Ia um homem. Andando, no meio da
rua. Rua que por sinal não lhe dava tanta intimidade pra isso. Afinal tivessem se
visto antes, somente algumas vezes, não o bastante. O sol, não era ainda o de
meio dia, mas as pessoas franziam a testa assim mesmo. Caminhava um caminhar
simples, como de quem não tinha pressa de chegar pra onde ia. Aquele jeito de ir,
tanto tinha de caseiro quanto de estrangeiro. De quem se achava,
inconscientemente, tanto no direito de se apossar quanto de ficar indiferente a
paisagem, ainda que nada daquilo lhe pertencesse.
Distante de sua terra, mesmo
assim sentia-se em casa. Era assim, não importava onde estivesse. As vistas, indo as casas, as velhas fachadas,
as coisas, e tudo que era vivente e movente. Se familiar ou estranho não
importava. Portas, portões, pintados com tintas mortas de antigamente. Os
telhados avermelhados, sob a luz. As serras diáfanas, como se noutra dimensão.
As cadeiras dentro do salão do barbeiro também falavam de coisas velhas. Francisco ainda
vinha vindo. Encontrar alguém, talvez fosse uma realidade meramente casual. Era desse
jeito assim, à muitos anos. Levantava cedo, saia em busca duma colóquio, fosse
com quem fosse. Pouco importando o teor da prosa, guarnecida seria dum cafezinho,
um cigarro, e uma quentura de sol matutino.
Os pensamentos sufocados pela
nuvem azulada acinzentada de tabaco. Os carros transitando eram bem menos dos
que havia então. Muitos daqueles jovens nem eram nascidos quando ele passou
ali. As fardas dos estudantes ainda eram de tecido de algodão, e suas bolsas
não tão pesadas. Mas isso não passava de pequenos detalhes. Talvez o que
importasse era que ele estava lá novamente. E tudo se repetia exatamente como
noutros tempos. A visitar novos ambientes como se dele fizesse parte desde
antes. O mercado da carne, o bar da sinuca, a banca do jogo do bicho à porta, a
tabacaria de Seu Arnóbio. Na casa lotérica pegaria só por pegar, uns volantes de aposta. O
parque de diversões estava lá, colorido de doer, ainda dormia, e assim
permaneceria até o raiar da noite, de véu negro a arrepiar-se de luz, pra todos
os gostos e ocasiões. A locução, as músicas, o carrinho de pipoca aquecendo
almas, o carrinho do algodão doce roseando bochechas infantis. Tudo muito
imprevisivelmente esperado. E as casas de jogos que funcionavam sempre nos fundos
dos bares abarrotadas de homens sombras. O banqueiro do jogo do bicho escrevia
e escrevia números indeléveis porem decifráveis. Velhos pôsteres do Flamengo,
do Vasco da Gama, e Fluminense, as flâmulas, os troféus enferrujados,
empoeirados de desgosto desbotaram. Tudo desmaiado, ferido de morte pelo tempo.
Indiferentes a tudo, os jogadores continuavam lá. Perfilados pouco se
importando com tudo o que a suas voltas se sucedia.
Foi traumático demais. Quer
saber, ninguém nunca estaria preparado para uma cena daquela. O menino, tinha se perdido
da mãe. Chorava feito um desesperado. Na estação rodoviária perdeu-se da mãe.
Os ônibus tudo igual, chegavam e saiam a todo instante. Não viu que a mãe
subira no que estava na segunda plataforma. Devia ter seus quatro anos. Lembrava
Tomas, magrinho, frágil. Desesperadamente pedia que a moça encontrasse sua mãe.
A moça na maior paciência pedia que ele se acalmasse, mas era vão o pedido. E
cada vez mais alto chorava. Quão apertado estaria seu coração naquele momento. E
se fosse Tomas? De angústia encheu o coração. Temeu que ao sair da escola tivesse
se perdido da mãe. Aflito. Foi ao encontro do menino fez-lhe um carinho na cabeça, o
menino achou-o parecido com o avô. Instintivamente estendeu-lhes os braços,
mesmo não sendo aquele seu avô. Apenas porque achou parecido, e quis estar em
seus braços. As lágrimas lavavam o ombro da camisa. Confortava-o acariciando seu cabelo abraçado ao
pequeno corpo. Tanto dó teve que chorou com ele, um choro sufocado cheio de
aflição. Ficaram sabendo que a mãe já dera por falta da criança, e já estaria
vindo ao seu encontro. Cada minuto uma eternidade. Nada o confortava, não
queria nada, somente estar com a mãe. Mãe palavra tão doce meu Deus! O relógio
preguiçoso no andar fez o menino dormir. De tanto desespero enfadou-se. Finalmente
chegou a mãe aflitivamente pegou-o no colo. O cheiro dela fê-lo acordar, e foi
como se tivesse tido um pesadelo. Seus olhos encontrando os dela, que de pura
ternura era como que dizia: “Mãe eu sonhei que tinha lhe perdido,” E quão era
bom acordar com o terno sorriso de mãe. E disse que o “vô” tinha ficado com ele
enquanto ela chegava.
Francisco lembrou-se de quando
era pequeno. As traquinagens de moleque, de ir pra casa dos avós que moravam
noutra vila, pra lá do Gavião. Andava léguas a pé, se passava um caminhão dava
com a mão, as vezes davam-lhe carona. Lembrou duma vez que teve muita sede,
andando debaixo do sol quente e foi até um casebre pedir água. Deram-lhe de
beber, um caneco grande de estanho, cheio de água barrenta da cor de café com
leite. Amizade com os meninos da casa foi uma consequência, e ficou ali o resto do dia. Se
embrenharam no mato pra caçar rolinha. Tomaram banho de açude, pescaram piaba.
Quando a fome apertou comeram melão de São Francisco sem saber que era do santo.
Debaixo dum umbuzeiro meteram o dente nos frutos verdosos sem polpa, até desbotar, e enjoar.
O rosto e os braços queimado de sol. Quando ia se amoitando por trás do morro o
rei dos astros, ia chegando a vila. Dona Amância ralhou com o menino pois sabia
que estava ali sem o consentimento dos pais, aquela altura aflitos a sua procura.
Com a mão comprida esfregou uma benção na cara. Deu-lhe uma encarcada na cabeça
com os nós dos dedos, era uma reprimenda. Percebeu que o menino estava “pegando
fogo”, se queimando de febre. Foi no oitão da casa, e voltou com uma touceira
de mato. Uma panela avermelhada com amarelo nas bordas foi pro fogão a lenha, a
fazer um chá. Buscou um dos rosários que trazia ao pescoço, o das contas pretas
ligadas por ligas de ferro, e se pôs a rezar.
Vó Amância tinha reza pra tudo,
reza pra peito aberto, espinhela caída, dor de dente, dor na coluna e nas
juntas. Também pra febre de menino. E madrinha Moça sempre ralhava: “Se for
problema de junta, ajunta tudo e joga fora.” Piada boba, mesmo assim todos riam,
por que já estavam acostumados. Dentro do catecismo um pedaço amarelado de
papel jazia, dobrado em quatro dobras. Umas letras cascudas, feito grãos de milho
seco. Escrevinhadas a grafite dizia:
“Oração de São Bartolomeu.
Primeiro o galo cantou São Bartolomeu acordou, seu pé direito calçou. Seu
bastão na mão pegou, com Jesus Cristo encontrou. Jesus Cristo perguntou: Para
onde vai São Bartolomeu? Vou a sua guia Senhor. Volta pra trás São Bartolomeu
pois na casa que estiver não morre mulher de parto, nem boi de arado, nem
cavalo disertado. Nos quatro cantos dessa casa, quatro anjos em minha guarda:
Mateus, Marcos, Lucas e João. Paz dai-me Senhor. A concórdia Aleluia, Aleluia.”
Depois do chá, da benção e da
reza, o menino dormiu. Agarrou no sono numa cadeira preguiçosa lastrada dum
tecido grosso, listrado de vermelho e azul. Vô Tomaz pôs nos braços, colocou-o na
camarinha. Era um quarto pequeno, apertado cujas paredes de taipa pareciam
dançarem a luz do candeeiro. Quando raiasse o dia o cheiro de cuscuz com leite
viria lhe acordar. Dorival outro menino uns três anos mais velho que Francisco,
já teria arreado o cavalo pra leva-lo de volta pra casa. E voltariam pelo mesmo
caminho, e tornaria a encontrar os primos, novamente caçariam rolinha e
tomariam banho de açude. E tornariam a gripar e ter febre.
“Quando ele completou doze anos
de idade, eles subiram à festa, conforme o costume. Terminada a festa, voltando
seus pais para casa, o menino Jesus ficou em Jerusalém, sem que eles
percebessem. Pensando que ele estava entre os companheiros de viagem,
caminharam o dia todo. Então começaram a procura-lo. Depois de três dias o
encontraram no templo, sentado entre os mestres, ouvindo-os e fazendo-lhes
perguntas. Todos o que o ouviam ficavam maravilhados com o seu entendimento e
com as suas respostas. Quando seus pais o viram, ficaram perplexos. Sua mãe lhe
disse: “Filho por que você nos fez isto? Seu pai e eu estávamos aflitos, à sua procura.”
Ele perguntou: “Por que estavam me procurando? Não sabiam que eu devia estar na
casa do meu Pai?” Mas ele não compreenderam o que lhes dizia. Lucas 2, 40-50”
“Lampião subiu a serra com
sapatos de algodão a serra pegou fogo Lampião ficou na mão.” Madrinha Moça
cantarolava ao pé do fogão enquanto preparava o almoço. Dona Amância corrigia: “Quer
saber! Lampião nunca na vida dele botou um par de sapatos nos pés. Ele anda
mesmo em riba desse mundo de meu Deus, é atolado numas alpercatas “xô boi”, e tem mais, o
solado não tem calcanhar que é pra ninguém saber pra que lado está indo, ele e
o bando todo.”
“Engraçado, a vida tem coisas,
que só Deus entende. Assim dizia a anciã: -Jesus Cristo nasceu em Belém, foi
morar em Nazaré, e de José aprendeu carpintaria. Aos 30 anos saiu a espalhar
gratidão e cura, pelo mundo. Lampião em Vila Bela nasceu, virou artesão, em
Nazaré do Pico passou. Aos 20 anos foi espalhar desavença e morte mundo a fora.
Interessante como cada um de nós vem pra esse mundo com uma missão. E baixinho cantarolou,
num sussurro: “Lampião subiu a serra com sapatos de algodão...”
Fabio Campos 25 de setembro de
2015