Além do Alien

Lá vinha uma cidade, fazendo um voo rasante. Numa grande planície chamada de vaso, no meio da mata branca. Isso mesmo, uma cidade inteirinha planando no peito do céu da caatinga. Veio vindo, veio vindo, e plantou-se no meio daquele lugar inóspito. A lagartixa esquentando ao sol, a tudo assistia. Balançou a cabeça com ar, talvez, de aprovação. O mandacaru ressonava, dormitando em pé, sequer se dava conta do que acontecia a sua volta. Já o sol havia percorrido mais de légua do seu céu. Arfante, ia indo, cansado, cuspindo fogo pra cá, ainda mais fogo pra lá, numa tosse seca. Bem que queria encostar-se num pau que lhes desse sombra. Pensou até em pegar uma vereda. Mas não podia sair do seu trilho. O coitado, todos os dias tinha que ir pelo mesmo percurso. Quando percebeu, já havia chegado. A tal cidade voante - malmente se dera conta – e ela já estava lá.   Não mais havia o que fazer, tinha mesmo era que aceitar aquela outra realidade.

Cinco longos segundos se passaram, sem que nada acontecesse. Dizer que nada havia acontecido, a alargado espaço de tempo decorrido. Era no mínimo uma bruta duma irresponsabilidade do que narra. Pois nesse ínterim, a bandeira triangular que pendia do minúsculo mastro fixo a abóbada, na cúpula do castelo - onde o prefeito prefeitava - tremulou pelo menos seis vezes.  Espalhando a seu bel prazer novos ventos carmim. Um mangangá, que muito tinha de alienígena, inoportuno como sempre costumam serem, os seres pertencentes a esta ordem. Inadvertidamente invadiu o espaço aéreo daquela urbanidade, até então misteriosamente silenciosa. Onde estariam os habitantes? Atrevidamente o coleóptero foi fazer pouso numa rosa gorda, roxa, no meio do jardim da casa do padeiro. Teria sido atraído pelo cheiro de pão doce, emanado dos musgos violáceos e da relva azul turmalina? Só teve tempo de aterrissar. Primeiro três pares de patas traseiras, depois as quatro dianteiras. Sendo imediatamente abduzido pro interior duma monocotiledônea. Interceptado por uma língua viscosa e vermelha como poupa de um morango. Indiferentes ao sequestro do pobre artrópode, uma caravana de formigas, peregrinas das montanhas de Belac Rasec seguiam rumo ao velho mundo de Milas Mibalas. E como lhes era permitido sonhar sonhavam, com um lugar donde emanasse do solo chocolatado, tulipas encravadas de topázios e ametistas. Onde pudessem erguer suas tendas e repousar com os seus, e fartarem-se a várzea de um rio onde ao invés de água corria ouro líquido. Porem era muito provável que encontrassem hostilidade e escravidão como da última vez.
 
A mulher do padeiro estava à porta. Se fazia sentada a uma cadeira de balanço de plástico musical multicolor.  A cada solavanco solfejava um “ré-mi-fá”. No “ré” e no “mi” a planta dos pés estavam no chão. No “fá”, suspensos no ar.  Vez ou outra parava o sacolejo e bufava uma clave de sol, bem debaixo do narigudo alpendre real. O menino de cabelos escorridos e franja, sentado à relva, ao modo de um monge tibetano, fechava um olho, pra sorrir um riso insípido, não sonoro, da cor de leite.  Não sei o porquê a mulher estava tão séria. Não dava pra ver seus olhos, imaginei que fossem como olhos de peixe morto. Ainda mais chocante pelos cílios sem cor. Olhava através das lentes escuras dos óculos de hastes de gatinha, que jamais perderia seu poder, mesmo quase perdido no seu imenso rosto. Rosto como de látex, cuja boca parecia a do Robin, o menino prodígio companheiro do Batman. Muito provável mesmo que fosse uma máscara, e que embaixo houvesse um rosto de verdade.  Um lenço branco de bolinhas vermelhas cobria-lhe a cabeça, mas deixava amostra uma mexa de cabelo ruivo, acima da testa alva. E continuava a olhar a rua como se aguardasse alguma coisa. Talvez alguém lhe tivesse incumbido duma tarefa árdua demais. Pra quem preferia estar na cozinha, sovando massa. A impregnar-se de farinha de trigo até os cotovelos. O roliço rolo na mão, fazendo lembrar charges do mexicano Aragonês. Sob o sol cor de abóbora, translúcido como gelatina. As chinelas rosadas - lavadas tantas vezes necessárias fosse -  a ponto de tornarem-se quase brancas. Meiões cor creme gelado vestiam-lhes pernas gordas varizeadas. Igualmente comparável as pernas da dona de Thomas, o “Tom” do desenho animado “Tom e Jerry”. 

A mulher do dono da padaria continuava lá, mexendo com os nossos nervos. Arrisco dizer que ela pudesse tirar o cavalinho da chuva. Até porque aquele céu lilás, borrado de chumaços de algodão, todos já conheciam, nada prometia. Ainda mais porque Seu Joachim nunca mais voltaria. Ora, ela devia ter percebido, quando seu marido, que nunca fumou na vida, saiu de casa dizendo que ia até a esquina comprar cigarros. Jamais voltaria. Confesso que não entendi nadica de nada, quando fiquei sabendo duma tal de reunião de cúpula que estaria acontecendo entre o prefeito, o delegado (que fazia questão que o chamassem de Sherife), sua reverendíssima o bispo, e o meritíssimo juiz de Direito da comarca do condado do Alien do Além. Por que cargas d’água, estes homens estariam reunidos? Vazou um boato que ninguém mais, além deles deveria estar presente. O que maquiavelicamente maquinavam esses homens? Talvez estivessem preparando um novo golpe fatal contra a plebe. Ninguém se enganasse que não era coisa boa. Quem primeiro ficou sabendo da novidade foi o dono da gráfica, que produziria os cartazes: E toda a cidade quedou paralisada! Ao ver o Edital posto a público. Daquele dia em diante, todos teriam que pagar uma taxa pelo uso do oxigênio. “-Valei-me! Minha Nossa Senhora do Ó!” Disse o pobre camponês. Fácil recolher a taxa: seria embutido no preço do pão. Quem por acaso não comesse pão - ou dali em diante passasse a não comer - seria levado à guilhotina.

A mulher do dono da padaria pela primeira vez sorriu. Claro, um sorriso assim sem mostrar os dentes. Pra que os caninos pontudos ainda tintos de sangue não lhe denunciassem.  A filha do juiz, uma dandoca, nascida na grã-finagem, metida a rebelde. Solidária as causas dos menos validos, repudiou a lei. Diuturnamente metida num casaco de couro negro, lustroso. Lábios e supercílios roxos. Pulseiras e colares de metais. Buracos de piercings por todo o corpo, uma maquiagem pesada. Tudo nela lembrava Mortícia. Subindo no alto do coreto da praça, gritou bem alto pra todos ouvirem: “-Malditos! Vão comer o pão que o diabo amassou!” Viraria grito de ordem. Muitos anos depois, slogan em várias línguas, estampada em camisetas pretas, com caricaturas de crânios flamejantes, que os motoqueiros usariam com orgulho. Uma música que alguém anônimo compôs, a filha do governador compraria os direitos autorais, gravaria, e venderia milhares de cópias. Tornar-se-ia feminista. Tudo porque um dia encabeçara aquela causa. E seria candidata a entronar o reinado do Alien do Além, “A-cidade-Que-Veio-do-Céu”. A dissidente política, e sua legião de seguidores, marcharam contra o palácio de vidro. Erguido sobre um lugar onde um dia fora um mangue. O mar que havia, a dois mil anos havia recuado. Os soldados da guarda real também recuaram. Nenhuma bomba de efeito moral, nenhum tiro de bala de borracha. Aconteceu que um “praça”, um negão. O único que estava mascando chiclete (pra ninguém perceber o seu hálito, e o que havia consumido) cuspiu a borracha da goma de mascar- já esverdeada, de tão gasta - bem aos pés da moça. Foi o suficiente pra começar a rebelião.

Em poucos instantes com sacas de farinha, foi levantada uma barricada na porta da prefeitura. E soaram os canhões de brigadeiros, revolta de canudos, e salgados. A revolução ficaria conhecida como Farinhada ou a Revolta do Pão.  A mulher do padeiro que estava a frente de batalha, deu-se em sacrifício. Virou-se numa mulher bomba. Morreu, mas levou junto uma centena de revoltos. Tombaram estilhaçados de partículas de fermento bolorento.  

Quando tudo parecia caminhar para uma trégua, depois de mil dias de batalha. Não me pergunte de onde, nem como, nem por que, em meio aquele quiproquó, surgiu-nos um Plateussauro sauropodomorfa.  Claro, não estou dizendo o nome do bicho de mim mesmo, foi Thômas quem me disse que era. E já muito cansado completou: “-Não precisa ficar com medo vô, essa espécie são herbívoros. Enxergam pouco, são pesados e lentos.” Disse isso e adormeceu, ali no tapete da sala. Deixando-me sozinho, atordoado, frente a frente com o réptil gigante, que me farejava com cara de poucos amigos.


Fabio Campos

Antonia dos Reis

Era uma vez dona Antonia dos Reis. Era duas vezes aquelas casas, três vezes aquela rua. Era tudo, tudo aquilo muitas vezes. E tantas, eram as vezes que ficaram para sempre na mente dos amigos, dos vizinhos. O tempo cruel e implacável criou destinos pra todo mundo, e os separou. Porque tinha que ser assim. Mas ficaram as lembranças, com nitidez tal de vencer século.

Dona Antonia era costureira, melhor dizendo, alfaiate. Do seu ateliê, raramente saía uma peça feminina, sua especialidade era o feitio de terno masculino. Isso no ano de 32 quando usar terno definia a que classe social um homem pertencia. Dona Antonia se orgulhava da clientela que tinha. Seu Canuto o maior fazendeiro da região, esposo de dona Adelia, donos do primeiro sobrado dentro da vila. No pavimento superior morada, no térreo funcionava um bazar. Toda manhã Seu Canuto ia pra fazenda, impecavelmente trajado de camisa de linho, chapéu de massa preto, calça preta, sapato envernizado, o terno ia dobrado sobre o antebraço direito. Montado em seu cavalo, parecendo um imperador, que acabara de conquistar um território, desfilava. No seu percurso tinha que passar na Rua Nova. Os meninos indo pra escola gritavam: “-Seu Canuto!” Cortando os ares voada do seu polegar uma moeda, ia parar no barro vermelho do leito da rua. Festa pros meninos. Cumprimentaria dona Antonia que defenestraria o cumprimento da janela, pensando: “-Lá vai um dos meus reis.”

Naquele ano, enquanto o sertão sofria com o cangaço, no sudeste estouraria a revolução paulista. Desde que Getúlio subira ao poder, com o golpe de Estado. A ocupar o cargo político mais importante do país, o povo não estava satisfeito. Os paulistas esperaram a convocação de eleições,.Dois anos já haviam se passado, e nada. O povo exigia mais liberdade, ninguém suportava tanto autoritarismo, “Doutor Getúlio” o caudilho, governava com mão de ferro. Nem Cuba, nem o Chile, nas mãos de Machado e Juan Esteban viviam tanta opressão e autoritarismo. Estudantes universitários e profissionais liberais foram às ruas. Quatro deles morreram em confronto com a polícia. Suas iniciais “MMDC”, correu os muros do país. Na vila perguntava-se se era coisa de comunista. Seria a sigla de um partido? Quem pichou as letras, ninguém jamais saberia. Somente o delegado, o Promotor de Justiça e o Prefeito. Pobres sertanejos, os que conseguiam fugir do cangaço pro sudeste, deparavam-se com uma convocação para encabeçar as frentes anti-getulistas. Nos rádios, jornais, nas paredes das escolas públicas a convocação: “Paulistas às Armas!”

Seu Domício e Seu Arnóbio Silva, de pé em frente à usina, sob o sol de verão, trajados em ternos de cores claras para amenizar o calor, conversavam. Outros reis, da seleta lista de dona Antonia dos Reis. Punham em dia as novidades chegadas com alguns dias de atraso à vila através do rádio, a solene “Voz do Brasil” e do periódico “Jornnal do Commercio”. As leis baixadas através de decreto pelo presidente Vargas: a instituição da jornada de trabalho de oito horas. A dizer aos empresários e comerciantes que dali em diante teriam de assinar a carteira de trabalho dos funcionários. Aos poucos as mulheres iam conquistando espaço na sociedade. Já era possível, ver algumas delas, as mais afoitas, frequentando lugares públicos, bares, cafés e confeiterias antes permitido somente aos homens. Os papéis femininos, nos espetáculos circenses, nos cinemas nômades, nos teatros mambembes, nos Luais. As noitadas de serestas, de início timidamente elas iam aparecendo. Ainda mesmo correndo o risco de ficarem faladas, na hora do chá da tarde, nas cozinhas das matronas e velhas senhoras que primavam pela prevalência do poderio masculino nos ditames sociais.   Não perdiam por esperar. Naquele ano fora criado o código eleitoral que permitiria o voto feminino, inicialmente a lei contemplaria as mulheres casadas com o aval do marido, e as viúvas e solteiras com renda própria, teriam permissão para exercer o direito de votar, e serem votadas. Mulheres no poder desde a rainha Dona Maria I, Dona Leopoldina princesa regente, e da princesa Isabel, somente na República Alzira Soriano, empossada prefeita de Lajes no Rio Grande do Sul. A pioneira na América Latina. Isso fora a apenas três anos antes, em 1929. Dois anos depois, em 34, a médica Carlota Pereira de Queirós se tornaria a primeira deputada federal brasileira. Informações desse quilate, as camadas mais pobres, agricultores, trabalhadores braçais, jamais saberia. Seleta parcela da população, comerciantes, empresários, políticos, promotores e juízes e o padre da paróquia, ficava sabendo através de alguns poucos meios de comunicação, o Almanaque da Fé, era um deles.

Dona Antonia dos Reis sabia de muita coisa. Toda vez que um terno novo era encomendado, o freguês levava um terno velho para servir de molde. Esquecido dentro dos bolsos tantos segredos revelados pra alfaiate. No bolso do surrado paletó de Seu Ermínio, o farmacêutico, encontrou uma receita prescrita a filha de uma professora que estaria acometida de tuberculose. Por isso a viagem urgente para a capital. Pro povo, apenas uma viagem de visita as tias do litoral, pra dona Antonia a verdade. No bolso do terno do Doutor promotor de justiça Vicente Matias encontrou uma cópia de um processo de uma audiência sigilosa, envolvendo um litígio entre dois irmãos de família tradicional. Não chegando a um acordo amigável, a briga fora parar na justiça, pela partilha de herança de uma propriedade de seus pais falecido.

Naquela manhã do finalzinho do mês de julho os alunos e a professora se dirigiram até a praça central da cidade, debaixo dum sol, que somente se expunha se lhes permitiam as nuvens julianas tintas de cinza. Perfilados em frente ao mastro, blusinhas branquinhas de doer! Gravatinhas e boinas azuis, shortes e suspensórios. Meias soquetes. Solenemente entoaram o hino nacional, as professoras dona Algarina, dona Marina, dona Isaura, dona Luiza, simbolicamente depositaram uma coroa de flores no jardim da praça em sufrágio da alma do inventor do avião Santos Dumont. No último 23 de julho, a apenas uma semana viria a falecer, por suicídio com a própria gravata. Oficialmente declarado morto por ataque cardíaco. Acontece que o inventor pioneiro da aeronave, encheu-se de angústia ao ver seu maior invento sendo usado para destruir vidas. Do terraço de sua residência em Guarujá viu aviões do governo de São Paulo partir pro combate contra o governo de Getúlio Vargas, na estourada Revolução Constitucionalista, iniciada pelos estudantes.

A Besta Luvana estava solta! O povo não sabia em quem acreditar. Governo combatendo governo, o cangaço imperando no sertão. A fama de dona Antonia dos Reis como alfaiate, ia longe. Um dia, estava bem tranquila no seu ateliê de costura, um quartinho de três por três, anexo a casa, a janela aberta pra rua. De repente um tropel de cavalos. Nem deu tempo de ir até a porta olhar do que se tratava. Os cavalos riscaram no seu batente. Era uma visita pra lá de inesperada, cangaceiros de Lampião vieram buscá-la. Levaram-na pro meio da caatinga, pra tirar as medidas do capitão Virgulino Ferreira “O Lampião” pra fazer-lhe um terno. O capitão intencionava tirar umas retratos onde posaria trajado como um chefe de Estado, diferente da tradicional roupa do cangaço. Enviaria as chapas às autoridades. Ao governador de Alagoas Tasso de Oliveira Tinoco. Consequentemente chegaria ao presidente Getúlio, queria que soubessem que ele não era um animal, um bicho como lhe pintavam na esfera federal.

A encomenda mais inesperada de dona Antonia dos Reis, nem de longe seria a dos cangaceiros. Teve uma ainda mais espantosa. João Batista lhe encomendou um paletó. Um prazo foi dado. No dia que ficou pronto, era um sábado, mandou Luzinha ir avisar: “-Diga a Batista que o terno novo dele está pronto.” Naquele instante o morador da fazenda, passou desembestado num cavalo. Viera avisar: “ –Seu Batista se matou! Deu um tiro na cabeça!Está morto lá na fazenda.”


Fabio Campos    

Sem Ana ( Para Sempre...)

Terça-feira
Havia uma menina, tinha os olhos grandes. Olhos que vasculhavam o mundo como quem precisava urgentemente descobrir coisas. Conhecer pessoas, de certa forma interessante. Sem essa de medir olhar. Isso pra ela, era como emprestar pro mundo palmo e meio de atenção. E não eram os outros, (fosse quem fosse) o que de mais importante existia na face da terra. Academia só a partir das terças-feiras. As coisas que precisavam deixar de serem feitas eram as que mais lhes interessavam. E ficava assim, a ouvir música, enquanto olhava, e roia as unhas.

Quarta-feira
Ana teve um sonho. Sonhou que estava num lugar onde as pessoas tinham os rostos voltados pra trás. E ela só conseguia ver-lhes a nuca. Quem havia roubado os rostos das pessoas? Nesse sonho sua mãe morria (provavelmente às três horas da tarde) num dia de quarta-feira. Por isso não tinha limões na geladeira, que eram comprados na tolda de Seu Alípio, bem próximo ao Mercado de Carne. Desse modo não podia fazer limonada. Mesmo morta sua mãe lhe sorria. O mais incrível disso tudo é que ela mesma não via nada de anormal em nada daquilo. A mãe mortinha da silva e ela nem aí, nem se quer chorava! O caixão teria sido colocado no cais do porto, por quatro homens de terno preto e cartola, que ficavam parados por alguns instantes, mas logo iam embora. Um barco com marinheiros viria buscá-la. Num dia de chuva, mas só chovia no cais, lá no horizonte havia sol. Os homens do mar tinham boinas na cabeça, camisas brancas com listras pretas. Eram galegos fortes, de braços hercúleos e longas costeletas. Sorriam e acenavam pra Ana, enquanto se iam com sua mãe.

Quinta-feira
Ana ficou com Carlos Antonio. Eles sequer namoravam. Eram apenas bons amigos, e vizinhos. A casa onde moravam ficava afastada do povoado. Ao voltarem da escola já era noite, desceram do ônibus (nenhum irmão de Ana teria ido à escola naquela noite) tinham que andar ainda um quinhentos metros até chegarem as suas casas. Ao passar próximo ao campinho, sem saber por que pararam. Ficaram um de frente pro outro, daí começaram a se beijar. E despiram-se, e fizeram amor com frenesi. Ana passou a quinta-feira toda dormindo. Uma da tarde, e continuava deitada, trancada no quarto, tentando entender porque fizera aquilo. Arrependida? Talvez, porem não dava o braço a torcer. Vá lá entender, quem sabe fez só pra se mostrar pra amigas. Ou a dizer pra si mesma que não era careta. Quantas vezes na roda de conversas, ela mesma vira as amigas ralhar outras meninas, só porque sabiam que eram virgens. Tantos mitos criados, tantos tabus caíram por terra. E as coisas que nunca tivera com quem tirar dúvidas se dissiparam. Delas que dizia que na primeira vez doía muito. Que a mãe iria descobrir, e que pra isso bastava olhar fixamente nos olhos, ou descobriria simplesmente ao vê-la andar.

Sexta-feira
Camila sua melhor amiga, contou uma mentira ao namorado, o que fez com que Ana e Carlos acabassem brigando. O fuxico seria especulação sobre uma ter ouvido da outra, que aquela primeira estaria apenas ficando com ele, mas gostar mesmo não gostava. Mas (todo mundo sabe como é) amiga é amiga, estão sempre ali pronta para nos amparar, a dar um ombro pra apoio na hora da dor. Deram as duas, de faltar às aulas, preferindo ir a praça encontrar-se com os meninos. Afinal era sexta-feira. Ana emprestou pra Camila uma calça jeans, e uma blusa lilás de alça que tanto gostava. Pra que pudessem ir a uma festa de vaquejada, escondido das mães. Um dos meninos levaria as duas na garupa duma moto. Não precisava nem dizer que não fora uma boa ideia. Num certo trecho da estrada de barro, o desequilíbrio e a queda. Os vapores de álcool a mais, fizeram o garoto acelerar, a por mais adrenalina na ação. O resultado foi muitas escoriações nos braços, nas pernas. Um corte profundo na testa de Ana. Um braço quebrado de Camila. Carlinhos ficou com dois dentes a menos no sorriso que já era torto.

Sábado
 Lucimara a mãe de Ana era uma mulher bonita. Mulher pra um artista deitar os olhos sobre seu corpo, e desejar. Desejar ardentemente pintá-la, em um nu artístico. Êxtase de ateliê,  pincéis e telas. Aturdido a buscar a cor daquele corpo. Lânguido corpo, moreno, cujas auréolas dos seios intumescidos de encher de arrepios. Sobre o cetim encarnado do divã. A taça de cristal, o cacho de uvas, o champanhe. A moldura cor de ouro, envernizada pra destacar ainda mais aquela pele morena. Os cílios, os olhos enchendo-se de lágrimas mornas. As coxas roliças a se roçarem liberando cheiro de fêmea. Inebriou-se o artista, tomado de volúpia e furor, a fazer sexo consigo mesmo. Os cabelos negros, a púbis febril. Aquela boca carnuda, de alvos dentes perfeitos, (encerrava) um sorriso de Mona Lisa. Doce Lucimara, por três longos anos estivera casada, agora viúva. Alcoólatra e diabético, se fora o pai de Ana dar trabalho a São Pedro. E a mãe, teve que criar a filha sozinha. Tão bom quando era apenas uma bebezinha! Angustiava-se agora, ao ver a rebeldia da menina, pouco a pouco se embrenhando por um caminho quase sem volta. Difícil, pra ambas. Seria falha de sua parte? Questionava-se. Estaria faltando diálogo entre elas? O trabalho na loja de cosmético, até os sábados, a venda de confecções porta a porta, nos finais de semana. Um fosso do tamanho de um coração fendido, incrivelmente pulsando a separar mãe e filha.

Domingo,
Em que, ou o que pensa uma menina de quinze anos? Ora, dizia consigo mesmo: “-No meu tempo, ninguém parava pra pensar nisso não. Acordava-se cedo pra lida no campo. Numa casa onde vivia com dez irmãos. Num total de treze ao todo. As tarefas da casa eram divididas. A ela Lucimara, cabia a lavagem de roupa nuns dias, o feitio de comida na cozinha noutros. Assim varava a semana. O pai era rígido nunca deixando irem a uma festa, a não ser em casos muito especiais. Um batizado, ou um casamento, de um membro da família. A bruteza da vida campesina, no entanto, jamais lhes tiraria a feminilidade. Ingênuas mulheres na ida pra roça. Com alegria, pareciam crianças a brincar de roda no terreiro de casa. Sem nunca se darem conta que o mundo um dia se lhes apresentariam homens perversos, maus intencionados. Tanto quanto (iguais e) diferentes de seu pai e irmãos. E que um dia ainda elas sentiriam saudade daquela vida monótona. Vida de viver. Despretensiosa, simplesmente vida. De colher umbu no pé, de ir a casa dos tios e primos aos domingos. De andar a cavalo. E ter que se virar sozinha ao menstruar pela primeira vez, e ficar com vergonha de dizer a mãe e as irmãs. No entanto era fácil descobrir, porque ficaria o dia inteiro se preciso fosse sem sair do quarto. Vergonha dos irmãos e do pai, que passariam a encará-la como um bicho estranho. Apesar de não se sentir, não mais menina, seria agora tratada como uma moça.

Segunda-feira
Para alguns o melhor, para outros o pior, dia da semana. Às vezes quando nos falta o que fazer passamos a ouvir a nós mesmo, ou (quem sabe) outros nós mesmos. O espelho é cruel. No reflexo, todo mundo é outra pessoa. Na frente dele se pode ser tudo, menos nós mesmos. A menina penteava-se. De dentro da boca fechada uma música, querendo vir de lá da infância, (cantava) “-Uuuummm.” Fez uma franja. Trouxe todo o cabelo de lá trás pro colo, e pôs-se a alisar. Enquanto olhava bem lentamente pra cada linha de seu rosto, pros seus traços. Quem seria aquela estranha? Batom vermelho nos lábios beijou a superfície polida. Escreveu algumas palavras. Deitada na cama. Havia uma menina, de olhos grandes. Não mais vasculhavam o mundo como quem precisava urgentemente descobrir coisas. Vítreos, opacos, sem vida a fitarem o teto aqueles ohos. Braços estendidos. Duas imensas nódoas vermelhas de sangue vertidas dos pulsos. As coisas que precisavam deixar de serem feitas, infelizmente se fizeram.


Fabio Campos