
De lá do terno passado retornou,
numa foto de primeira comunhão, na igreja Sagrada Família. Se havia colocado de
pé, ao lado duma fila de meninos e meninas, vestidos de branco. Em segundo
plano lá estava. Os garotos trajavam ternos, gravata borboleta e calças curtas,
as meninas como freiras mirins. Segurava em cada mão, um catecismo e uma vela
enlaçada por uma fita vermelha. Não sendo Eliane o foco principal do flagrante,
no entanto, atraía para si a atenção, pelo traje esdrúxulo, uma ínfima blusa,
uma mini saia, sandálias de salto. Havia um quê de ingenuidade em seu terno
semblante. De criança que não conhecera ainda a maldade humana, não em todas as
suas nuanças. Sequer se percebia descriminada pelos demais que ali se
encontravam. Muito embora existisse um preconceito, não de todo velado. Jamais
imaginava o que o destino lhe preparava. Para sempre a guardaria na mente.
Os filhos de família tradicionais
santanenses juntavam-se aos filhos da pobreza da periferia. Nos eventos cívicos
e religiosos se misturavam. Desde o velho grupo escolar, onde ocupavam as
mesmas bancas, sentados lado a lado. Meninos discriminavam meninas como Eliane
por serem pobres. Sem saberem que meninas como ela poderiam ser sua irmã.
Somente muitos anos depois ficariam sabendo que seus pais muitas vezes deixavam
suas mães em casa e, na calada da noite, ia pra periferia deitar-se com pobres
mulheres. E estas se submeteriam aos caprichos sexuais e teria filhas, como
Eliane. Com aquelas mulheres teriam filhas, e não trariam o nome do pai na
certidão de nascimento. Talvez um dia quando fosse dormir, sonhasse com um pai a
pedir a benção, um pai que lhe levasse a passear na festa de Senhora Sant’Ana,
e que se lembrasse do dia do seu aniversário. As semelhanças físicas com os
filhos legítimos as denunciariam. E viriam as brincadeiras maldosas, as
comparações. No grupo escolar, as diferenças quase se anulavam. Quase, não
fosse os apelidos, de ”cabelo pichaim”, “boca de caçapa”, “Maria mulambo” que
os meninos punham, em meninas como Eliane.
Estávamos no primeiro ano da
década de setenta. O sertão enfrentava uma de suas piores secas. Pelas estradas
que acessavam as cidades do interior nordestino, levas de retirantes. Deixavam
pra trás dias de amargura, a ameaça de morrer à míngua. Preferível partir a ter
as tripas puxadas pelo carcará. Virar pasto de ave de rapina, feito suas
últimas cabeças de gado assim vitimadas. Pra fugir da fome e da sede
implacável, mulheres virariam lavadeiras, engomadeiras, empregadas domésticas,
prostitutas. Os homens estivadores, almocreves, jagunços, exímios jogadores de
carta. E construíam suas rústicas moradas na periferia das cidades. Caso
contrário fazia “A Triste Partida”. Pro sul do país, pra construção de Itaipu, da
ponte Rio-Niterói. Seu Ozéias da bodega, depois de ver a propaganda do governo
na Revista “O Cruzeiro” foi bater no meio da floresta amazônica, trabalhar na
construção da Santarém-Cuibá. A nação brasileira era comandada pelo chefe das
agulhas negras General Emílio Garrastazu Médici, com mão de ferro governava. O
“Garrafa Azul” perseguiu todo que se mostrasse contrário a sua forma de gerir
os destinos do país. Deu um fim as guerrilhas no planalto central. Com uma
recessão econômica tacanha pôs freios na inflação, o consumo que já era
acanhado refreou. Poucos tinham poder aquisitivo. Só a classe mais abastada
podia possuir geladeira e televisão.
A propaganda do governo chegava
aos mais longínquos rincões. Até mesmo nos álbuns de figurinha, nas bancas de
revistas, que as crianças compravam pra colecionar e colar. Figurões do alto
escalão do governo, ministros Jarbas Passarinho, Mário Andreazza, Delfin Netto virados
figurinhas que iam coladas, ao lado de cantores da jovem guarda, lutadores de
teleket e comediantes. Livros, revistas, almanaques eram as maiores fontes de
conhecimento, lazer e entretenimento. As bancas de revistas, cafés, lanchonetes
eram pontos de encontro de jovens e intelectuais. Revistas com encartes, discos compactos,
fitas k7, revistas com nus artísticos: playboy, Ele e Ela, tinham venda
proibida pra menores de 18 anos, virava objeto de desejo dos meninos. Enciclopédias
vendidas porta a porta, enalteciam o sesquicentenário da independência,
eternizada na música de Miltinho. A Seleção Canarinha de Zagallo, virada mito,
nos campos de Guadalajara. O narrador mexicano mais apaixonado por nossos
craques que por seus patrícios. Lá fora ficávamos conhecidos como o país do
futebol, do samba de Dorival Caymmi, das mulatas de Sargentelli, pintadas por
Di Cavalcanti. Portinari retratou o sofrimento do retirante. Ter um fusca e um
violão, era um sonho nacional. As
mulheres imitavam os trajes e o cabelo de Jackeline Kennedy, O homem pisando na
lua, Onassis o símbolo de riqueza. “Dona
Flor e Seus Dois Maridos” da cidade de Salvador, da Bahia de todos os santos,
de todos os pecados, de Jorge Amado. Leila Diniz quebrando tabus. Foi vendo e vivendo
tudo isso que Eliane cresceu.
Cedo Eliane aprenderia que viver
não era nada fácil. Cedo aprenderia que o mundo em que vivia, era um mundo cão.
Via, sem ter direito a perguntar nada, homens de toda espécie, jogadores de
baralho, boêmios, comerciantes, feirantes, entrarem na sua casa, e no dia seguinte
irem embora. Homens que olhavam pra seu corpo de menina, com olhares de cobiça,
de gulodices. Demorando-se propositadamente sobre seu sexo, peitos e bunda como
se sevassem. Lá dentro do Panema,
bolinada seria por um rapaz afoito pra quem deu ousadia. A primeira menstruação
veio quando estava brincando de pega com outras meninas. Pensou que tivesse
levado um corte. A mãe explicou-lhe “-Minha filha você agora é uma moça.” Por
noites teve febre, delírios, pesadelo. Sonhou com um homem negro, muito gordo, vestido
de paletó e gravata com chapéu de massa na cabeça, sapatos lustrosos, anel de
ouro com pedra verde no dedo. Dizia que sua mãe tinha morrido a pegava no colo
e a levava. Era noite, e iam entrar num carro preto que estava estacionado a porta.
Dentro do carro o chofer lhe sorria um sorriso cínico, com um dente de ouro
brilhando. E queria gritar por sua mãe, mas não conseguia.
Eliane decidiu que já era tempo
de ir embora. A Rua de Zé Quirino ficara pequena, Santana do Ipanema não fazia
mais, o menor sentido. Estudar pra quê? A sétima série já repetira duas vezes, cansada
estava de estudos. Namorou um rapaz que tinha o apelido de “Bem-te-vi”. Com ele
perdera a virgindade, também com ele provou maconha pela primeira. Afinal já
fizera dezesseis anos. E com outra amiga foi morar em Maceió.
Na capital alagoana Eliane
aprenderia muito mais. Se Santana do Ipanema descobrira o mundo cão. Maceió
apresentou-lhe as delícias do inferno. Pouco a pouco foi se inteirando do poder
que exercia sobre os homens. Poder de tirar do próprio corpo seu sustento.
Decidiu que dele, e com ele, ganharia fama e fortuna. Investia parte dos ganhos
em salões e academia. Em pouco tempo o que era belo, tornou-se extremo. Exuberância
de seios, coxas e bunda colossal. Nada mais nela lembrava aquela cândida figura
da fotografia. Queria tornar-se famosa, tanto que sua terra natal tivesse
orgulho da filha ilustre. Pra isso precisava ser manchete. Mandou um aviso pra
um jornalista duma emissora de tevê, dizendo que seria a primeira garota a
fazer Top Less em praias Alagoanas. Hora, e local combinado. Noutra semana Eliane
foi primeira página do jornal de maior circulação no estado. Passou a ser
programa de celebridades, políticos e era vista frequentando festa de gente
importante. Até um sambista de renome nacional compôs uma música pra ela.
“Teka rendeira, Eliane praieira/
Vamos pra Paripueira/Vamos pra Paripueira/ Vai ter sururu/Vai ter sururu/E o
maré fica na beira da Lagoa de Mundaú/ Da Lagoa de Mundaú/Da Lagoa de Mundaú."
Mas o tempo cruel, vertiginoso
com seu prazer mórbido, de enterrar na areia movediça do destino os mais
coloridos dos sonhos. E nossa boneca de trapo novamente voltaria a ser destaque
nos jornais. Desta vez, na página policial. Nua sobre uma cama de quarto de
motel Eliane. Morta com três tiros.
Fabio Campos 18 de Fevereiro de 2015
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