“Não te Envolvas no caso desse
justo, porque muito sofri, em sonhos por causa dele. Mateus 27;19”
A estrada era a mesma que
Severino todo dia passava, tangendo o burro levando ancoretas. Conhecido como o
caminho de Nazaré. O filho de Seu Zé Benjamim era dos que sabia por que aquela
estrada tinha aquele nome. Muitos dos que passavam por ali não. Os anos fizera
curva e deitaram labirinto a desembestar-se feito a peste, sem entender o que
se passava no íntimo de cada um. Nazaré e Elisabete se conheciam, não eram
amigas. Tempos estavam de coloio, tempos de sangue a fogo intrigadas. Era duas,
das moças que desvirginara muitos dos meninos do Grupo Escolar do Padre
Albuquerque. O caminho tinha uma ladeira. Dum lado a cerca de arame farpado
delimitava as terras de Seu Manoel Augusto. No outro lado a cerca era coberta
de mato. Lá embaixo aproveitando a água que sobejava quando enchia a caixa d’água do governo, um baixio adornado de bananeiras, e outros verdes que os
pássaros acudiam como seu santuário.
Everaldo, Eraldo e Tonho eram dos
mais arteiros do nosso Ateneu. O porte físico aumentado fazia toda diferença. Eram
bons de briga, ninguém os quisesse como inimigos. Everaldo sempre requisitado
pelas professoras para mudar um birô de lugar, carregar um pacote de livros,
Tonho pela origem campesina gostava de capinar, colaborava na manutenção do
jardim, e da horta de dona Nazilha. Naqueles havia muito músculos pra pouco
cérebro. A testosterona alta favorecia a libido. O assunto mulheres atiçava lhes os instintos, os mais primitivos. Só falavam gritando, gesticulando, vez em
quando apertando os bagos. Os três sabiam de coisas sobre elas, as mulheres.
Coisas que a maioria dos meninos não sabia. Permitido era que frequentassem a
roda de conversa dos rapazes do ginásio, sem serem enxotados. Por isso sabiam
mais que os demais. Sabiam que antes do coito se a
mulher se negasse a deixar passar limão nas suas partes íntimas, de certo estaria
com uma doença do mundo. E que mantinham os pelos pubianos sempre raspados para
não contraírem o piolho chamado de chato. Os pirralhos, de olhos arregalados
ouviam cada informação segredada. Tão atentos que se o mundo desse de se acabar
a sua volta não perceberiam. Uma doença chamada de “mula” apurava o imaginário
dos moleques, um caroço do tamanho da pata daquele animal se criava na virilha. A
ideia de que cada gozo resultante da masturbação significava milhares de bebês descendo
pelo ralo do banheiro intrigava profundamente. Um preservativo usado, deixado a
ermo no terreno do grupo, encontrado por um dos meninos, que teria confundido
com uma bexiga de aniversário, serviria de chacota pros grandalhões.
As telhas das casas com seus
cachimbos diziam fios pro poste, e recebiam luz como resposta. Luz que
expulsava as trevas de dentro dos viveiros de gente. E a lua, travessa, espiava
as pretas velhas, mucamas, amas de leite, a contar histórias que falavam de
assombração de pai do mato, de negros atrevidos que sofriam mais que sovaco de
aleijado, na unha do Capitão. História que os escutadores ficavam comovidos. E desejariam que nunca mais viesse a se repetir tais coisas. O ruído
vindo da lapa do mundo era pouco. Era tanto silêncio que dava pra escutar uma
nuvem se encontrando com outra. O pé de goiabeira chacoalhava seus galhos
chamando o vento, o esforço desprendido e um monte de folhas velhas ia parar no terreiro
de dona Belinha, que ao cair da tarde pacientemente ia varrer. Uma bizunga
conversando com uma rosa, um besouro rola bosta, enfezado porque não conseguia
empurrar um tolete seco pra dentro do buraco. A rua, no mais das vezes era silêncio. Seu
Pedro passava na bicicleta, era só imagem. Pra onde fora o som? Simplesmente não havia. Pra
logo depois explodir de toda natureza de atos e ruídos, isso a depender da hora do dia.
Pela manhã o vendedor de pão com sua carroça hermética, toda de lata, de buzina
engraçada. Bem antes, já havia passado o vendedor de leite com os baldes de
ferro dentro dos caçuás do jumento. A tarde era a vez do funileiro, do vendedor
de fubá, do vendedor de quebra-queixo. E o efusivo vendedor de cavaco chinês a
vibrar tímpanos, com estridente tocar do triangulo.
Seu Sebastião levava os
passarinhos pra passear. Cada dia uma gaiola diferente. Seu Alberto levava os
cachorros pastores alemão depois do banho. Valter de Marinheiro variava os
bichos, marrecos, araras, mocós, iguanas, cavalos, e cães. Um bicho diferente
pra cada dia da semana. De manhã, passava no mercado da carne, rua dos porcos,
até a intendência, a tarde, na farmácia de Seu Moreninho, peruava os jogadores
de gamão e dominó. Na bodega de Seu Ozéias, uma lapada de raiz de pau. A
tardinha o bordel de dona Brejão. Meninas da zona rural que perdiam a
virgindade, sem firmarem compromisso com ninguém, expulsas da casa dos pais ali
encontravam guarida. Outras iam por falta de opção, e mesmo por influência das outras.
Nazaré iniciou-se com os meninos do grupo escolar, por puro prazer, nada
cobrando em troca, amor gratuito. Escolhera aquela vereda como ponto para as
investidas amorosas. Os meninos, iam sozinho, de dupla, ou de ruma,
sempre na calada da noite. E assim ficaria conhecido como o caminho de Nazaré.
Cláudia Nazaré era morena, do
cabelo castanho. Formosura por assim dizer não havia, de sobra tinha mesmo era
um bom coração. Puro, dadivoso. Os anos da mocidade foram embora, e a prostituição
nunca fora, pra quem vende o corpo, um bom negócio. Vagou como empregada
doméstica, em algumas casas de família. Acabou que conheceu Valdomiro o
jardineiro da casa de Seu Milton. O namoro, as confidências. Contou-lhe a verdade,
que já vivera um tempo no cabaré mais frequentado da cidade. Por parte dele houve
aceitação, desde que daquele dia em diante o respeitasse. E foram morar
juntos. Na lagoa do Junco, perto da pedreira se arrancharam, num casebre
conseguido pelos pais dele. Vida sofrida, muita luta pra adquirir o pão de cada
dia. Davam duro, em trabalho de roças, arrendadas, e de meia com os proprietários
de terra. Na colheita sempre dava pra guardar uma saca de feijão, não faltava
uma abóbora, uma melancia. Uma marrã de ovelha, um bacurim pra engordar. A
comida cozida em fogo de lenha. As roupas lavadas no riacho do bode. Não
tinha água encanada tinha que descer a ladeira de barro e pedra, com as latas num
carrinho de mão. Ir lá embaixo pegar água, no chafariz do início do cortiço.
Somente ali chegava água encanada, boa de beber e cozinhar, também pro banho de
noite protegidos pela escuridão numa grota cheia de mamoneiras, carrapateiras,
berdoegas.
Nazaré teve um filho. O menino
nasceu com um defeito. Tinha o pé direito virado pra dentro. Valdomiro teve desgosto
por isso. E fez uma promessa, pro pé do menino ficar bom. Na semana santa,
daquele ano, foi a pé, a Flexeiras de Santa Quitéria. O tempo na sinfonia da
vida fez vira breque. E tocou o mundo sua bola doida pra frente. O menino
cresceu, não teve jeito o pé ficou virado mesmo. Chamava-se Cláudio, o filho de
Cláudia Nazaré e Valdomiro. Menino arteiro, estudou no grupo do Padre Albuquerque,
o mesmo por onde sua mãe muitos anos antes havia passado, só de passagem.
Cláudio não era grandão, mas era bom de briga. Gostava de jogar bola, o defeito não o impedia de ficar no gol.
Quinze semanas santas depois
daquela, e Cláudio era agora um rapaz. Com a vó, morava lá na Maniçoba. Seu
Flamarion todo ano organizava a encenação da paixão de Cristo. Cláudio foi
convidado pra atuar na peça. Achou interessante, topou fazer o papel de um centurião.
Seria um dos que batia em Jesus no caminho do calvário. Montado num cavalo
sibilando um chicote no ar, nunca imaginava aquele, que muitos anos antes, pelo
menos uns dois mil. Cláudia, sua mãe teria pedido a Pilatos que não se envolvesse
com o justo. Ela mesma, dias antes, o havia procurado para pedir a cura do filho,
e teria alcançado a graça.
Fabio Campos, 30 de outubro de
2015.