
João, o terceiro menino das
bicicletas, deu-se ao trabalho de explicar aos membros da assembleia que Tagor
continuava vivo. Simplesmente porque não era ele que estava lá, no dia da grande
explosão. E num imenso telão projetado na parede da capela do cemitério foi
exibido aos presentes um vídeo, feito naquele dia. Tinha como intenção dirimir
as dúvidas. Os abutres se espantaram assim que a projetação na parede repetiu a
explosão. As imagens se sucederam. Era um filme caseiro, amador. Primeiro a
filmagem foi passada rapidamente de trás pra frente. O míssil explodido, implodindo
em segundos. Como um fumante que engole todo o fumo duma só tragada. A nuvem de
fumaça, poeira e destroço se consumindo para em seguida deslocar o ar. Fracionar
toda matéria a sua volta. A imagem onde estava Tagor foi aproximada, e um homem
com trajes árabes se ampliou na tela improvisada. A barba negra, o turbante,
envolvendo os cabelos, o brinco brilhando douradamente debaixo do sol. O nariz
anduco, a pele bronzeada de oleosidade debaixo do céu azul, e sol de verão
daquela tarde oriental.
Uma mulher muito linda seminua.
De pé sobre uma tumba que tinha no alto uma estátua de netuno toda de bronze,
cujo tridente enlaçado por uma imensa serpente escamada com a boca aberta
exibia a língua fendida laureada de duas presas ameaçadoras. A moça despiu-se
totalmente. E admirava sua própria imagem refletida na lápide da tumba. Aquela
pele alva, debaixo do sol. Sem pudores, sem medo de ser provocante. O cabelo
incrivelmente não esvoaçante. Por que, um só fio não se movia ao vento? Seria
real aquela criatura? Talvez não passasse duma estátua, uma deusa, de Vênus,
uma Afrodite. Fruto da imaginação de muitas noites insones. De mente
perturbada, doentiamente, febril. De frio e calafrios. Os seios afrontavam o
vento. Desafiavam todas as bocas dos zumbis a pronunciarem um único “ai!”.
Aqueles cabelos inquietavam. Não dava pra entender porque não esvoaçavam ao
vento. Os lábios levemente abertos, como se fossem sussurrar algo
incompreensível aos céus. De certo seria mais um desafio. Outro enigma. Alguém
seria capaz de encontrar tão rara beleza noutro ser? Aquele ventre de mármore. Transpirava
e movia-se tão sutilmente que somente se percebia se se estivesse atento. Como
podiam conter tão ousados caminhos, de pelos? E o cheiro desprendido dali, mas
que alucinava, quem se aproximasse se apaixonaria. Desavisadamente, fatalmente
morreria por asfixia. Do lado que Tagor estava a visão que tinha era as costas,
as belas nádegas, as pernas esculturais. Refletida via-se as espáduas, o ventre
o púbis, as coxas bem torneadas. Do jeito que estava estática, Andrômeda foi
arrebatada por Equuleus. O cavalo pretendia fazer amor com a deusa. E eram
ambos do mais puro desejo sexual. As flores das catacumbas desmaiadas sem
cheiro, nada tinham de orgânico. As cores desgastadas por conta de muitos dias
de sol. Os batentes de granito polido, guarnecidos de lágrimas de parafina,
branca, endurecida, das velas votivas, amplamente queimadas. O reinante
nauseabundo cheiro de defunto.
A mulher nua, montou o cavalo.
Desaparecera das vistas dos presentes a galope rumo ao sol, se equilibrando na
linha do horizonte. Os raios encrenqueiros permaneceram deslizantes suavemente
sobre os fios dos postes. E os bulbos das lâmpadas retiveram buquês de rosas roxamente
cintilante. Um cheiro de amor invadira o ar. E os relinchos voavam abraçando o
infinito, ardentemente abrasadores, ecoando por toda constelação de Andrômeda. Era
preciso saber quais decisões haviam sido tomadas. O grande livro de atas ainda
não tinha sido fechado. Nada até o presente momento, dera sinal de que se
chegara ao final da reunião da grande cúpula. A espada de pedra de Lacerta
estremeceu os pilares, dando a iniciar tremendo terremoto. E o gume mudava o
tipo de material de acordo com o estado de seu humor. Ferro se ficava séria,
bronze se zangada, inflamada de chamas, se rancorosa. Era como estava naquele
exato momento, cheia de ciúme de Equuleus. O dragão ficara totalmente vermelho,
naqueles momentos de puro ódio. Avançou em ataque sobre o cavalo. A espada atravessou-lhe
o peito ferindo mortalmente. O sangue puro ouro, em estado líquido. Ao
respingar no altar de Delphinus cada gota se transformava num esqualidus que
nascia inteiro, completamente pronto pra luta. Os seus olhos escureceram na
parte branca. Todos os lírios do cemitério alvos de medo. Os patos e os cisnes do
lago escureceram as plumagens. Todas as crianças tiveram medo daquela cena. A
água antes límpida e translúcida tornou-se vermelha como sangue. E um maremoto
se formou atingindo mais de mil metros de altura. A força da água arrebentou a
muralha do castelo de Delphinus.
Foi grande a destruição. Os
meninos puseram a brincar com os corpos dos guerreiros mortos, petrificados. Um
que parecia um samurai tinha uma espada erguida à cima da cabeça. Apesar da
calva, possuía longo rabo de cavalo. A armadura cobria todo o peito, e os
apetrechos de guerra trazia todos, aderidos ao corpo. Um punhal com cabo de
madrepérola e pedras preciosas encravadas na empunhadura. A barragem feita com areia lavada. As pedras
sobrepostamente quadradas. As mãos dos meninos engrelhadas de tanto mexerem com
água. Os brinquedos todos molhados. Teriam que ficar o dia todo ao sol, antes
de serem guardados. O forte de pedras com o impacto da água veio a baixo. A
roupa de banho com as listras azuis e brancas. O desenho da boia com a âncora,
e a corda bordada ao peito. O boneco inflável eternamente sorriso pregado no
rosto. Sem nunca conseguir ficar triste, mesmo que ficasse sozinho.
A morte de Tagor fora
esclarecida. Na verdade não houvera morte, não dele. Um árabe muito parecido
com ele morrera na explosão do míssil. Houve uma grande tempestade depois
daquele dia. Se tudo desse certo, em breve seria outono. Um grande abraço de
paz abraçava o mundo. Aconchegante e morno como a parte interna das mãos e dos
braços, e doce feito gineceus de lírios, e musical como o amanhecer de inverno.
O clima de azul, de flores e perfume da
seiva aromática do tronco de ipê, monstruosamente alto. As janelas com suas
cortinas leves balançando suavemente ao vento. E entrava sacudindo e abraçando
as poltronas vermelhas da sala tristemente solitária. A saudade de tantos
momentos bons passados juntos. Tagor e Antonieta eram puro amor, cavalo e
deusa. Pedra e aço, ferro e bronze.
Os meninos passeavam na praça
onde nasceram e se criaram. O parque infantil tinha cores alegres, os
cavalinhos, os carrinhos, o carrossel. Os meninos gostavam de aventura subiam
nos pés de fícus como João escalara o pé de feijão. E sumiam por entre as
folhas. Esperavam encontrar um céu onde tivesse um gnomo sentado numa mesa
imensa que possuísse móveis enormes. Não era, no entanto, hora pra conto de
fábulas porque Tagor tinha um crime nas costas. Aliás, um não dois. O roubo do
mapa do tesouro, isso quando era pequeno. O outro crime esse sequer lembrava. Esperava
que Deus tivesse atirado nas profundezas do mar.
Depois de fazer amor, os amantes exaustos,
ficaram caídos na praia. Ao recuperar alguma força o cavalo pôs-se a pastar a
relva verde ao cair da tarde. Enquanto as ondas quebravam na areia produzindo a
mais bela das canções para os ouvidos enamorados. A deusa, o corpo nu estendido
sobre a areia, o cabelo molhado. Sonhava com tudo que uma alma satisfeita é
capaz de sonhar. Cansada não tinha força para qualquer tipo de reação. Se o
cavalo fizesse nova investida, condições nenhuma de reagir. Simplesmente se
entregaria.
Fabio Campos, 10 de outubro de
2016.
P.S. A gravura de ilustração deste Conto é de minha querida mãe Dineusa Bezerra a altura dos seus 90 anos. Num dia qualquer do mês de setembro, logo no início da primavera deste ano de 2016.
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