Daria pra imaginar um mundo
vermelho? No frio deserto siberiano, talvez. O gigante de Avor mansamente estalava
os dedos, polegar e médio. Como se aquilo, pudesse trazer de volta, um tempo de
muito lá trás. E olhava pro indefinido horizonte, com tristeza olhava. O vento
gelado tocando-lhe o rosto. E tudo voltava, como num velho sonho. Uma fileira
de carruagens puxadas por esplendorosos cavalos. Com suas crinas longas,
assemelhadas a cabelos de mulher, dama, da taverna de Chavallier. Avançava planície
de gelo à dentro. Apesar da tempestade, cavalgavam com tanta pompa e
desenvoltura, como de soldados indo pra mais importante batalha de suas vidas.
Dava perfeitamente pra se ouvir o flop, flop dos cascos enterrando e
desenterrando-se dentro do tapete geladamente alvo.
De um amontoado de peles de
búfalo brotou um rosto de homem. O cabelo escorrido e ralo de fios galegos
descia por detrás das orelhas. A boca era uma fenda finíssima, como que cortada
à faca. Adornada dum bigode escasso, como o cabelo da cabeça. Sobre os olhos
duas pregas quase impedia de ver o quase azul da íris dos seus olhos. A pele de
tanto frio amareladamente desbotara. Da barba só havia vestígio por debaixo do
queixo. As mãos eram como as de Tagor. Grandes, de dedos nodosos, talhada de
cicatrizes, e contavam histórias. Morgana Cibeli não saía nunca de sua cabeça.
Ainda mais quando ia pelo vale da morte. Lugar dos espíritos maus. Sabia
exatamente em que momento eles atacariam. Espreitavam e esperavam o melhor
momento.
Um menino sentado à mesa. Os
braços apoiados sobre o tablado, os olhos pousados sobre um papel iluminando
seu rosto. A luz tênue vinha dum candeeiro agarrado numa forquilha brotada do
tapume de barro. A casa era rústica, de taipa. As telhas velhas, agora,
cheiravam a barro molhado, depois da chuva da tarde. Trovoadas exercia um poder
enorme sobre os seres. Assanhavam-se as
formigas pretas fedorentas a bosta, os imbuás saiam dos seus casulos, as
caranguejeiras, também as cobras. Vitorino tinha jantado cedo, à boquinha da
noite. Comera cuscuz com uns pedaços de galinha frita. Uma bela duma xícara de
café cuja fumaça subia esquentando o bico da venta. Depois acendeu seu cigarro.
Deitado olhava pro breu das telhas, de repente sentiu uma coisa fria subindo
pelo braço. Pois não era uma cobra? Dum salto estava fora da rede. Jamais imaginou que contando com mais de
sessenta anos ainda tivesse tanta flexibilidade no corpo alquebrado. À olho de
machado, num só golpe, matou a danada. Nem bem deitou na rede novamente, e
outra víbora, passou por suas alpercatas de couro de boi, e teve a mesma sorte
da primeira. Desta vez um golpe certeiro apartou a cabeça do corpo. Nunca mais,
Tagor esqueceu aquele dia da sua infância. Da noite tenebrosa de trovoada e
cobras, jamais conseguiria reconciliar o sono.
Dona Minerva subia à pé, pra vila
dos Bezerros, cinco vezes por semana. As sextas-feiras era dia do sacrifício
aos mortos. A porta do santuário se enchia de gente para os holocaustos. O
sacerdote ficava debaixo duma tenda coberto com um manto escarlate, as pernas
cruzadas as mãos espalmadas rente ao rosto, os olhos fechados. Enquanto gemia,
o sol tremia. As nuvens cansadas de tanto esperarem boas aragens. Acabavam
desistindo, e pediam ao vento que as levassem para bem longe dali. Desenganadas
da vida iam pra outras paragens, desenhar outros céus, levara esperança pra
outros povos. Onde meninos brincariam com elas. Os eunucos com enormes abanos.
As sacerdotisas punha incenso na pira, recitavam rezas emitindo sons guturais.
Os homens cobertos de cinza, totalmente nus, mergulhavam seus corpos untados de
óleo, numa espécie de tonel cheio de sangue de carneiro. E deitavam-se por
terra com as costas e cabeça no solo, a cabeça raspada. De dentro de uma tenda,
surgia um, que só podia ser o feiticeiro. O cocar sobre a cabeça era feito com
um falcão empanado, cujo bico ficava apontado pra frente. Seus olhos tinham
sombras negras e o brilho daqueles olhos era de alguém em transe, sob efeito de
erva alucinógena.
De repente uma nuvem de
gafanhotos surgiu, no horizonte. O homem do casaco de pele de búfalo, deteve o
comboio. Posicionou-se a frente da primeira carruagem com uma tocha acesa e um
punhal, cortou uma mecha de cabelo da crina do primeiro cavalo e tacou fogo. O
fio negro de fumaça subiu ao céu e a nuvem de gafanhotos começou a dividir-se
em duas colunas, passando de largo pela caravana. Eis que esta fora a primeira
investida dos espíritos maus, do vale da morte contra Tagor. Não andariam nem
duas léguas e o segundo ataque, uma saraivada de pedras de gelo caiu
repentinamente, pegando todos de surpresa. Alguns cavalos, devido aos
ferimentos, tiveram que ser sacrificados. E o cortejo seguiu viajem. Eis que do
nada, apareceu uma mulher. Vinda da retaguarda, belamente vestida de vermelho,
imensamente formosa. Carmem Deolande o seu nome. Perguntou se podia seguir
junto à caravana. Disse que descera das montanhas, e que matara um homem, com
quem vivia, e que tentara lhe estuprar, arrancara seu coração fora. Trazia
consigo a prova de sua marginal façanha. Dentro duma bolsa de couro cheia de
gelo o órgão da vida, do amor, sem vida. Sua pele sedosa, o perfume exalado do
seu belo corpo. A fogueira crepitando, a escuridão do mundo chegando rapidamente.
Corujas rasgando a noite com seus chiados lancinantes, indo à busca da presa. A
lua se projetou no céu e sua palidez prenunciava dias muito frios, e noites de
tempestades pela frente. Debaixo da neve ainda havia capim, verdinho. Os homens
tinha que cavar muito pra tirar o alimento dos cavalos. Descansar, somente alta
madrugada.
Miguel Caravajo nascera naquela
casa. Lembrava de muitas coisas da infância. Aquela inquietação, e veio-lhe o
dia da matança dos porcos. Eis que contraíram doença séria, febre suína. Toda a vara teve que ser
sacrificada. Foi uma noite de horror. Não conseguiu dormir por várias noites.
Os grunhidos dos bichos. Por muitos dias ficou ecoando dentro de sua cabeça. O
sofrimento antes de serem mortos. Rubis de sangue, na neve. A carne tinha que
ser queimada. O cheiro de sangue e carne queimada atraiu os lobos selvagens, e
vieram dispostos a atacar. A fome, a chama que clama pela sobrevivência,
instintivamente. Aquela foi sim, uma noite que jamais esqueceria. A mãe aos
prantos, toda suja de sangue. Tagor e os irmãos, cheios de temores. O pai, com o rifle
atirando nos cães da montanha.
E eis que vinha o dia da colheita
de milho, e tudo parecia se acalmar. Os horrores do inverno se dissipavam com a chegada do verão. As nuvens, cabreiras, voltavam por cima dos telhados
espalhando sorrisos de muitas cores. O vermelho na blusa de tia Cecília. As
tranças de cabelo vermelho, as sardas no rosto sapeca da irmã de Monica. O pneu suspenso
pela corda na goiabeira ficou balançando solitário, no quintal. A boneca ficou
abandonada sobre o banco. Entrou em casa e estranhou o silêncio. Percebeu umas
pegadas, de alguém que entrara pela porta da cozinha e ia pro quarto. As cortina
languidamente esvoaçava, cúmplices dum crime. A faca em cima do balcão da pia,
suja de sangue de galinha. A mãe estava preparando o almoço. O rádio ligado, o
locutor falava de um terrível acontecimento que não dava bem pra entender o que
era. Sobre o ataque dum monstro que matara várias pessoas de uma só vez, uma
vila inteira. A menina viu um homem negro sentado no sofá. E tinha uma arma
sobre as pernas. Brincava com um talo de capim na boca. Com ternura olhou pra
garotinha. Chamou-a. A menina se recusou obedecê-lo ele levantou-se furioso. A menina
correu.
Alexandre jogava xadrez com o pai, que se distraia falando sobre como estava de saúde. Enquanto tomava uma
cerveja. O filho estudava na universidade de Boston, só aparecia nas férias. Lembrou
do tempo que Alexandre era pequeno, que gostavam de brincar de esconde-esconde
e quando se escondia debaixo da cama acabava fazendo xixi. Alexandre disse que
isso acontecia porque um dia, entrou no quarto alguém com os pés sujos de lama.
Ele só conseguia ver os pés. De repente começou a pingar sangue no chão. E ele
ficou com medo, muito medo. Sabia que aquele não era o pai. Se urinou. E acabou
desmaiando, quando acordou não havia mais nada lá. Oliver, seu outro irmão,
tinha mania de dormir e sonhar sentado no sofá. Tinha pesadelos a noite. Ele
era sonambulo. Teve um dia que saiu de casa arrastou o lençol até o fundo da casa
e foi até a cisterna. O pai chegou a tempo de salvá-lo, pois estava prestes a
pular do batente dentro da cisterna. No dia seguinte ele falou que fora uma
menina, vestida de branco, que o chamara pra irem tomar banho na piscina. No
passado aquela cisterna fora uma piscina. Acabou descobrindo que sua prima
Suzanne morrera lá, afogada por um negro psicopata fugitivo do manicômio judicial.
O homem da cavalaria pegou o
rifle chegara a hora de enfrentar um de seus mais terrível pesadelo. O diabo de
Menphis Topheles, resolvera que era chegada a hora. Tagor Fashall estava
preparado, coberto com sua pele de búfalo. Lucifer surgiu na estrada, trajava um enorme casaco negro que arrastava pelo chão. A gola fofa, tinha espinhos
de aço que furavam a nuca e pescoço, donde escorria sangue, feito cristais de
rubi, a lavar o peito, os cabelos do peito colavam escarlate no abdômen e
ventre. Os pés de casco bipartido lembrava Pan. Seus cornos dobravam-se da
testa indo até as orelhas. Os olhos duas brasas de fogo. Seu sorriso sínico, de
dentes pontudos dizia, a hora de Tagor era chegada. Tagor estava preparado
retesou a lança, bateu-a contra o escudo donde saíram faíscas de fogo. Ouviu-se um
estrondo ensurdecedor. A mais feroz das batalhas estava pra começar.
Fabio Campos 05 de novembro de
2016.
P.S. A Gravura que ilustra este episódio, é um afresco (medindo: 4x2m) feito pelo próprio autor, usando tinta plástica em parede de alvenaria. Réplica dos morros Corcovado e Pão de Açúcar no Rio de Janeiro.
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