Cinco gatos se haviam nos degraus
da repartição. Uns dormindo outros acordados. Era com desprezo que olhavam o
mundo. Mas isso pouco importava, era perfeitamente aceitável que desprezassem o
que não lhes aprazia. Preferível a fuga da realidade, a viver uma vida
aparentemente sem sentido. João Ignácio foi procurar ajuda com os homens do
departamento. Ouviram atentamente sua história. Dispuseram-se ajudar porem dali
a alguns dias somente. Talvez não soubessem por onde começar.
Debaixo do sol, do meio dia o mundo tremia. E
as criaturas tementes a Deus. Com atitudes de corpos, nas mãos postas, nos olhos
voltados pro alto, nas bocas de rezas sussurradas, fervorosamente pediam, que o
furor da estiagem aplacasse sua ira. Montado no seu burrico João Ignácio
refazia o caminho da volta. Sob seus calcanhares deixando pra trás, a pedra
angulada do calçamento, a vila. O amontoado de casas ruminantes, pouco a pouco,
a ficar às costas. Minguando, minguando de tamanho, no coice do burro. Novamente a estrada de barro a lhe abraçar, a
catingueira a beijar-lhe a face. O espinho do mandacaru, a fazer-lhe um carinho
com gosto de sangue. Outra vez a visão, o assoalho do barreiro, malhado de
rachões. Argila petrificada. Por baixo daquela casca tinha vida, havia aonde
esconder água por baixo da lama, onde o peixe Cará hibernava. Caatinga
esturricada sem ver chuva a muitos dias. Retesados os arcos açoitados pelo
vento de areia. Areados os cílios a lacrimejarem. Os galhos do pau d’arco escrevendo
no ar, raios que jamais se apagavam. O calango sardão que nunca dizia não, dizia: chão.
Cinza carbonizante predomínio da cena, acenava. O sol do céu olhava, sem
demonstrar a menor reação de dó, ou piedade. O cão de João Ignácio, tanto se
ocupara com as moscas, que só muito tempo depois se dera conta que seu dono se
fora. E deixou à calçada, e a vila foi ficando pra trás, na ponta do rabo balançante.
Pequenina vila. Acuada no resvalo dum riacho. Acanhada vila, amassada feito
chapéu de couro de muito uso.
“I
did a lot, I know you say
I’ve
got to get away
The
world is not yours for the taking
Is
all you ever say
I
know I’m not the best for you
But
promise that you’ll stay
‘Cause
if I watch you go
You’ll
see me wasting, you’ll see me wasting away “
“Fiz muita coisa, eu sei que você diz/ Tenho que me
afastar/ O mundo não é seu para ser tomado/ É tudo o que você sempre diz/ Eu sei
que não sou o melhor pra você/ Mas prometa que vai ficar/ Porque se eu tiver
que partir/ Você vai me ver desperdiçando.” João Ignácio jamais pensou que um
dia estaria no meio de tão grave litígio. Ainda mais daquela maneira. Apaixonado
por Maria Ronarça, não demoraria a pedi-la em casamento. As propriedades das
famílias eram vizinhas, do lado que o sol se deitava, a morada da família de
João. Do lado que o sol acordava o mundo, a casa do velho Pedro Barro, pai do seu
grande amor Ronarça. O único obstáculo que até então separava-os, era apenas alguns
novelos de arame farpado estacados que divisava as terras pertencentes a cada
um. Subia e subia nos fios, com seus espinhos de aço a cortar ao meio, o Serrote
de São Genaro. De cá de baixo - sem necessidade de apurar as vistas - dava “mode”
a gente ver direitinho: Uma casa alpendrada dum lado, outra casa alpendrada do
outro. E lá em riba, bem no meio da subida o grotão. Ali havia uma mina d’água.
Podia fazer o maior verão. Tudo, tudo ali, num raio de mil braças, pra
qualquer dos lados podia secar, mas naquele grotão não. Naquele em torno era tudo
verdinho, verdinho! Uma beleza! E Seu Pedro num ato pra lá de danoso,
resolvera derrubar a pequena área verde que ainda restava em volta da grota, pra
plantar palma. João ficou revoltado com a ação, já começada sem comunicar a
ninguém, pois o fazia na parte da mata que lhe pertencia.
“ ‘Cause
today,you walked out of my life
‘Cause
today, your words felt like a knife
I’m
not living this life
Goodbyes
are meant for lonely people standing in the rain
And
no matter where I go, it’s always pouring all the same
These
street are filled with memories
Both
perfect and in pain
And
all I wanna do is love you
Bat
I’mthe only one to blame”
“Porque hoje você saiu daminha vida/ Porque hoje suas
palavras pareceram uma faca/ Não estou vivendo esta vida/ Adeus foram feitos
para pessoas sozinhas paradas na chuva/ E não importa onde eu vá, está sempre
chovendo o mesmo/ Essas ruas são cheias de recordações/ Tanto perfeitas e
cheias de dor/ E tudo que eu quero fazer é amar você/ Mas eu sou o único
culpado.” Quando foi de tardezinha formou-se pra chuva, enquanto a chaminé das duas
casa faziam fumaça que jamais se entrelaçariam. O que era uma pena, porque
se isso acontecesse, daria a formar uma bela trança de menina loira apaixonada.
De tristeza o céu chorou. Os homens do departamento vieram. E ficaram um tempão debaixo
do alpendre da casa de João esperando a chuva passar. Cada um com uma xícara
de café na mão. A fazerem bicos, pra soprar a quentura, e pra sorverem um gole. Nem
quiseram sentar-se, preferiram olhar a serra, a chuva, o grotão. As galinhas e os
pintinhos buscando um abrigo do aguaceiro vindo das nuvens. As águas carregadas de
tristeza de Deus. Surgida do escuro da casa, uma menina de seus doze anos. Na
timidez matutina se pôs no umbral da porta dianteira. Dali, ficou espreitando
os homens do governo. O moço do departamento abrindo seu melhor sorriso,
perguntou-lhe o nome. João acudiu a dizer que se chamava Celina, e que era surda-muda.
Com as mãos, os olhos e um sorriso, apenas de lábios, a menina disse ao irmão
que o moço era engraçado, por ser muito alto. E caçoou também dos seus óculos. O sinal
que criou para identificá-lo era esse: passava o dedo indicador direito em círculo,
sobre o olho esquerdo. João disse: -Pode passar o tempo que for, aonde ela lhe ver
recordará de você, com esse sinal. A chuva havia passado. Puseram-se todos a subir
a serra. Seu Pedro estava lá. Eles e os filhos, a olho de machado a massacrarem as
árvores do grotão.
“But
what do I know IF you’re leaving?
All
you did was stop the bleeding
Bat
these scars will stay forever
These
scars will stay forever
And
these words, they have no meaning
If
we cannot find the feeling
That
we held on to together
Try
your hardest to remember”
“Mas o que eu sei se você está partindo?/ Tudo que
você fez foi para o sangramento/ Mas essas cicatrizes vão ficar para sempre/
Essas cicatrizes vão ficar para sempre/ E essas palavras, elas não têm
significado/ Senão encontramos o sentimento/ Que nós dois guardamos juntos/ Se
esforce ao máximo para lembrar.” A blusa, o boné vermelho, a calça índigo do
moço, destacando-se contra a paisagem lugar-comum. Tudo ali olhava pro rapaz, o
Cã-cão no olho do umbuzeiro, o cachorro debaixo do mangueiral, os meninos no jogo
de bola no terreiro de casa. Todos mudamente diziam aos intrusos que eles eram intrusos. Seu Pedro viu o cortejo desde que iniciaram a longa subida, bem pequenininhos, lá embaixo. Só parou o
serviço quando o grupo estava a poucos metros dele. Cumprimentos e
apresentações. A tentativa do aperto de mão não correspondida.
Cordialidade somente dos estrangeiros. Seu Pedro com sua cara de pedra
quis saber por que um dos moços tirava tantas fotos. Era pra que ficasse
registrada a atividade. O moço comprido crispou o rosto, ao perceber que Seu
Pedro portava uma faca.
Stay with me
Or watch me bleed
I need you just to breathe
‘Cause today, you walked out of my life
(Stay with me, or watch me bleed)
‘Cause
today, your words felt like a knife
(I
need you just to breathe)
I’m
not living this life…”
“Fique comigo/ Ou me veja sangrar/ Eu preciso de
você apenas para respirar/ Porque hoje você saiu da minha vida/ (Fique comigo
ou me veja sangrar)/ Porque hoje suas palavras pareceram uma faca/ (Eu preciso
de você apenas para respirar)/ Eu estou vivendo esta vida...” Ao dar fé da faca
na cintura do campesino o moço ficou paralisado. A folha de metal, ação
devastadora exerceu sobre o moço da cidade. O céu fez menção de escurecer sobre sua vista. O mundo rodopiou alucinadamente. Suou um suor frio. Pegou um pouco d’água num cantil que trazia na
mochila. Sorveu uns goles, molhou o semblante de cera. O transtorno físico era visível.
Seu Pedro perguntou se estava se sentido bem. O susto que a arma branca causara
no rapaz vinha de uma longa história. Não era medo nascido daquela situação
isolada. Em nada tinha a ver com uma possível reação inesperada do matuto. Em
arriscar a própria vida em defesa dum grotão ameaçado. Nada tinha a ver com a paixão ferida de morte de
João e Ronarça. Diante da fraqueza do rapaz do departamento a bruteza desmoronou. O rude coração de Pedro Barro amoleceu. Bem lá no fundo do ser, Seu Pedro trocou a capa cascuda da arrogância por uma terna dó do moço. Talvez por conta disso, estaria disposto a conversar.
Fabio Campos
“Like
A Knife” (Como Uma Faca) Canção by: Secondhand Serenade