
Um dia Cecília amanheceu morena.
Os cabelos amanheceram negros, feito uma noite sem lua. A franja que não
precisava pentear. Franja que as noites de travesseiro não conseguiam nunca assanhar.
Os olhos, duas castanholas, tristes castanhos. Fez tudo como nos outros dias. Sentada
a mesa posta de sol, de frente pra dona Elvira sua mãe tomou café com leite,
comeu pão francês com manteiga Camponesa. Queijo do reino, da lata vermelha,
redonda como um coco. Não quis, porque achava muito salgado. Os dentes alvos, escovou
fazendo um sorriso pro espelho. Sorriso com pouco riso e muito pensamento. Pensasse
talvez nas linhas do caderno em branco, sem a resposta da tarefa de Ciências. E
a escola chamou-a no toque tricúspide da sineta. E correu aos átrios do pátio.
Os ventrículos do ventre moreno na blusa voando. Cantar, rezar, dizer bom dia a
todos. Duramente concluiu que Eduardo amava mais jogar bola que qualquer outra
coisa. Era uma realidade que tinha que aceitar se não quisesse mais conflito do
que já lhe havia proporcionado.
Os bicos dos albatrozes podiam, somente
eles podiam. Navegar o mar suavemente pondo as asas no fio do horizonte. A
ponta das penas, a ponta das patas, riscando a areia. A calça jeans, a bolsa de
livros às costas, o tênis saltando os riscos da calçada, como quem com os pés tocasse
um piano imaginário, gigantesco. E a música tempestuosamente tocando o ar. Uma
a que os ouvidos escutavam: Mississipi, e outra que dentro da cabeça rememorava:
Aquarius. Não havia necessidade que as ideias fossem compatíveis com a
realidade. Não era preciso que tudo combinasse com a paisagem. Determinadas
coisas estivesse séculos de anos atrasadas. Outra história sua tinha sido
inventada. Cada vez mais se convencia que aquela, vivida realmente, não passava
duma cópia completamente cheia de falhas, tanto quanto a primeira. O filme da
moça dançarina era um passado sempre presente. Uma sombra boa de abraçar, de
deixar se envolver. O homem de terno, encostado no poste da esquina. O som da
música. Já não estava mais lá.
Encontrou Rejane conversando com
Eduardo. De melhor amiga passou a pior inimiga. A troca de olhar meloso entre
eles. Foi flagrante ver a sirigaita praticamente se entregando nos braços dele.
Os dois ali sozinhos, distante da turma. Ambos deviam-lhe satisfação. Ela,
porque considerava amiga. Ele, porque, quer queira quer não, namoravam. Se não
fosse algo sério, pelo menos estavam ficando. Prometera mais dias, menos dias namorariam
de porta.
O calçamento da rua um abismo
negro, sair da calçada podia significar o fim. Precipitar-se num turbilhão de sentimentos
num buraco negro, trevas, e o fim. A tempestade inevitável, os homens, eles é que
não perceberam os sinais. Nunca fora indecifrável. Enigma onde havia apatia,
ódio, volúpia se precipitando. Havia um homem num Corcel 73. O homem a chamou queria
saber o nome daquela rua. Era um negro enorme, tinha os olhos vermelhos, como
se tivesse chorado. Talvez por causa da fumaça dum cigarro branco, amassado.
Queria saber quem morava na casa número 175 da esquina. As feições daquele
negro não era de todo estranha. Talvez o tivesse visto no terreiro da casa do
macumbeiro que morava ao lado do cemitério São José no sítio Barroso. No dia do
sepultamento da tia de Rejane o viu. O alienado continuava olhando pro céu, comentava
a respeito das nuvens. Falava das nuvens como se fossem moças que desfilasse
sua beleza e juventude pela tarde. Despudoradamente sonharia com suas curvas
desnudas. Fatalmente pediria perdão ao vento, a montanha, ao pé de coração da
índia. A cigarra, no cantar, acabou confundida com um pardal. O toque duma
viola lá longe, veio passando por cima das colchas coloridas no varal do
vizinho.
A moça ruiva de cabelo lindo, cantava música triste que falava do amor que sentia pelo Mississipi. Uma gaita, a guitarra, a calça boca de sino, trouxe tudo de 1977. Perturbou-se pele, mente e coração lembrando de Aquarius. E sentiu frio até a alma. Um frio salubre abrindo feridas antigas, abrindo na pele cortes que se pareciam vaginas. E eram cortes de facas de cabos pretos, azuis e branco que caiam de noite imediatamente sumindo, pra surgirem no raiar do dia. Um doce poderia se tornar amargo, não sendo doado com muita esperança podia travar na boca. Necessitava de um motivo pra aceitar a realidade, por que se apresentava inexoravelmente irreal. Absurdamente inadmissível. Inadmissivelmente absurda.
A moça ruiva de cabelo lindo, cantava música triste que falava do amor que sentia pelo Mississipi. Uma gaita, a guitarra, a calça boca de sino, trouxe tudo de 1977. Perturbou-se pele, mente e coração lembrando de Aquarius. E sentiu frio até a alma. Um frio salubre abrindo feridas antigas, abrindo na pele cortes que se pareciam vaginas. E eram cortes de facas de cabos pretos, azuis e branco que caiam de noite imediatamente sumindo, pra surgirem no raiar do dia. Um doce poderia se tornar amargo, não sendo doado com muita esperança podia travar na boca. Necessitava de um motivo pra aceitar a realidade, por que se apresentava inexoravelmente irreal. Absurdamente inadmissível. Inadmissivelmente absurda.
Cecilia pediu ao moço para lhe
deixar em paz. Mas quanto mais pedia mais ele a importunava com perguntas, porque tinha certeza que não estava bem. Nunca
estivera tão bem, e não seria ele com sua cara de pateta que ia colocar em
ordem mais de quinze anos de desordem. Pássaros vinham voando, em câmara lenta
traspassava-lhe. Inevitavelmente abriam buracos enormes no peito,
arrancando-lhe costelas e deixando sombras e pedaços de asas sangrentas. E homens
bêbados que não podiam beber porque tomavam remédios controlados, se excediam,
se descontrolavam. E dançavam no meio da rua uma dança estranha, sem medo. E iam levados pela cascata de paralelepípedos em brasa e larva, caindo no vazio.
E o sol não sendo mais que uma bola de boliche quente dizendo calafrio e náuseas. O alienado
estava esperando o cometa passar. Continuava parado, olhando o planeta, dizendo
cores que não tinham textura, flutuava no nada. E o gosto na boca era de folhas
de papel amareladas, como documentos velhos escritos em línguas que ninguém
conseguia decifrar. Compreendia apenas o significado por trás do gesto ou das
intenções veladas.
Cecília entrou na sala do 2º ano,
foi até a carteira de Rejane, agarrou-a pelos cabelos. As duas se engalfinharam.
Foi preciso que o professor interviesse. A sala virou balbúrdia. E tudo era como
se estivesse meticulosamente predestinado a acontecer exatamente do jeito que acontecia.
O outro jeito era morte. No interrogatório na diretoria todos tiveram direito a
falar. Ninguém ficou convencido de nada. A mãe de Cecília odiou tudo: filha,
amiga da filha, professor, diretor, Eduardo, e odiou Deus por ter permitido
tudo aquilo. Os registros não tivera a assinatura de todas as partes. A volta
pra casa foi aquele outro inferno. No retorno um cavalo de ferro em
brasa, as patas incandescentes deitando larvas no leito da rua. Os meninos feitos
de gelo brincavam, sem a íris dos olhos donde vertia lágrimas de sal e mercúrio.
E o rosto de areia em pedaços caindo, cada vez que as patas do corcel batiam
com mais força no granito incandescente. O mau ficava visível na claridão dos
dentes, do sorriso falso da caveira sobre o animal, cujas costelas se confundiam com o fundo
negro. O cavalo e o bispo, de vidro, devagar descia a escadaria do castelo.
Cecília em transe ia pra quinta
dimensão. As quatro já existentes - altura, largura, volume e tempo - se
aglutinavam dentro da sua cabeça. A
quinta se fazia presente toda vez que ocorria a êxtase psicótica. Tristeza e ódio, não
conseguia tocar em nada apenas sentir. Espessa se sobrepondo, no espaço, onde nada era grave, nem havia gravidade, de galáxias
muito distantes, tão longínquas que não podiam nunca ser vista da Terra. E enquanto
houvesse mundo. Sempre haveria coisas pra se resolver entre ele e Cecília.
Fabio Campos 06 de novembro de 2015
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