilhas de Zanzibar. As coisas esquisitas que comia, jamais tivera coragem de
provar. Era, no entanto, aromática e colorida. Nunca faltando nos seus pratos das
especiarias que seus antepassados comercializavam e enriqueceram. Em tempos
imemoriais, cravo, canela, pimenta do reino. Por muito tempo traficaram
escravos pedras preciosas e marfim. Mas vieram os Otomanos com seu exército
muçulmano, à custa de muitas batalhas, conquistaram a região. O estreito de
Gibraltar, a cidade de Constantinopla. O dia da conquista 28 de julho, trazia-lhe
recordação das festas de Sant’Anna. Os antepassados de Nilba viriam surgir o
poderoso império Turco. Cuja bandeira ostentava aquela lua que Zabelê deixou, no
céu que trouxe de Maceió, no Jardim Acácia, dizendo “c”, e uma estrela de cinco
pontas, tendo ao fundo o vermelho, que representava o por do sol no deserto, o
sangue derramado dos bravos heróis. Abrasador, árido de vidas durante o dia,
aterrador e gélido de almas à noite. Temia-o. Matar e morrer fazia parte da
genética de seu povo.
“Escravos de Jó jogavam caxangá/
Tira põe deixa o Zabelê ficar/ Guerreiros com guerreiros fazem zigue-zigue-zá.”
Estefane era a única mulher do grupo
de amigos. Longos cabelos revoltos. Tocava bateria. Tatuara cinco estrelas no
tornozelo, um beija flor na nuca e a palavra “The Blue Lagoon” na parte interna
do pulso direito, em alusão ao filme que mais assistira na vida, pelo menos seis
vezes. Chorou muito quando o trágico acidente aéreo levou “Os Mamonas
Assassinas”. Fumou um artesanal, o que ajudaria a aliviar a dor da perda. O namorado
tinha também uma Brasília amarela. No verão, todo ano iam acampar na praia. E voltavam
de corpos bronzeados, pêlos oxigenados, desmelaninizados. Lia tudo de Paulo
Coelho, e pretendia um dia fazer o caminho de Santiago de Compostela. Uma tarde
de shopping, um tênis novo, uma prancha de surf, a estourar o cartão de
crédito. Sobrou a mensalidade do cursinho pré-vestibular, um dia seria Assistente
Social. Isso se até lá não ficasse famosa, e aí iria pro Festival da canção de
Mônaco o “Word Music Awards”, o cassino de Monte-Carlo, faria top-less nas
paradisíacas praias a misturar-se com os galegos e ruivos monegascos. Seria
recebida por Sua Alteza Sereníssima princesa sua xará, e o príncipe soberano da
Casa de Grimaldi Alberto Segundo.
“É perigoso o seu sorriso/ É um
sorriso assim jocoso, impreciso/ Diria misterioso, indecifrável riso de mulher/
Não sei se é caça ou caçadora/ Se é Diana ou Afrodite, se é Brigite, Stephanie
de Mônaco, inteiro ao seu dispor (princesa)/ Pobre de mim..."
Zabelê encontrou Saladino altivo, tomando toda a cena. Sem saber ao certo porque, saiu da sala de projeção. Preferiu ganhar as ruas de Belém, o Mercado De-Ver-o-Peso, a Praça do Relógio, a Estação das Docas, uma verdadeira Xangai. Por mais que quisesse jamais se misturaria, no meio daquele povo bronzeado, de rosto raso, olhos puxados, a Casa das Onze Janelas, encerradas de mistério. E voltou pro apartamento, pois nem os mergulhões posados nas estacas do cais, nem o sol bravamente lutando contra as nuvens, seriam suficientes para impedir a chuva torrencial do fim da tarde.
Fabio Campos
Zabelê(Crypturellus noctívagus zabele) ave cinegética. Habita as matas
brasileiras, e a Caatinga do Nordeste do Brasil, onde também é chamada de
Zambelê.
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