Lá vinha uma cidade, fazendo um voo rasante. Numa
grande planície chamada de vaso, no meio da mata branca. Isso mesmo, uma cidade
inteirinha planando no peito do céu da caatinga. Veio vindo, veio vindo, e
plantou-se no meio daquele lugar inóspito. A lagartixa esquentando ao sol, a
tudo assistia. Balançou a cabeça com ar, talvez, de aprovação. O mandacaru ressonava,
dormitando em pé, sequer se dava conta do que acontecia a sua volta. Já o sol havia
percorrido mais de légua do seu céu. Arfante, ia indo, cansado, cuspindo fogo
pra cá, ainda mais fogo pra lá, numa tosse seca. Bem que queria encostar-se num
pau que lhes desse sombra. Pensou até em pegar uma vereda. Mas não podia sair
do seu trilho. O coitado, todos os dias tinha que ir pelo mesmo percurso. Quando
percebeu, já havia chegado. A tal cidade voante - malmente se dera conta – e
ela já estava lá. Não mais havia o que
fazer, tinha mesmo era que aceitar aquela outra realidade.
Cinco longos segundos se passaram, sem que nada
acontecesse. Dizer que nada havia acontecido, a alargado espaço de tempo
decorrido. Era no mínimo uma bruta duma irresponsabilidade do que narra. Pois
nesse ínterim, a bandeira triangular que pendia do minúsculo mastro fixo a
abóbada, na cúpula do castelo - onde o prefeito prefeitava - tremulou pelo
menos seis vezes. Espalhando a seu bel
prazer novos ventos carmim. Um mangangá, que muito tinha de alienígena,
inoportuno como sempre costumam serem, os seres pertencentes a esta ordem. Inadvertidamente
invadiu o espaço aéreo daquela urbanidade, até então misteriosamente silenciosa.
Onde estariam os habitantes? Atrevidamente o coleóptero foi fazer pouso numa
rosa gorda, roxa, no meio do jardim da casa do padeiro. Teria sido atraído pelo
cheiro de pão doce, emanado dos musgos violáceos e da relva azul turmalina? Só
teve tempo de aterrissar. Primeiro três pares de patas traseiras, depois as
quatro dianteiras. Sendo imediatamente abduzido pro interior duma
monocotiledônea. Interceptado por uma língua viscosa e vermelha como poupa de um
morango. Indiferentes ao sequestro do pobre artrópode, uma caravana de formigas,
peregrinas das montanhas de Belac Rasec seguiam rumo ao velho mundo de Milas Mibalas.
E como lhes era permitido sonhar sonhavam, com um lugar donde emanasse do solo chocolatado,
tulipas encravadas de topázios e ametistas. Onde pudessem erguer suas tendas e repousar
com os seus, e fartarem-se a várzea de um rio onde ao invés de água corria ouro
líquido. Porem era muito provável que encontrassem hostilidade e escravidão como
da última vez.
A mulher do padeiro estava à
porta. Se fazia sentada a uma cadeira de balanço de plástico musical multicolor.
A cada solavanco solfejava um “ré-mi-fá”.
No “ré” e no “mi” a planta dos pés estavam no chão. No “fá”, suspensos no ar. Vez ou outra parava o sacolejo e bufava uma
clave de sol, bem debaixo do narigudo alpendre real. O menino de cabelos
escorridos e franja, sentado à relva, ao modo de um monge tibetano, fechava um
olho, pra sorrir um riso insípido, não sonoro, da cor de leite. Não sei o porquê a mulher estava tão séria.
Não dava pra ver seus olhos, imaginei que fossem como olhos de peixe morto. Ainda
mais chocante pelos cílios sem cor. Olhava através das lentes escuras dos óculos
de hastes de gatinha, que jamais perderia seu poder, mesmo quase perdido no seu
imenso rosto. Rosto como de látex, cuja boca parecia a do Robin, o menino
prodígio companheiro do Batman. Muito provável mesmo que fosse uma máscara, e
que embaixo houvesse um rosto de verdade. Um lenço branco de bolinhas vermelhas
cobria-lhe a cabeça, mas deixava amostra uma mexa de cabelo ruivo, acima da
testa alva. E continuava a olhar a rua como se aguardasse alguma coisa. Talvez
alguém lhe tivesse incumbido duma tarefa árdua demais. Pra quem preferia estar
na cozinha, sovando massa. A impregnar-se de farinha de trigo até os cotovelos.
O roliço rolo na mão, fazendo lembrar charges do mexicano Aragonês. Sob o sol
cor de abóbora, translúcido como gelatina. As chinelas rosadas - lavadas tantas
vezes necessárias fosse - a ponto de
tornarem-se quase brancas. Meiões cor creme gelado vestiam-lhes pernas gordas
varizeadas. Igualmente comparável as pernas da dona de Thomas, o “Tom” do
desenho animado “Tom e Jerry”.
A mulher do dono da padaria
continuava lá, mexendo com os nossos nervos. Arrisco dizer que ela pudesse tirar
o cavalinho da chuva. Até porque aquele céu lilás, borrado de chumaços de
algodão, todos já conheciam, nada prometia. Ainda mais porque Seu Joachim nunca
mais voltaria. Ora, ela devia ter percebido, quando seu marido, que nunca fumou
na vida, saiu de casa dizendo que ia até a esquina comprar cigarros. Jamais
voltaria. Confesso que não entendi nadica de nada, quando fiquei sabendo duma tal
de reunião de cúpula que estaria acontecendo entre o prefeito, o delegado (que
fazia questão que o chamassem de Sherife), sua reverendíssima o bispo, e o
meritíssimo juiz de Direito da comarca do condado do Alien do Além. Por que
cargas d’água, estes homens estariam reunidos? Vazou um boato que ninguém mais,
além deles deveria estar presente. O que maquiavelicamente maquinavam esses
homens? Talvez estivessem preparando um novo golpe fatal contra a plebe.
Ninguém se enganasse que não era coisa boa. Quem primeiro ficou sabendo da
novidade foi o dono da gráfica, que produziria os cartazes: E toda a cidade
quedou paralisada! Ao ver o Edital posto a público. Daquele dia em diante,
todos teriam que pagar uma taxa pelo uso do oxigênio. “-Valei-me! Minha Nossa
Senhora do Ó!” Disse o pobre camponês. Fácil recolher a taxa: seria embutido no
preço do pão. Quem por acaso não comesse pão - ou dali em diante passasse a não
comer - seria levado à guilhotina.
A mulher do dono da padaria pela
primeira vez sorriu. Claro, um sorriso assim sem mostrar os dentes. Pra que os
caninos pontudos ainda tintos de sangue não lhe denunciassem. A filha do juiz, uma dandoca, nascida na
grã-finagem, metida a rebelde. Solidária as causas dos menos validos, repudiou
a lei. Diuturnamente metida num casaco de couro negro, lustroso. Lábios e
supercílios roxos. Pulseiras e colares de metais. Buracos de piercings por todo
o corpo, uma maquiagem pesada. Tudo nela lembrava Mortícia. Subindo no alto do
coreto da praça, gritou bem alto pra todos ouvirem: “-Malditos! Vão comer o pão
que o diabo amassou!” Viraria grito de ordem. Muitos anos depois, slogan em
várias línguas, estampada em camisetas pretas, com caricaturas de crânios
flamejantes, que os motoqueiros usariam com orgulho. Uma música que alguém
anônimo compôs, a filha do governador compraria os direitos autorais, gravaria,
e venderia milhares de cópias. Tornar-se-ia feminista. Tudo porque um dia
encabeçara aquela causa. E seria candidata a entronar o reinado do Alien do Além,
“A-cidade-Que-Veio-do-Céu”. A dissidente política, e sua legião de seguidores,
marcharam contra o palácio de vidro. Erguido sobre um lugar onde um dia fora um
mangue. O mar que havia, a dois mil anos havia recuado. Os soldados da guarda
real também recuaram. Nenhuma bomba de efeito moral, nenhum tiro de bala de
borracha. Aconteceu que um “praça”, um negão. O único que estava mascando
chiclete (pra ninguém perceber o seu hálito, e o que havia consumido) cuspiu a
borracha da goma de mascar- já esverdeada, de tão gasta - bem aos pés da moça.
Foi o suficiente pra começar a rebelião.
Em poucos instantes com sacas de
farinha, foi levantada uma barricada na porta da prefeitura. E soaram os
canhões de brigadeiros, revolta de canudos, e salgados. A revolução ficaria
conhecida como Farinhada ou a Revolta do Pão.
A mulher do padeiro que estava a frente de batalha, deu-se em
sacrifício. Virou-se numa mulher bomba. Morreu, mas levou junto uma centena de
revoltos. Tombaram estilhaçados de partículas de fermento bolorento.
Quando tudo parecia caminhar para uma trégua,
depois de mil dias de batalha. Não me pergunte de onde, nem como, nem por que,
em meio aquele quiproquó, surgiu-nos um Plateussauro sauropodomorfa. Claro, não estou dizendo o nome do bicho de
mim mesmo, foi Thômas quem me disse que era. E já muito cansado completou: “-Não
precisa ficar com medo vô, essa espécie são herbívoros. Enxergam pouco, são
pesados e lentos.” Disse isso e adormeceu, ali no tapete da sala. Deixando-me
sozinho, atordoado, frente a frente com o réptil gigante, que me farejava com cara de poucos
amigos.
Fabio Campos