Havia um rapaz, cabelo cor de agave, parado na porta de casa. A rua, era
uma rua feia, acanhada. toda torta. Quando chovia a água da sarjeta, do lado
mais alto, descia pelo calçamento, a procura de menino pra brincar, e corria
até a boca de lobo. O rapaz continuava olhando a rua, as pessoas que passavam.
O dia, que vinha. Com o olhar acompanhou o homem de chapéu de pano. A mulher
com a criança devagar ia passando. Um litro de leite num pequeno balde, indo bem
devagar.
Nada daquilo tinha pressa de acontecer. Tudo daquilo jamais havia
acontecido antes, não daquele jeito. Coisas ocorriam, e era em vermelho que
aconteciam. Nos pensamentos, coisas não muito corriqueiras. O nascer do dia parecia
simples assim, mas não era. O sol nascera amarelo, ao se deixar olhar se fazia
vermelho. Tragicamente e inexplicavelmente da cor de sangue. O capim verde no
pasto. Bem mais crescido próximo ao riacho, felizmente dizia o que realmente
era, verde. De certo a dar esconderijo a jiboias enormes que não hesitaria
atacar um bezerro daqueles. Quanto aos mosquitos, faziam seu carnaval.
O rapaz agora tinha um boné preto na cabeça. Saiu, seguindo o homem de
chapéu de lona. A camisa vermelha de malha, as
mangas compridas puxadas até os cotovelos deixava ver uma tatuagem duma águia,
que tomava todo o antebraço. O homem a frente ia tranquilo, trajava vestes
simples, de um asseado funcionário do departamento de saúde municipal. O chapéu
de cor bege de abas dobradas, ao sol parecia alaranjado. Uma bolsa também
bege a tiracolo. Desciam a ladeira. Depois que passou a pontezinha de pedras, o
rapaz anunciou o assalto. Uma faca enorme, de cabo vermelho, refletiu prata. Apontava
pro pescoço do homem. Não tocou nele, mesmo assim sentia a ponta lhe furando,
gosto de sangue na boca. E uma gota de suor descendo pelo pescoço, era um fio
quente de carne em estado líquido. Ordenou-lhe que entregasse a carteira.
Atônito o homem vacilou. O dinheiro tinha destino certo, a conta da costureira
que remendou a bolsa de couro. A aposta no jogo do bicho investiria na sorte,
que naquele momento fugia. Lembrou que só havia uns trocados lá. O dinheiro mesmo,
ainda bem, não estava no objeto solicitado. Mesmo assim, por fracionais
segundos, pensou nos documentos. A despesa grande para providenciar outros novos.
Entregou, relutante, mas entregou. O rapaz correu. Dum salto alcançou o baixio
do riacho. Vulto vermelho velozmente engolido pelo verde. Tragado pelo matagal
onde se supunha seguro. Provavelmente estivesse enganado.
Nunca mais esqueceria aquele momento. Milésimos de segundos, uma
eternidade. Entre a vida e a morte. A morte era vermelha. A morte é
quente, destruidora, e salvadora a um só tempo. Aquele rapaz que não conhecia
acabara por mostrar-lhe uma energia que jamais soubesse que possuía. E passaria
a dar valor ao vermelho. A cor dos sentimentos mais vivos, como o amor, o
perdão, a paixão, a ira, o ódio, o sangue pulsando forte. O sol quente, vivo.
Fazia-o um homem novo. O assalto teve o poder de tornar as coisas ainda mais
vermelhas. O coração batendo com mais intensidade. As cavidades
cardiovasculares se enchendo e impulsionando pro corpo, sangue quente como
aquele sol. E os rins aguentando tamanho bombardeio. As fontanelas latejando
como se fossem explodir a qualquer momento. Tamanha erupção a lavar a bexiga e
a urina como uma sangria desatada. As falanges formigando, tornadas
insensíveis, anestesiando. A uma velocidade alucinante. Encarnada letargia. Levou
a mão ao pescoço não havia corte ali. Cuspiu vermelho, na agonia mordera a
língua.
Não entendia porque ninguém testemunhara a ação delituosa. E olhe que
havia grande movimentação naquela manhã. Um cachorro deitado num monte de areia.
Claro! Aquele cachorro viu tudo, mas não saiu do canto. Ficou lá, parado. Vendo tudo,
sem mover a pestana sequer. Odiou-o por isso. Tantas vezes latira ferozmente
pra ele, quando não havia a menor necessidade. Nunca oferecera perigo pra
aqueles, passava todos os dias ali. Sabia que fazia aquilo só pra se mostrar pro
dono. Pra pensar que se preocupava com a segurança da casa. Maldito cachorro
conivente de um crime. Não passava de um imprestável, cúmplice de um delito.
O sinal de trânsito dizendo pare, era vermelho. Não podia parar. A rua
era como um tapete vermelho onde podia desfilar, feito celebridade. A celebrar
a vida nova que acabara de ganhar e que tinha tanta sede de vivê-la, intensamente.
O telefone vermelho debaixo da concha, a esperar que um chefe de estado viesse
ligar, autorizando o início da guerra nuclear, ou quem sabe um facínora comunicando a explosão
de um caixa eletrônico. E o carro vermelho do bombeiro chegaria dobrando ainda mais a cor
do fogo. Talvez o sol estivesse mesmo rubro de vergonha.
A água do riacho não era mais que um fio de lama da cor de creolina. O
cheiro muito pior que a cor, a esbofetear narinas de pura fedentina. O vento
açoitava pra o fim do mundo, o mau aroma, e o fedor se perdia dentro do
vermelho. Alucinante vermelho. O homem se sentiu como se estivesse sujo. Como
se tivesse tomado banho com aquela água. Teve nojo da raça humana. Por que fazemos
mal uns pros outros? Não tinha certeza se esperaria vingança de Deus. Talvez
pensasse que tudo que nos acontecia, realmente nós merecemos que acontecesse.
Talvez tudo fosse meticulosamente predestinado. Reflexo das nossas próprias
ações.
E lhe veio Eclesiástico 28: “1 Aquele
que quer vingar sofrerá a vingança do Senhor, que guardará cuidadosamente os
seus pecados. 2 Perdoa ao teu próximo o mal que te fez, e teus pecados serão
perdoados quando o pedires. 3 Um homem guarda rancor contra outro homem, e pede
a Deus a sua cura! 4 Não tem misericórdia para com seu semelhante, e roga o
perdão dos seus pecados! 5 Ele, que é apenas carne, guarda rancor, e pede a
Deus que lhe seja propício! Quem, então, lhe conseguirá o perdão de seus
pecados?”
A camiseta do rapaz era de goleiro, tinha o número um nas costas. Rosas
vermelhas no jardim. Adonis e Afrodite surgiram com seu amor avassalador. Adonis
acabaria morto durante uma caçada a javalis. Vermelho lembrava amor passional mas
também a maldade de Seth que encarnava demônios. Cuspir sangue causava-lhe
grande perturbação mental. A visão do sangue tinha o poder de trazer medo,
confusão de sentimentos. Causasse, quem sabe, danos cerebrais, embaraçasse as
vistas. Tudo era como se visto através das lentes de óculos de assistir filme
de imagens tridimensional.
Será que vai terminar a história e o homem vai permanecer no anonimato?
Bem. Vivia ele uma trajetória de vida tão sem graça que nem valesse a pena ser contada.
Um ir e vir enfadonho pro trabalho. Vivia de servir a saúde pública municipal.
Ora atrás dum birô a carimbar requisições médica. Ora como vigilante sanitário.
Vamos dizer que lhe cairia bem o nome de Paulo. Pois bem, Paulo toda vida foi
um respeitável pai de família. Um cristão, piedoso. Morando em sua casinha
modesta, distante umas duas braças do povoado. Por dois motivos vinha pra rua,
trabalhar, e aos domingos pra missa na igreja do Padre Cícero, por cima do
lajedo grande. Seu Paulo contava missas. Isso mesmo, pra cada missa que ia uma
pedrinha ele ajuntava. Bem assim por tras da igrejinha tinha um local que ele
jogava uma pedra. Toda vez que ia pra igreja uma pedra era colocada lá.
Teve um domingo que Seu Paulo a caminho da igreja foi chamado por uma mulher
aflita. O filho dela estaria morrendo. O rapaz com os amigos tinha ido caçar
passarinho no capinzal do riacho e levara uma mordida de cobra. Seu Paulo tinha
soro antiofídico, e teve que voltar em casa pra apanhá-lo para aplicar no
menino. Não deixou de lamentar a perda da missa por conta do imprevisto
socorro. Qual não foi sua surpresa ao ver o menino era aquele que um dia lhe havia
assaltado a carteira.
Não sabia ele que ao chegar à corte celeste, O Criador
lhe mostraria aquele monte de pedras que somava o número de missas assistidas.
E diria: “Sabe qual foi a missa mais importante dentre todas aquelas Paulo?
Justamente a pedra que você não colocou lá, porque foi salvar a vida do filho
daquela mulher.”
Fabio Campos 18 de setembro de 2015.
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