
Os meninos não
estavam mais na praça. O azul do mundo não estava mais lá. Ainda assim pra Ulisses,
tudo permanecia retido em suas pupilas. O calor na calçada refratário, aos
poucos se dissipando junto com a tarde. Zelosa a mãe cuidaria pra que o menino não
sentasse naquele chão. “- Por que mãe?” “- Porque dá dor de barriga!” Cheiro de
café torrado, de invadir narinas, pulmões e mentes. A se embrenhar pelos
pomares das cercanias, a misturar-se ao perfume das mangas, limões, frutas do
conde, no sertão chamadas de pinhas. Ao sabor duma ou outra suave brisa adoçada
pelo cítrico aroma.
“-Rapadura
batida!” Ainda pelos becos ecoavam os gritos dos meninos, xingando o redemoinho.
E o carrossel de cisco e poeira partia doido no encalço deles. Novamente Ulisses
e suas lembranças fazendo-se prostrado, maravilhado. Um gato preto, não
conseguindo ficar camuflado, fora visto. E deu-se início um encalço ao pobre
bichano. A luta pela vida, contra a morte. Meninos e gatos: dois seres neste
mundo de meu Deus que nunca se entenderam. Haveria de ter uma explicação pra
desavença entre tais criaturas. Haveria de ser algo do outro mundo. Já os cães,
eles os respeitavam. Gatos pretos, rasga-mortalhas, urubus, morcegos, mariposa
negra presságio de má sorte. Messias e Lucas, não eram irmãos, mas vivam sempre
juntos, tinham a fama de exterminadores de todo e qualquer animal, de igual ou menor
porte que eles. Ódio aos gatos, porque comiam passarinhos de gaiolas, o peixe
da mãe estendido pra secar, amolavam suas malditas unhas, no forro do sofá, pra
marcarem território urinavam nas coisas. Outro dia, no oitão do grupo escolar
Messias e Lucas armaram uma arapuca pra urubu e conseguiram pegar um. Todo amarrado
o pobre foi arrastado pra dentro da sala de aula, a professora Carmem obrigou-os
a soltar. Algazarra. O instinto de defesa fez o bicho regurgitar um líquido
nojento, fedido, na sala. Naquele dia não teve mais como continuar a aula.
Maria Vitória,
uma moça bonita, educada. Resumir assim, em apenas duas palavras a gazela seria
uma desfeita imperdoável. Bonita sim, de
possuir longo cabelo negro, de seda, a moldar-lhe o rosto moreno. Bonita de
belos olhos castanhos, amendoados. Encimados por sobrancelhas sinuosas, o ponto
chamativo do rosto. A boca de lábios carnudos, a evocar-lhe as origens nativa,
aborígene. Orelhas de lóbulos pingentes. O pescoço gracioso, bem implantado, espáduas
de deusa titânica. Os braços estendidos ao longo do corpo emolduravam seu busto
firme. Os seios duas fontes de vigor, de vida, de pecado. Impossível a qualquer
um que olhasse pra eles não pecar. Seu ventre mesmo coberto pelo vestido
vaporoso - dava saber - fonte de prazer indizível. A acender, adormecidos desejos,
a um varão que pusesse ali sua imaginação. Ao que haveria de encontrar se se
aventurasse sob aquele tecido de algodão, se evaporariam os brios. Pelos
caminhos alucinantes dos pelos, sobre pele cuidada. Donde emanava do próprio
corpo, perfume de fêmea, lancinante. E eriçariam se tocado com a leveza da paixão,
a sutileza do desejo, e brotaria volúpia, tão da carne. O cheiro de mulher
permanecido sob os pelos do montículo de Vênus. Gruta ardente, esconderijo da
flor de Lácio. Intumescência de paixão velada, contida. Graças aos céus, haveria
de se ter - o poder, sempre – o controle de pensamentos e atos. Bem velado, no
íntimo do ser. Sob as cobertas escuras da mente, no mar da libido navegavam, os
escrúpulos do homem navegam. E - em vigor de virilidade – fatalmente
naufragariam, se falassem mais alto, os mais secretos e vis extintos. Maria
Vitória aquela tão linda menina-moça, era filha de Maria Rita. A benção do tio,
um beijo na mão. Um abraço, um afago na cabeça, selado estava o encontro.
Um pedaço de
jornal bolando pela calçada esbarrou num pé do banco da praça onde se haviam
sentado. A primeira página de “O Globo” trazia uma manchete estampada: “Morre o
Ex-Presidente Epitácio Pessoa” O fragmento do periódico carioca, era de uma
semana anterior aquela. Dizia que naquele 13 de fevereiro de 1942, por
problemas cardíacos agravados viera a falecer no Sítio Nova Betânia em
Petropólis - Rio de Janeiro, o estadista Epitácio Pessoa. Daí por diante uma
extensa biografia da vida pública do ex-presidente que governara o país de 1919
a 1922. Entre outras obras que realizara: “A construção de 200 açudes no
nordeste; criação da Universidade do Rio de Janeiro; a substituição da Libra
pelo dólar como padrão monetário brasileiro; inauguração da primeira estação de
rádio do Brasil, no dia 07 de setembro de 1922 centenário da independência, a
Rádio Sociedade do Rio de Janeiro pela primeira vez ia ao ar.” Dizia ainda que
seu governo ficaria marcado para sempre, primeiro porque fora o único
presidente até então, eleito estando fora do país, quando ocorrera as eleições
se encontrava na Conferência de Versalhes. Teve como opositor nada menos que o
jurista Rui Barbosa. Outro fato marcante “A Semana de Arte Moderna” em
fevereiro de 22, que teve a participação de nomes como: Oswald de Andrade,
Mario de Andrade, Manuel Bandeira, Anita Malfatti. No verso da página o Carnaval Carioca, foto da
Escola de Samba Portela que sagrara-se bicampeã, desfilando no domingo, 15 de
fevereiro, na Praça 11, com o enredo “A Vida no Samba” de Alvaiade e Chantim
que falava justo de pessoas como Maria Vitória.
“Samba foi uma festa dos índios
Nós o aperfeiçoamos mais
É uma realidade
Quando ele desce do morro
Para viver na cidade”
Ulisses disse do
quanto a sobrinha tinha da mãe. Contou que Maria Rita era tão calada. E que sua
mãe - avó de Maria Vitória - temeu que a menina fosse ficar surda-muda pois
demorou tanto a falar. Dona Mãezinha a ama de leite, era uma espécie de curandeira.
Na falta do médico era buscada para socorrer nos “incômodos” tanto da mulher,
quanto de suas crias recentes. Pro caso da demora a falar, aconselhava colocar
um pinto em baixo duma bacia, e bater no tampo com algo que fizesse bastante
barulho, próximo aos ouvidos da criança. Só assim foi como Ritinha desarnou a
falar. Pra andar também nada fácil. E outra benzedura teve que ser feita: com
os pés da menina, batiam várias vezes dentro dum pilão, como se fosse à mão
daquele. Dona mãezinha recomendaria ainda uns chás, e a mãe da criança tinha
que fazer uma penitência pra alcançar a graça. Poderia ser - uma romaria - ir a
Juazeiro do padrinho Ciço Romão Batista de pé; durante um ano ir a missas da
primeira sexta-feira de cada mês; guardar as sextas-feiras por um ano sem comer
carne de criação. Era considerada carne de criação, todo bicho que mamasse, tivesse
sido caçado ou pescado, e claro, criado no terreiro de casa.
Certeza de uma
coisa Ulisses tinha agora, queria voltar pra casa. A velha casa do sertão, do fogão
a lenha, um abano de palha de coqueiro, o pote d’água fria num canto da cozinha. A camarinha no quarto forrada com uma colcha de retalhos. Na sala, o
retrato a lápis, o pai de paletó e gravata, que jamais tivera na vida. Com os
irmãos, correr de pés descalço pelo terreiro. Zelosa a mãe ordenaria que
desemborcassem as chinelas. Porque filho que deixava calçados emborcados, xingava
os pais, além de agourar pra morte cedo. Cheiro de café torrado, de invadir
narinas, pulmões, cheiro que jamais mente. A se dissipar pelo pomar das cercas minhas,
a misturar-se ao perfumo, doce caldo das mangas, limões. Frutas do conde, no
sertão é chamada de pinha.
Fabio Campos 19 de Janeiro de 2015
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