
Dona Antonia era costureira,
melhor dizendo, alfaiate. Do seu ateliê, raramente saía uma peça feminina, sua
especialidade era o feitio de terno masculino. Isso no ano de 32 quando usar
terno definia a que classe social um homem pertencia. Dona Antonia se
orgulhava da clientela que tinha. Seu Canuto o maior fazendeiro da região,
esposo de dona Adelia, donos do primeiro sobrado dentro da vila. No pavimento
superior morada, no térreo funcionava um bazar. Toda manhã Seu Canuto ia pra
fazenda, impecavelmente trajado de camisa de linho, chapéu de massa preto,
calça preta, sapato envernizado, o terno ia dobrado sobre o antebraço direito.
Montado em seu cavalo, parecendo um imperador, que acabara de
conquistar um território, desfilava. No seu percurso tinha que passar na Rua
Nova. Os meninos indo pra escola gritavam: “-Seu Canuto!” Cortando os ares voada do seu polegar uma moeda, ia parar no barro vermelho do leito da rua. Festa pros
meninos. Cumprimentaria dona Antonia que defenestraria o cumprimento da janela,
pensando: “-Lá vai um dos meus reis.”
Naquele ano, enquanto o sertão
sofria com o cangaço, no sudeste estouraria a revolução paulista. Desde que
Getúlio subira ao poder, com o golpe de Estado. A ocupar o cargo político mais
importante do país, o povo não estava satisfeito. Os paulistas esperaram a
convocação de eleições,.Dois anos já haviam se passado, e nada. O povo exigia
mais liberdade, ninguém suportava tanto autoritarismo, “Doutor Getúlio” o
caudilho, governava com mão de ferro. Nem Cuba, nem o Chile, nas mãos de
Machado e Juan Esteban viviam tanta opressão e autoritarismo. Estudantes
universitários e profissionais liberais foram às ruas. Quatro deles morreram em
confronto com a polícia. Suas iniciais “MMDC”, correu os muros do país. Na vila
perguntava-se se era coisa de comunista. Seria a sigla de um partido? Quem
pichou as letras, ninguém jamais saberia. Somente o delegado, o Promotor de Justiça e o Prefeito. Pobres
sertanejos, os que conseguiam fugir do cangaço pro sudeste, deparavam-se com
uma convocação para encabeçar as frentes anti-getulistas. Nos rádios, jornais,
nas paredes das escolas públicas a convocação: “Paulistas às Armas!”
Seu Domício e Seu Arnóbio Silva,
de pé em frente à usina, sob o sol de verão, trajados em ternos de cores claras
para amenizar o calor, conversavam. Outros reis, da seleta lista de dona Antonia
dos Reis. Punham em dia as novidades chegadas com alguns dias de atraso à vila através
do rádio, a solene “Voz do Brasil” e do periódico “Jornnal do Commercio”. As
leis baixadas através de decreto pelo presidente Vargas: a instituição da jornada
de trabalho de oito horas. A dizer aos empresários e comerciantes que dali em
diante teriam de assinar a carteira de trabalho dos funcionários. Aos poucos as
mulheres iam conquistando espaço na sociedade. Já era possível, ver algumas
delas, as mais afoitas, frequentando lugares públicos, bares, cafés e
confeiterias antes permitido somente aos homens. Os papéis femininos, nos
espetáculos circenses, nos cinemas nômades, nos teatros mambembes, nos Luais. As
noitadas de serestas, de início timidamente elas iam aparecendo. Ainda mesmo
correndo o risco de ficarem faladas, na hora do chá da tarde, nas cozinhas das
matronas e velhas senhoras que primavam pela prevalência do poderio masculino
nos ditames sociais. Não perdiam por esperar. Naquele ano fora
criado o código eleitoral que permitiria o voto feminino, inicialmente a lei
contemplaria as mulheres casadas com o aval do marido, e as viúvas e solteiras
com renda própria, teriam permissão para exercer o direito de votar, e serem
votadas. Mulheres no poder desde a rainha Dona Maria I, Dona Leopoldina
princesa regente, e da princesa Isabel, somente na República Alzira Soriano,
empossada prefeita de Lajes no Rio Grande do Sul. A pioneira na América Latina.
Isso fora a apenas três anos antes, em 1929. Dois anos depois, em 34, a médica Carlota
Pereira de Queirós se tornaria a primeira deputada federal brasileira.
Informações desse quilate, as camadas mais pobres, agricultores, trabalhadores braçais,
jamais saberia. Seleta parcela da população, comerciantes, empresários,
políticos, promotores e juízes e o padre da paróquia, ficava sabendo através de
alguns poucos meios de comunicação, o Almanaque da Fé, era um deles.
Dona Antonia dos Reis sabia de muita
coisa. Toda vez que um terno novo era encomendado, o freguês levava um terno
velho para servir de molde. Esquecido dentro dos bolsos tantos segredos
revelados pra alfaiate. No bolso do surrado paletó de Seu Ermínio, o
farmacêutico, encontrou uma receita prescrita a filha de uma professora que
estaria acometida de tuberculose. Por isso a viagem urgente para a capital. Pro
povo, apenas uma viagem de visita as tias do litoral, pra dona Antonia a
verdade. No bolso do terno do Doutor promotor de justiça Vicente Matias encontrou
uma cópia de um processo de uma audiência sigilosa, envolvendo um litígio entre
dois irmãos de família tradicional. Não chegando a um acordo amigável, a briga
fora parar na justiça, pela partilha de herança de uma propriedade de seus pais
falecido.
Naquela manhã do finalzinho do
mês de julho os alunos e a professora se dirigiram até a praça central da
cidade, debaixo dum sol, que somente se expunha se lhes permitiam as nuvens
julianas tintas de cinza. Perfilados em frente ao mastro, blusinhas branquinhas
de doer! Gravatinhas e boinas azuis, shortes e suspensórios. Meias soquetes.
Solenemente entoaram o hino nacional, as professoras dona Algarina, dona
Marina, dona Isaura, dona Luiza, simbolicamente depositaram uma coroa de flores
no jardim da praça em sufrágio da alma do inventor do avião Santos Dumont. No
último 23 de julho, a apenas uma semana viria a falecer, por suicídio
com a própria gravata. Oficialmente declarado morto por ataque cardíaco. Acontece
que o inventor pioneiro da aeronave, encheu-se de angústia ao ver seu maior
invento sendo usado para destruir vidas. Do terraço de sua residência em
Guarujá viu aviões do governo de São Paulo partir pro combate contra o governo
de Getúlio Vargas, na estourada Revolução Constitucionalista, iniciada pelos
estudantes.
A Besta Luvana estava solta! O
povo não sabia em quem acreditar. Governo combatendo governo, o cangaço
imperando no sertão. A fama de dona Antonia dos Reis como alfaiate, ia longe.
Um dia, estava bem tranquila no seu ateliê de costura, um quartinho de três por
três, anexo a casa, a janela aberta pra rua. De repente um tropel de cavalos.
Nem deu tempo de ir até a porta olhar do que se tratava. Os cavalos riscaram no seu batente. Era uma visita pra lá de inesperada, cangaceiros de Lampião vieram
buscá-la. Levaram-na pro meio da caatinga, pra tirar as medidas do capitão
Virgulino Ferreira “O Lampião” pra fazer-lhe um terno. O capitão intencionava tirar
umas retratos onde posaria trajado como um chefe de Estado, diferente da tradicional roupa do cangaço. Enviaria as
chapas às autoridades. Ao governador de Alagoas Tasso de Oliveira Tinoco. Consequentemente
chegaria ao presidente Getúlio, queria que soubessem que ele não era um animal,
um bicho como lhe pintavam na esfera federal.
A encomenda mais inesperada de dona Antonia dos
Reis, nem de longe seria a dos cangaceiros. Teve uma ainda mais espantosa. João Batista lhe encomendou um paletó. Um prazo foi dado. No dia
que ficou pronto, era um sábado, mandou Luzinha ir avisar: “-Diga a Batista que
o terno novo dele está pronto.” Naquele instante o morador da fazenda, passou
desembestado num cavalo. Viera avisar: “ –Seu Batista se matou! Deu um tiro na cabeça!Está morto lá
na fazenda.”
Fabio Campos
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