Mestre Lucindo, ainda se
recuperava do trauma de ter descido as portas do inferno. Por mais dias de vida
que vivesse, jamais esqueceria aquelas cenas. O mundo debaixo de um céu de lama
que se contorcia, viscoso, asqueroso. Como um coração dilacerado dum peito
aberto. O cheiro não era dos melhores. Aquele aroma só sentira uma vez, quando fora
visitar o filho que estava na cadeia. Acusado de conspirar contra o rei, ganhou
a clausura. Por não aceitar a exorbitância de tributos, que ele e os demais
camponeses das searas de Chevalier sofriam.
Houve realmente uma rebelião. Na
semana da colheita do trigo, um bando de homens e mulheres se revoltou, ao
saber que daquele dia em diante as refeições seriam descontadas dos parcos vencimentos do final de cada jornada. Já não bastava tanta desgraça. A família topázio, e seu mundo
inexoravelmente amarelo. Onde tudo parecia improvavelmente real. Uma casa
solitária no meio do trigal. Os meninos de cabelos de ouro. As roupas amarelas,
o sol a atravessar-lhe literalmente os corpos. Sem que os tornassem, no entanto, translúcido. O vento passava e tangia os cabelos que açoitava o ar. A
assoviar um silvo duma nota longa, cortantemente
indecifrável.
Os meninos amarelos, os pais
amarelos, da casa amarela. Solitariamente triste. E a mãe de amarelo e preto.
Lucas e sua bicicleta sonhavam sonhos que falava de dias melhores. Não importando
se fossem amarelos, desde que fosse melhores. Ninguém sabia que parte do mundo era
aquela. O gigante de Avor sabia. As horas, nunca, jamais passavam. O sol
estatelado no meio da planície ficava olhando pra eles, intrigado. Visivelmente
incomodado com a indiferença. Surpreso da capacidade daqueles, de ficarem ali,
naquele oco mundão. Sem coragem pra outra coisa. A não ser, viver de amarelo,
unicamente.
O pai disse bem assim: ‘Meu filho
não é nenhum criminoso, não merecia estar preso.’ Imaginava como era estar
preso, sem poder beber aquela abundância de dourado. Temia que acabasse
definhando, que adoecesse. Se isso acontecesse, fatalmente morreria, de carência
de luz no organismo. Os pensamentos lodosos lhes iram consumir as carnes. No
começo, fazia exercícios, rezava três vezes ao dia. Estabeleceu mentalmente a
que horas achava que era bem cedo, que hora sentia que era meio dia, e que
horas o sol se punha. Não ficaria louco se exercitasse sempre, a mente, os
músculos. Era perfeitamente normal, imaginar protuberâncias de amarelo, mesmo
no escuro. Conseguia projetar de sua mente, um raiar do dia. A cada manhã na
parede lateral da sela, um sol surgindo de mansinho, e seu calor invadindo e clareando tudo. As quatro paredes, e o
teto viravam paisagens. Cada uma daqueles quadrantes davam-lhes magníficos
cenários de visão. O mar, lá ao fundo, a areia fria, a ressaca, o
cheiro de sal, de frutos do mar. Gaivotas voando, andorinhas, pelicanos,
mergulhões mergulhando. Ondas quebrando, pássaros piando. Um avião passando lá
no alto, silencioso, deixando pra trás flato de calda. Imenso flato de fumaça
branquinha. Como estivesse se inventando de laçar o mundo, com um cordão de
algodão doce, sem ser doce. Dali a pouco jamais existira. Diluiria como perfume
que o ar maldosamente estrangularia. Um navio da marinha mercante, riscando
bravamente o horizonte, um nada longe assim. Numa mistura de preto, ferrugem e vapor.
Uma ‘maria fumaça’ metida a sereia. Levando no ventre água de coco envasada,
doce de leite e goiabada em potes. E umas caixas com uns tubos brancos com o
formato cilíndrico que lembrava o pênis humano, mas que não tinha a menor ideia pra
que servia. Talvez fossem porta-escovas, ou outra coisa qualquer. Lá ia a nau, com
seus homúnculos. Escrevendo com seus diamantes derretidos incrivelmente
piscantes, sobre o espelho fluído. Encantando e desencantando peixes, polvos
gigantes, que povoaram sonhos de criança.
A barba crescera, tornando ele
mesmo noutro. Os cabelos desceram as escápulas. As sobrancelhas
arquearam-se acinzentadas. As mãos perguntavam ao rosto: ‘Quem é
você?’ 'Não lhe conheço’ ‘Pra onde foi você Rafael?’ Lembrou uma tarde quente
na casa de tio John. Ele estava de pé. Na pose que gostava de ficar. Como se fosse tirar um retrato. E Tagor no coração guardava aquela lembrança, a mão esquerda com o dedo polegar pra
dentro da calça, os dedos daquela mão encostado no cinto. Fumava. O cigarro
entre os dedos da destra, na frente do rosto, aguardando enquanto falava. O rosto virado pro lado, um meio sorriso no
rosto, porque era uma tarde dourada. Uma alegre tarde de sábado. Os cavalos ia
trotando sobre o paralelepípedo. Rafael sentara com o encosto da cadeira para
frente, numa posição que lembrava um cavaleiro em sua montaria. Os braços cruzados no respaldo. O cabelo até
que estava alinhado pra quem sempre negligenciava esse detalhe. Émile esperava
que ninguém tocasse, no assunto intocável. Mas como sempre, as forças do
universo conspiravam contra desejos escusos. Lucas buscou os olhos de Derick,
todo esparramado no sofá, e disse: O rei mandou prender Rafa pra manter-nos ocupados
com esse assunto, enquanto maquina sobre
como decifrar o mapa do tesouro.
Estava mesmo era no tempo de
lembrar que outro problema havia, era verão. Toda manhã lá vinha ele.
Inescrupuloso, inditoso, implacavelmente destruidor. O círculo de fogo que
devorava tudo que via pela frente. Seria questão de dias, pra que houvesse
escassez de alimento. O inferno estava instalado. Com a crise da falta d’água,
e alimento, o que seria de todos? Ir pro futuro? Talvez fosse uma boa ideia. Levasse em consideração que a máquina teletransportadora tinha suas
limitações. Imagine levar a, um milênio adiante, uma seara de trigal com uma
casa amarela, uma montanha de três mil jardas de altura, mais de duas mil
cabeças de gado. Sem falar na casa de farinha, as mulas, os cavalos. Ninguém
sabia qual seria a reação do gato, do cachorro, dos passarinhos, ao chegar à
nova morada, para onde pretendiam ir. Podiam até morrer. Ir pra um lugar que ninguém se arriscava
imaginar sequer, onde era.
Aquele lugar Tagor só tinha visto
mesmo em filme. Uma película que passara nos fundos do armazém de Seu Cícero.
Os meninos todos sentavam no chão batido, úmido. Os fundilhos das calças
ganhavam uma mancha de barro de louça. Os adultos sentavam em tamboretes. E os
idosos em preguiçosas. O fim do mundo seria daquele jeito? Perguntou-se. O céu
jamais merecia tal nome, de tão terrível aspecto. Fumaça neblinando a terra.
Chegava a faltar ar nos pulmões só de ver. Uma só plantinha não mais existia.
Pra onde olhasse metal pesado, e prédios sujos, pichados com sangue. Como se uma guerra
acabasse de ter ocorrido. Cenário de destruição. Lixo por toda parte. E as
pessoas caminhavam nas ruas como entorpecidos. Sem saber ao certo o que
buscavam. Não cabia poesia ali. Mesmo assim veio-lhe, Manoel Bandeira. Numa
aula de português, a professora recitou-o um dia: “Vi ontem um bicho/ Na imundície do
pátio/ catando comida entre os detritos/ quando achava alguma coisa/ Não
examinava nem cheirava/ Engolia com voracidade/ O bicho não era um cão/ Não era
um gato/ Não era um rato/ O bicho, meu Deus, era um homem.”
Se alguém se cansava de viver,
tinha direito a morrer dignamente. Pelos corredores dum hospital, a uma sala era conduzido. Era vestido num pijama. Seria aquela as vestes pra morrer. Era deitado numa
cama. Uma injeção letal aplicada nas veias. E enquanto à droga fazia efeito, a
sala toda se transformava num mundo maravilhoso, limpo, jardim floridos, água
corrente em rios límpidos. Céu azul. Música clássica de fundo, cada vez mais
alta. E era o fim, de mestre Lucindo. Enquanto isso, Rafael Bertrand, permanecia
no ventre da baleia de aço. Bem sabia, da solidão, do escuro, das trevas
onde se achava. No calabouço de sua alma, uma
certeza tinha, que sozinho não estava. Quanto tempo mais iria permanecer
ali? Não sabia. Tempo suficiente, pra reviver, tudo o que de errado, até então, fizera na vida. Rafa o melhor amigo de Lucas, assim como o Jonas da Bíblia. experimentava o
amargo gosto de entrar na escuridão de si mesmo.
Fabio Campos, 28 de outubro de
2016.
P.S. A gravura que ilustra este episódio é da praia de Porto de Pedras (Fevereiro de 2007)