
Já ouviu dizer que alguém tivesse
sede de coisas? Mônica tinha. Como assim sede de coisas? Rafa quis saber. Vontade
de comer uma tigela inteira de doce de leite. Dona Zefinha um dia, fez Cláudia
comer uma travessa inteirinha, por conta da sua insistência ao pé do fogão querendo comer
doce quente! Vontade de comer todinho o pote de Catchup. Vontade de provar coisas
improváveis. Tipo, soprar o pó de estrelas da Via Láctea, dar um beliscão na
lua. Pra ela, a lua era igualzinho gente. Tinha sonhos, uma jornada cansativa
de trabalho. Horário a cumprir isso tinha. Igor ralhou dizendo: -Só era o que faltava!
Não vá me dizer agora que a lua tem sentimentos. A outra irmã mais nova já havia
disso isto. E completava: -Minha vó pedia a benção a lua. Ficariam todos ansiosos,
que chegasse logo o final de semana. Isso tornava as coisas, bem menos chata. Felizmente
nada daquilo tirava o brilho nem a essência das coisas. Necessidade de fazer
novas amizades não havia. Porque obrigatoriamente discutiriam a existência, e o
que realmente era essência. E as discussões fatalmente iriam se acalorar,
alguém tinha que recuar, e viria o risco das amizades saírem arranhadas. E como
se odiava por ter que concordar com coisas inaceitáveis, só pra não magoar os
outros.
E tinha a história que o mundo
fora criado a partir de uma grande explosão de átomos. Isso causava certa
inquietação. Quer saber, até indignação. Não que fosse de todo inaceitável. As
hipóteses era que não convenciam. Gostava de tudo bem explicadinho nos mínimos
detalhes. Na aula de Evolução a pergunta: quem teria nascido primeiro o ovo ou
a galinha? Provocou discussão extensa, extenuante. O que aquele pé estaria
fazendo plantado bem no meio do jardim? Achou por bem perguntar: -Você é um pé
de quê? -De ciências. Respondeu. –E o que dá um pé de ciências? –Dá o que você
quiser... –Dá uma máquina de desinventar coisas? Disse que dava.
A quíntupla parte dos pensamentos
de Sofia, era de como criar a engenhoca do “Para Sempre Sem Fim”. Um troço que fizesse com que as coisas, das
quais mais gostava nunca, jamais se acabassem. Uma espaçonave que a levasse até
vovô e vovó, onde estivessem naquele momento, venceria a implacável distância. Na gaveta da cômoda pegou, papel
e lápis. Material suficiente para iniciar sua obra. Primeiro rabiscou um homem
máquina, que sabia construir balões com letras do alfabeto. A cabeça era de
lata de leite em pó, e o corpo de caixa de achocolatado, os braços dois garfos,
e os pés duas colheres, cujas conchas voltadas para baixo, pareciam sapatos. O
robô falava. E das palavras que pronunciava pegava as letras de que precisava.
O robô disse: “-Palavra!” Daí pegou a letra pê, encheu de ar os pulmões, e
soprou na pontinha do pê até ele ficar deste tamanhão. Depois falou: “-Quatro”,
e o quarto número cardinal, que se parecia uma cadeira de ponta-cabeça, usou
para fazer a cesta do balão. Dando um nó na letra éle, amarrou a cesta ao
balão. E voou alto. Tão alto que não era mais que um ponto red, um ‘redzinho’
de nada no blue. Aliás, no ‘blusão’ bem grandão.
Cinco pensamentos continuavam
pensando. Tudo de que Sofia mais gostava e que devia ser infinito. Primeiro brincar
no quintal, entrar na piscina inflável, e poria o colete inflável, e encheria a boia de zebra também inflável com seu sorriso de domingo. Ah! Os dias de
domingo. Este dia da semana jamais devia acabar. Como era legal, ter a certeza
que todos os dias seriam dias de domingo. Segunda-feira era domingo, terça-feira,
domingo, quarta-feira, e assim por diante. Acontece que não tendo mais os
outros dias da semana os garis não recolheriam o lixo. Isso tinha que ser
resolvido. Eureka! Os garis seriam contratados pra fazer hora extra! No segundo
domingo, da semana que só tinha domingos. O açougueiro não abria o mercado. E as
mulheres não teriam como comprar pernis de porco para o churrasco do fim, do
fim de semana, que agora era todo dia.
O parque de diversão, do mundo de
Sofia, vivia sempre aberto. Todos os dias, o dia todo. Pobres pais e
funcionários não aguentavam mais os turnos dobrados. Aquelas crianças
incansáveis. Era preciso chamar criaturas igualmente hiperativas! Ora! Porque
não pensamos neles antes, os duendes da Terra do Nunca. Eles amavam o trabalho
com brinquedos e crianças. Cervos, cavalos e unicórnio também se revezariam na diuturna
jornada de brincadeiras. Ninfas, fadas e princesas alegremente divertiam as
energéticas crianças. O parque se expandira tanto que ia até o infindável fim
do mundo. E os sorvetes, eles simplesmente não se acabavam. Os pirulitos, as
maçãs do amor, os churros, idem. Carrinhos feitos de mashymeloon. Carruagens de
melancias com cobertura de chantilly e recheio de caramelo. Castelos argamassados
com pasta americana. O fosso era um rio de achocolatado onde boiavam trufas. Pipocas
coloridas davam em árvore.
Escorregadores de creme de baunilha com degraus de biscoitos waffers que viravam pranchas em piscinas de refresco
de groselha e guaraná.
O estado Gasoso, das coisas. As nuvens lá no céu, quanto mais longe mais
perfeitamente perceptível se faziam. Era pra lá que todas as rezas iam, a se diluírem
nas asas dos aviões. Aquela tal brancura? Estaria diretamente ligada a ausência
de água em seu interior? Imaginar os anjos caminhando sobre elas causava
estranheza. Se sentissem sede, era só comer pedaços de nuvem como se come
algodão doce. E pensar que do nada, a qualquer instante, podia nascer um
arco-íris. Era fantástico imaginar isso. A fumaça saindo da chaminé do trem
querendo se igualar as nuvens. Subia, subia. E o balão precisava de ar aquecido
pra se manter no ar. Enquanto o trem se mantinha nos trilhos trilhando o
infinito.
Estado Líquido. A chuva no
caderno escreveu um monte de riscos. Era a chuva de Sofia. E Igor o menino que
desenhava abriu o guarda-chuva pra que Rafa, o menino do desenho, não se
molhasse. Um pingo de verdade fez guache que inundou a ponte, o rio e a casa.
Tinha que ter um barco, mas o menino só sabia fazer chapéus de jornal. O pai do
menino sabia fazer barcos, mas estava muito ocupado tirando a água de dentro de
casa, por isso não fez. O avô tempo suficiente tinha, mas não sabia. O menino
com muita paciência pediu a Sofia. Ela fez um barco que era pura travessia.
Incluía Creonte e a filosofia, porque navegar era preciso, e viver não era
preciso.
Estado Sólido. –Professora? Sólido,
é tudo que é duro? Não necessariamente Zacarias. Por exemplo, muitas vezes é
duro viver. No entanto, viver não é necessariamente sólido. Precisamos sempre
mudar nossos conceitos, opiniões, e isso pode se tornar sólido. Pedra é a coisa
mais sólida do mundo, pena que elas podem se tornar incrivelmente solitárias. Além
do que pedras não são mudas. Muito, muito falam, sobre limo, sobre rio, e
pescador. O que é sólido muitas vezes nasce do sol, e morre de solidão. A faca
em cima da mesa era tão mal, tão seca, tão feroz, tão sólida que chegava a doer!
E seria melhor que não houvesse tanto de solidez, em coisas tão sólidas assim.
Porque corriam risco de ficarem com frio, e ficarem triste assim. E não era bom
estar triste. Não era nada bom tristeza e certeza do abstrato. Porém o bom de
tudo isso era saber que as coisas sólidas não eram as mais esperadas no mundo
de Sofia. Deviam ser porque lembravam eternidade. Lembravam coisas duradouras.
Uma pedra de gelo estava bem ali na mesa inda’gorinha! De repente virou bolha d’água.
E já não estava mais.
Fantasma, o Estado de Plasma. -Vovô! Tem um fantasma no sótão da casa. -Ora! Como pode ser se a casa não tem
sótão? -Vô, é que o sótão também é fantasma. -Como você sabe que há um fantasma
lá? Ele veio conversar comigo. Primeiro pensei que fosse um menino cheio de
farinha. Mas era um menino fantasma. Ele me falou que viera da terra onde todas
as coisas nunca se acabavam. –Sério? Então, quer dizer que o lugar existe? -Não
vô não é que o lugar existe. Lembre-se
que não imaginei um local, mas uma máquina de fazer coisas que nunca se
acabassem. E como se não entendesse nada do que Sofia dizia. Preferiu esperar o
caos a calmaria da quinta essência. No quinto quintal enquanto isso. As plantinhas,
as melhores amigas de Sofia brincavam, cantando cantigas de roda, cujas notas
musicais se materializavam feito bolhas de sabão.
Fabio Campos, 23 de Outubro de
2015.
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