Tinha um menino olhando. A mulher
porém, não o via. Descendo do carro, pegou pacotes no banco da frente, levou pra
dentro, voltaria pra pegar os que ficaram. Não se dava conta que era observada.
O pensamento ia longe, cheio de tantas coisas, tanto, que o entorno era
esquecido. Mentalmente listava os ingredientes do bolo que ia fazer. Mas o que
faltava mesmo? Faltava ainda a manicure, o cabeleireiro. Por Deus! Carvão pra
churrasqueira... Sabia que tinha esquecido algo... O menino sorrateiramente
pulou o balaústre do jardim. Aproveitando a porta aberta entrou na garagem, e
ficou aguardando o momento certo.
A estrada de todos os dias agora
estava moderna. Perto de três décadas já se passara, desde que fora plainada e
ganhara tapete negro de betume agora recrudescido. Mas nem sempre fora assim.
Houvera dias de pouca glória, de vastidão, de seca, e toda tristeza do mundo um
dia já habitara ali. Ó tristeza, pra onde foste habitar? Pouco a pouco
empurrada, pra bem distante, indo embora até sumir lá longe. Pra onde os olhos
gostariam muito de ir novamente encontrar. Estrada de chão batido, de costelas
de vaca, de carro de boi. De pouquíssimas coisas que tivesse vivas cores, onde os
olhos pudessem descansar daquela aridez. O curral? Onde foi parar o velho curral, de
paredes desmoronando? Uma nesga de construção de alvenaria. Um canto de sala,
um resto de cimentado dizendo já fui. Já tive valor. Abriguei gente, era
família numerosa, infelizmente foram embora, me abandonou. Já não servia pra
mais nada desde aquele tempo. Uma cancela também velha, torta, descadeirada. Um
cercado caindo aos pedaços. Uns arremedos de estacas esturricadas, arame farpado
enferrujado, retorcido. Como se o que restava ali tivesse sobrevivido a um
ataque nuclear.
Tudo dava dó de ver, de sentir, de estar lá. E novamente estava. Sempre que quisesse ia até lá. Era só querer, e sempre queria. Pois, apesar de sofrida, boa era aquela lembrança. Capoeirão vasto de ver, de apertar os olhos de tanto sol. De suor pingando, gado magro pra apartar. Os irmãos se revezavam no serviço brabo, um a cada dia da semana. Chocalho batendo seco, seu badalo compassado, marcado no passo do casco bipartido. Uma coisa dava para perceber, no vasto ambiente não se via uma única embalagem de plástico abandonada. Descartado ali somente o que era do próprio sertão. Seixos, ossos, gravetos, pedras de bolandeira, garrancho de catingueira, tacos de palma.
Tudo dava dó de ver, de sentir, de estar lá. E novamente estava. Sempre que quisesse ia até lá. Era só querer, e sempre queria. Pois, apesar de sofrida, boa era aquela lembrança. Capoeirão vasto de ver, de apertar os olhos de tanto sol. De suor pingando, gado magro pra apartar. Os irmãos se revezavam no serviço brabo, um a cada dia da semana. Chocalho batendo seco, seu badalo compassado, marcado no passo do casco bipartido. Uma coisa dava para perceber, no vasto ambiente não se via uma única embalagem de plástico abandonada. Descartado ali somente o que era do próprio sertão. Seixos, ossos, gravetos, pedras de bolandeira, garrancho de catingueira, tacos de palma.
A mulher agora falava ao telefone
móvel, ia até a cozinha, voltava. No sofá a bolsa, os pacotes, os óculos, a
carteira aberta. Através da janela, sem ser visto, o menino observava. A noite
ia caindo, ajudando com isso o observador intruso a concretizar seus atos, sem
ser importunado. Alguns transeuntes passavam pra caminhada vespertina, trajados
em seus colantes, calçados em seus tênis próprios para marchas longas. O velho vendedor
de doces com seu chapelão de palha, todos os dias àquela hora retornava,
pelo mesmo caminho A oferecer sua variedade, a base de açúcar: goiabada em
pasta, em calda, em postas. Doce de leite, doce de manga. E sucos de graviola,
e mangaba, e umas frutas exóticas chamadas kiwí e açaí, propagadas como ótimas,
energéticas. Aos homens maduros pregoava como estimulantes sexuais. Depois viria
o vendedor de mungunzá com divulgação difusora, numa gravação a voz de falsete, o
locutor apregoava as maravilhas da iguaria do Tony. O vigilante do posto de
gasolina, nem ele, homem treinado pra ver o que os outros não via, se quer
percebeu que algo errado se sucedia. Seguiu levando sua bolsa de companhia
sub noturna, contendo casaco, garrafa de café, sua arma de fogo uma bíblia. Os
meninos retardatários da escola brincavam de correr. A não perderem de vista os
jardins pra tirar uma rosa, um abrolho. No entanto ninguém notava o
menino furtivo espreitando pela janela.
Placas de sinalização implacavelmente
agredidas. Sem conseguissem dizer o que queriam, diriam apenas placa. Tem coisas
que de nada adiantava achar ruim. Mais uma borracharia foi aberta, justo
na entrada da rua. A mulher não achou nada legal. Viu agressividade, aspecto de
lixo que ficaria o entorno e o frontespício da capela. Pneus velhos iam se
amontoando na calçada da igreja. Comprometiam a bela vista. A casa da mãe. O homem sujo de graxa
argumentava, sem saber de nada, sem nada dizer, que precisava ganhar dinheiro,
que era um cristão, um filho de Deus, um pai de família como outro qualquer.
Mesmo assim não convencia, não amolecia a dureza de coração da mulher. Os
homens usavam refugos de pneus para sentar, com um pedaço de tábua improvisaram
um tabuleiro pra jogar dominó. A depender da hora e do dia, o cenário mudava. A
tardinha tinha meninos andando de bicicleta, pra noutro instante uma roda de
operários a revezarem uma garrafa de aguardente. O borracheiro, nas horas vagas, por
trás dos óculos raiban ficava olhando a vida e os carros passar. Os carros, predador espreitando sua presa.
O boné sem cor definida atolado na cabeça, impregnado de graxa e óleo,
assim como todo o corpo, bem como suas vestes. Tomasse banho pra ir à missa do
galo levaria o perfume dos motores de combustão pra igreja. Seria sua única
oferenda.
A filha da mulher, àquela hora sempre
voltava da faculdade. Finalmente a esperança de que alguém pudesse flagrar, e
surtar os planos vis do menino espreitador. O barulho da
batedeira vindo da cozinha indicava que a massa do bolo logo estaria pronta.
Faltava os últimos retoques na árvore de natal, ligar os piscas-piscas. Eis mais uma chance do menino ser descoberto, fosse a mulher até a janela
checar as luminárias brilhantemente acesas, ela sempre fazia isso.
Não se conformava em apenas apertar o comutador tinha que ir até o jardim
contemplar sua obra, de todos os anos, no natal. Não tinha como não ir. Era o
encontro entre criadora e criatura. Dessa vez o menino seria descoberto. A
mulher surgiu no campo de visão do menino que tomou um susto. Lá estava no
meio da sala metida num roupão, o rosto coberto por uma máscara de creme que
isentava somente os olhos. Seu lindo cabelo escondera dentro duma toalha que lhe
punha com aparência de um rajá com seu turbante branco. Toda beleza esvaída,
noutra pessoa transfigurada. A bela, remediavelmente transfigurada na fera.
O homem da casa estava distante. Ao menos pra aquela situação, com ele ninguém podia contar. Tão necessário
naquele momento de aflição, no campo dos anjos. Na estrada viajando, dirigindo
um caminhão, carregado de esperanças, em melhores dias. O anjo da guarda tão
amplamente requisitado durante as orações da família devia estar muito ocupado
pensando que ali sua presença fosse dispensável. Afinal nada de interessante
acontecia ali. A boleia, pra espantar a tristeza, enchia de música. As
lembranças ainda que magoassem mesmo assim eram bem vindas. Mas como espantar
tristeza ouvindo “O Toque de il Silênzio”? Aquela triste melodia, trazia o
passado, lembrava de quando conheceu a amada, na festa da padroeira, no
encerramento das atividades do parque de diversão. A última volta na praça, o
último beijo, furtivo até. O menino Jesus quietinho na manjedoura, rodeado de
São José e de sua mãe serenamente pensativa, pensava: “-Ele veio pra salvar o
mundo.” O seu plano de salvação incluía a mulher vaidosa, a filha voltando da
faculdade. O marido na estrada, o menino que planejava má ação. E aquele considerou que era hora de entrar em
ação.
Um vidro de perfumes aberto escapou pela porta do quarto aberta. Espalhou
vigor de uma manhã de sertão por toda casa. O quadro da ponte, a cascata congelada, o frio da
alma que a tudo via, via e sentia. O cheiro de bolo no forno. A longa cinza
cilíndrica do cigarro, sozinho consumido no cinzeiro. O chuveiro, por trás da
cortina de plástico, o sabonete percorrendo o corpo nu. No box do banheiro, uma canção de natal num rum rum-rum-rum, de lábios serrados, que se saísse em
palavras sairia “noite feliz” repetidas vezes.
O menino pegou a carteira, a
bolsa, o telefone móvel, e um litro de uísque no bar perto do centro.
Rapidamente fez o caminho de volta. Uma vez na rua foi encandeado pelo farol
da moto do vigilante noturno na sua campana. Soube na mesma
hora do que se tratava. Sacou o revólver, ordenou que o menino parasse,
abandonasse os pertences, deitasse no chão. O menino não lhe
atendeu. Um estampido, um projétil a interceptar a fuga. Fez estrago numa vértebra lombar. Levado ao hospital, entre a vida e a morte.
Sobreviveu. E veio natal. Outros natais viriam. Da mulher, do homem do caminhão, da menina universitária,
jamais seria o mesmo. Até nunca mais. A noite feliz do menino, muita gente se
confraternizando. Presentes, sendo
abertos, passando de mão em mão. Todos abraçavam o menino. Faziam-lhe cafunés,
no fulgor dos ânimos rodopiava a ele, em sua cadeira de rodas.
Fabio Campos. 14 de Dezembro de 2015
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