
Ao menos duas coisas lhes eram familiar ali, a lua e o ar noturno. A
primeira, a dizer algo de parecer um comprimido de hidroxila de alumínio desubmergida
das entranhas de um firmamento. Céu destituído de cor - gaseificado de estrelas
- proporcionando confortável alívio pra sua ácida solidão. Antigas poesias
fluindo, de renomados vultos históricos que viveram naquela cidade havia mais de trezentos
anos. Instigando-lhe a criar outras novas.
Uma moça sentada numa pedra,
debaixo de um poste na esquina. Um chapéu branco, de palhinha na cabeça. Aquela
lua magra sabia de histórias daquela moça. Sabia dos seus dias, dos seus mistérios.
Sabia mais que Seu Dias, o motorista. O outro homem fixou o olhar naqueles olhos
castanhos de cílios longos, negros. Sequer a moça olhou pra ele, mesmo assim
viu seu olhar lhe olhando. E apaixonadamente apaixonou-se. Desejou ardentemente
tocar naquela cascata de cabelos negros que lhes iam além de suas espáduas
nuas. Aquela boca de baton vermelho. E sonhou aquela boca entreaberta que quase
deixavam ver os incisivos alvos, que jamais lhe sorriram, e mesmo assim viu-a a sorrir pra ele. E ficariam manchados de vermelho quando sua boca beijasse com sofreguidão aquela boca. E sonhou sua mão de dedos longos,
deslizando suavemente por entre os cabelos lisos. Se embrenhando e inebriando do
perfume largado de seu colo - não teve como evitar delírios - indo
impregnar-lhe as unhas bem cuidadas que desceriam pelas suas costas até
encontrar a linha de sua cintura. E se vertiginaram suas vistas, enlouquecida
ia sua mente, ante a contemplação daquelas belas pernas.
Seu Mario Dias desceu do carro,
dirigiu-se até onde a moça estava. Isadora permaneceu calada, impávida. Nenhum
dos dois tinha o que dizer um para o outro. O motorista se colocou a sua
frente, e aquele pezinho lindo calçado numa sapatilha apontava para entre as
pernas do motorista. Seu Dias havia sido orientado pra ir até ela. Como um cão
de guarda deveria ficar apenas esperando. Devia apenas guardá-la. E aguardar sua reação,
que infelizmente não veio. Então pacientemente pediu-lhe para que fosse até seu
patrão. Isadora não moveu um nada. Lembrava um bibelô dos que
encontramos somente em relicários finos. As pernas cruzadas uma sobre a outra. Um
sinal de nascença na coxa da perna que estava por cima surgiu bem próximo a
barra da saia. E aquele outro que a tudo observava disse a si mesmo que tinha
que avançar. Se não quisesse que desconfiassem de alguma intenção sua, a que nem
ele mesmo sabia se havia.
Entrou no beco escuro. Foi
tragado pelo negrume quase insano da viela. Era uma rua sem saída. Achou bom
ser abraçado por aquela acridoce escuridão. Gostou do carinho fraterno de mãe, que as trevas
lhes proporcionavam, em especial naquele momento. A rua ia dar na praia. Dava
pra ouvir o mar. As ondas quebrando nos rochedos do precipício, provido de
parapeito. Pelo dia já havia passado por ali. Jovens casais enamorados, talvez
turistas, pediam pra que lhes tirassem uma foto. Sequer pensavam no perigo que os
rondavam. A maré baixa proporcionava visão magnífica. Escondida no abismo
lúgubre da noite, aquela hora. Um marinheiro solitário trôpego. Mambembe veio
vindo em sua direção. Um cigarro aceso o denunciou. Tragou forte o fumo e
encheu de diamba a rua. Adiante seguiu o homem do mar, cambaleante. Foi obrigado
a inalar o forte aroma. Cheiro que jamais lembrava o mar, nem a maresia. De
noite o vento não vinha pra costa, ia. E do nada, brotou na língua um gosto de
cerejas recém colhidas na primavera, intumescidas feito clitóris de mulheres
damas, que raspavam os pelos pubianos com medo de contraírem piolhos. Daquele
jeito ficavam parecidas com púberes meninas. E suas carnes alvas e rijas, tão
docemente desejadas. E nunca, jamais se oporiam serem colocadas nuas, numa cesta
de vime para serem entregues ainda naquela noite, aos deuses marinhos. Cujas
orgias com belas ninfas acabariam se projetando num esplêndido drive-in soturno.
Sendo a tela panorâmica, aquele mesmo giga céu diáfano. Uma vedete vestida num colant verde musgo, que delineava seu corpo esguio fixou-se numa das paredes, e
chorava um choro mudo, tinha as mãos e os braços atados as costas. E suas
lágrimas eram de prata e mercúrio. Exausta sentou-se sobre uma enorme serpente
marinha, negra e viscosa, que mais parecia um cérebro com mil olhos que a tudo
via. Ignorando o cheiro de urina dos homens que saiam da boate, a aliviarem suas
bexiga ali. Na fachada uma placa luminosa em neon verde e vermelho que acendia
e apagava, dizia: “Boite da Vilma, a Sereia do Mar.”
Uilson avançava numa moto a toda
velocidade. Ele próprio talvez nunca se sentisse, mas era como um rei. Rei das
trevas, envolvido pela negra noite, voava sobre o asfalto. Senhor da
velocidade, senhor do ódio. Sedutor ódio e amor vil que nutria por Isadora naquele
momento. Iria ao seu encontro, Sabia exatamente onde estava. Toda quinta-feiras nas docas.A conversa seria breve. Teria
que se decidir. Daquela noite não passava. Não mais suportava tal situação.
Decidir-se: ou ficava com ele, que com muito orgulho era um simples mascate. Vendia discos na feira livre na vila dos pescadores. Teria que se decidir ou ficar
definitivamente com o almofadinha do doutor Danilo. O rico odontólogo que a queria,
apenas pra desfrutar do seu corpo. A queria, porem apenas como garota de programa.
Voava a moto vencendo o negro asfalto, a negra noite fria. Pelo ódio empurrada
e acelerada e o desejo desumano de ter a posse de um corpo.
Isadora resolveu ir até o
parapeito que dava pra praia. Sabia que diante dos seus caprichos o cão de
guarda do motorista iria acompanhá-la. A evitar que nada de ruim lhe
acontecesse. Tivesse ela, o poder de ler pensamento não arriscaria tal
empreendimento. O que pensava o motorista era pra lá de sombrio. Aquela
menina significava perigo pro seu patrão. Várias foram as vezes que presenciara
brigas entre eles dois. No começo tudo eram flores, depois das malditas bafejadas do diabo o amor esmorece. Se o chefe, e mesmo a esposa do patrão, lhes encarregasse
de matá-la, a mataria. Bastaria a menina, tentar chantageá-los a extorquir-lhes
dinheiro. Não hesitaria, em por um fim a sua vida. Infelizmente não seria a primeira
vez que faria tal ato vil. Num passado
distante que ele teimava em não sepultar. Martelado dentro da sua mente, o que havia praticado. A sangue frio, simplesmente
esfacelou com uma pedra o cérebro de um colega de escola. por motivo banal, um apelido nele colocado. Nunca
sentiu o menor remorso por isso. Sensato seria da parte daquela moça tomar
bastante cuidado.
O relógio marcava duas da
madrugada quando dr. Danilo esvaziou o copo. Entornava a terceira dose de uísque puro, sem
gelo. Não entendia porque Seu Mario ainda não havia chegado. O telefone móvel
do motorista, avisava estar fora de área. Onde estaria aquela hora
que não chegava? Sentado a uma mesa dum restaurante
chique da orla, sozinho aguardava. Dali até as docas não dava mais que mil metros. Foi ao
banheiro. Olhando-se no espelho passou a mão no cabelo, ajeitou o revólver na
cintura. Aquilo o fazia sentir-se ainda mais másculo.
Era comum as sextas-feiras as
docas amanhecerem cheia de gente. Dia de comprar pescado fresquinho no Mercado do Peixe, logo ao lado do parapeito da praia. No entanto
aquela aglomeração não se fazia presente ali pra comprar nada. Perplexas as
pessoas olhavam em direção ao penhasco. Feito boneca abandonada, que ninguém mais
quer brincar. Jogada, contra os pontiagudos e tortuosos arrecifes. O belo, porem inanimado, corpo de Isadora, jazia.
Fabio Campos
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