
Era muito
provável que o outro se dispusesse a descrever o que via. Talvez não tivesse
muito que contar. Por aquela ser uma cena tão comum, corriqueira, atemporal. Um
lugar qualquer no mundo. Muita gente passando. Pra lá e pra cá passando. Cada
uma carregando - como bem podia e entendia - aos seus fardos-destinos. E ia um
que levava às costas, um porco abatido já desviscerado. A marcha de calça
coronha, e canos de botas sanguineos. Orelhas a balançar pingantes - alegremente
a caminho do mercado - olhos fechados, suinamente sorrindo. Um negro com um caçuá
na cabeça – ia, sem nada dizer - falava de cachos de banana da terra. Nanica, e
prata somente na semana que viria, diria se alguém perguntasse. O balaio-fubá com seus dedinhos morenos,
finos, entrançados, abraçava um saco branquinho como as vestes de Jesus na
transfiguração! Num misto de melancólico e curioso o balaio olhou pro caçuá. Nos
bolsos da calça de ir pro cassino do homem branco, carteira, dinheiro,
documentos. A algibeira-relógio de almofadinha azul-marinho no forro interno
da tampa. Numa carroça puxada por uma
burra, seis ancoretas enjoadas iam, e de tantos solavancos, vomitavam água do
sobejo. O promotor público com seu bigodinho fino. Os picinês no rosto
recém-escanhoado - desfilava na rua do comércio - dentro do seu carrinho feio,
que mais parecia uma baratinha! Não era feio não, era a inveja que era muita! E
iam, e vinham, tantos destinos. Doidamente, milagrosamente, numa alucinada
sincronia. Corpos a tirarem fino, uns nos outros. Enquanto as almas não tendo a mesma sorte
esbarravam-se. Inexplicavelmente aquele
homem resolvera parar. Era isso que intrigava. Por que parara? A ficar sem mais
nem menos, margeava a vida? O livro, não dava pra ver. No entanto ele estava
lá, com certeza, estaria guardado em uma de suas bagagens. Porque trazia mais
do que necessário. Uma inquietude mal disfarçada a dizer que se quisesse consultar
o livro, ali não se sentia muito à vontade pra isso.
E aquele que observava, achou por bem - e
propiciava a hora - descrever o sujeito. Gostava de começar pelo figurino,
porque achava que toda indumentária tinha poder impactante. E que era o cartão
de apresentação de qualquer um. Achava que até um mendigo - como tal - devia
vestir-se condignamente. Porque pra ele, era bastante dizer o que vestia, pra
dizer quem era. Vestia um paletó azul - pobremente desmaiado - escuro. Uma calça
de tecido também muito gasta. A ponto do entorno dos bolsos a negar o blue
marinho que um dia tivera. Tinha umas coisas ali que não combinava – porque
nesse mundo de meu Deus tem coisas que não fazem o menor sentido – o chapéu de
salgueiro, lixada a esmero. Com faixa negra na base da copa, clamava uma cor
neutra, mas o sol não colaborava. Entre
os lábios e os dedos da mão direita um cachimbo, feito de álamo cru. A piteira
metálica reluzia ao sol das dez, dando a impressão que o homem tinha dentes de
ouro. Um par de sofredores nos pés. Três ou quatro volumes de bagagem jaziam no
chão. Faltando pouco pra se apoiarem no poste. O chapéu, pendido pro lado, e o sol continuava não colaborando. Os traços marcantes, os fios de cabelo branco, as
linhas da idade, tudo sequestrado pela luz. A impressão que dava era que Getúlio Vargas resolvera sair do Palácio do Catete indo bater na praia de
Copabacana - em plena segunda-feira pela manhã - surpreendendo até os
periquitos que arribavam araucárias, ananás e palmeiras - trazidas de além-mar
por D. Pedro II para enfeitar - a Avenida Atlântica.
E o livro? Se
era que o tal livro realmente existisse - o que já não duvidamos - descobrimos onde o
escondia. Estaria dentro daquele bolso que fica na tampa da mala pelo lado de
dentro. Muito parecido com um embornal de caçar rolinha e preá no sertão do
Cariri. Donde aquele miserável nunca, jamais deveria ter saído. Dentro da mala de couro quadrada, dotada de
cinto de couro cru, com quatro cantoneiras de lata nos quatro cantos. Na bolsa
de pano da tampa pelo lado de dentro se encontrava o tal livro de capa vermelha.
A capa trazia a suástica nazista dentro de um círculo preto. Em letras sóbrias
– na parte de cima - talvez dissesse “Mein Kampf”. Por causa desse maldito
livro há mais de vinte anos passados, ainda estudante fora preso e torturado. Seus pais
e irmãos jamais entenderam o que significava a palavra comunista com que alguns
vagabundos – na calada duma madrugada de sábado - picharam no oitão da casinha
de taipa. Pra eles tudo aquilo só podia ser uma espécie de doença muito séria,
um castigo de Deus por ter rezado pouco. Naquela redondeza, só eles foram
agraciados com aquele atraso de vida. Quando iam pra feira, os homens da cidade
olhavam-nos com desprezo.
Jamais esqueceriam no dia que o jipe da polícia chegou ao terreiro da sua humilde casinha. A tapera de taipa no Sítio Mocó dos Vieiras nunca tinha visto um carro na vida. O comandante e uma guarnição de cinco homens Com seus enormes fuzis dotados de baionetas espetavam o céu. Seis pra dar voz de prisão a um frangote – que nem gala tinha direito – um menino, um matuto da roça. A vistosa farda de lona camuflada e o chapéu de cuia “brilhou no céu da Pátria neste instante” E fez raiar o sol da desliberdade. Mesmo não demonstrando a menor reação, despiram o rapaz da cintura pra cima. Amarrado de corda foi arrastado pelo terreiro no entorno da tapera, as vistas de pais e irmãos humilhado. Socos e pontapés e deitou sangue subversivo, um nariz dissidente maculando o terreiro que sua mãe todo dia varria. Sua cabeça foi raspada, seu cabelo foi juntar-se ao cabelo de milho no alpendre, no aceiro da roça. Levaram-no para o manicômio judicial. Lá as torturas se intensificaram, choques elétricos, medicamentos psicotrópicos, alucinações e o diagnóstico: esquizofrenia. Vinte e tantos anos anos ficaram pra traz, as lembranças não.
Jamais esqueceriam no dia que o jipe da polícia chegou ao terreiro da sua humilde casinha. A tapera de taipa no Sítio Mocó dos Vieiras nunca tinha visto um carro na vida. O comandante e uma guarnição de cinco homens Com seus enormes fuzis dotados de baionetas espetavam o céu. Seis pra dar voz de prisão a um frangote – que nem gala tinha direito – um menino, um matuto da roça. A vistosa farda de lona camuflada e o chapéu de cuia “brilhou no céu da Pátria neste instante” E fez raiar o sol da desliberdade. Mesmo não demonstrando a menor reação, despiram o rapaz da cintura pra cima. Amarrado de corda foi arrastado pelo terreiro no entorno da tapera, as vistas de pais e irmãos humilhado. Socos e pontapés e deitou sangue subversivo, um nariz dissidente maculando o terreiro que sua mãe todo dia varria. Sua cabeça foi raspada, seu cabelo foi juntar-se ao cabelo de milho no alpendre, no aceiro da roça. Levaram-no para o manicômio judicial. Lá as torturas se intensificaram, choques elétricos, medicamentos psicotrópicos, alucinações e o diagnóstico: esquizofrenia. Vinte e tantos anos anos ficaram pra traz, as lembranças não.
O livro que
Ulisses guardava a sete chaves desde menino, ganhara de tio Afonso. E o
escondia de todos porque era um livro proibido. O padre Bento mesmo, num de seus
sermões, teria excomungado e tornado herege todo aquele que o lesse. O livro
falava de muitas coisas que os homens do seu tempo negavam. De que inicialmente o que hoje cogitamos chamar de
mundo se dava o nome de Caos. “E havia uma densa escuridão e um imenso vazio sem
começo nem fim. Dali surgiu Gaia, a
Terra, que deu a luz Urano. E Gaia e Urano se amaram, e desse coito incestuoso
nasceram os titãs: seis homens e seis mulheres. Sendo Cronos e Reia os mais
taludos dentre eles. Urano sabendo do poder e da astúcia de seus filhos, com
medo que os derrotasse não permitiu que saíssem do interior de Gaia. Pensando
que assim se manteriam obedientes ao pai.
Com a ajuda da mãe, com uma foice, Cronos cortou as genitais do pai e
lançou-os ao mar, o esperma que caiu produziu Afrodite, o sangue da ferida
gerou Ninfas. Após libertar seus irmãos Cronos seduziu e desposou Reia sua irmã. Com ela
procriou os deuses do Olimpo entre eles Hera, Poseidon e Zeus mais conhecido
por Júpiter. Através de artimanhas Zeus conseguiu tornar-se rei dos titãs do
Olimpo, de lá governava, os céus e as tempestades.”
O
mundo agora mesmo, não sabia mais o que fazer com Ulisses. Depois de vinte
anos, um universo inteiro de gente que vivera com ele já morrera. Pais, avós,
tios, irmãos talvez, se houvesse ainda algum, não o reconheceria, do jeito como
se encontrava não o reconheceria mais. Além do que tantos males causara a
família, melhor seria não voltar a vê-los. E as asas de Cronos puseram sobre
ele sua sombra. E voando nelas foi até a casinha do sítio Mocó. Sua mãe na
cozinha, a ficar de cócoras pra lavar as louças, numa bacia. O tecido da saia
ajuntava todo no meio das pernas, os joelhos iam aos seios, murchos. Um lenço na
cabeça escondia sua imensa cabeleira raiada de fios brancos. Pucumãs mantidas
nos caibros negros de fumo, pro caso duma ferida braba a estancar o sangue. O
pedaço de couro de veado preso a cumieira era pra mordida de cobras. O galho de
arruda num jarro pra afastar mal olhado. Mas quem nesse mundo de meu Deus, iria
lançar olho gordo pra tanta miséria em cima da terra! Uma tapera caindo aos
pedaços, galinhas, bacurinhos, uma velha mula, a vaquinha Princesa, a cachorra
Cruvina. A lavoura na roça, um açude quase seco. Era o rico patrimônio dos Vieiras, que
Ulisses tanto gostaria de reencontrar.
Como gostaria de estar lá
novamente. Ah! Se tivesse o poder de Cronos. Enquanto pensava nisso, Ulisses viu
uma moça atravessando a rua. E vinha em sua direção. Stephanie de Mônaco, bela
deusa grega em plena manhã. Por um instante na terra do condor, de um olho o
brilho, um raio (incan)indecente. Sedução.
Fabio Campos 06 de Janeiro de 2015
Nenhum comentário:
Postar um comentário