O que se descortinava eram
telhados. Um coqueiro lá acola. Dum quintal acenava pros saguis, que saltitantes
iam por cima das casas. Araras empoleiradas, de exuberância em penas, as varandas
das cozinhas A disputarem qual mais bela nuança com as estampas das roupas
coloridas estendidas nos varais. E tudo era tão sincero, assim feito falas
feitas em casa de vó. Cena tão americanamente tropical. Algazarra de meninos
brincando, descobrindo os macaquinhos. Sol macio, amornando as coisas,
entusiasmos. Afagando os muros, valorando as pinturas, as caiações, os desenhos
floridos de tanto esmero, e talento dispensados. Os céus, de ventos que
anunciavam nuvens, redemoinho de poeira, mas não chuva. As pessoas, zoarentas circulavam
no meio da feira. Dentre eles Tagor, que precisaria vender um de seus pertences
pra comprar algum suprimento. Foi à feira do rato, pra onde vendilhões de
quinquilharias se dirigiam a comercializarem objetos de toda sorte. Uma antiga
lamparina coberta de limo, no meio de outras peças esquecida. Chegou trazendo
recordações. Candeeiro da cor de escuro. Alumiou, lembranças negras.
O cheiro de terra veio vindo,
trazendo esperanças e lembranças de dias muito velhos. Dias de tão lá trás, que
acabaram cristalizados, na paisagem da estrada do tempo. O único carro daquele
tempo ganhou estrada que era só sua. Uma estrada inteira, feita pra um único
carro andar. E no seu percurso solitário a criar histórias. De encontrar pessoas
solitárias, caminhantes. Amanacy e Aracy caminhando iam pela grande vereda que
os homens construíram pras geringonças que roncavam, andar em cima. A filha de
Amanacy ganhara dianteira. Ao ouvir, o ronco do automóvel de Delmiro Gouveia, parou
a esperar a mãe. Os cabelos falavam com o vento. Do quão era bom tomar banho de
açude falavam. Ganhar cheiro de sabão da terra, água boa de lavar cabelos, de
lavar corpos, e abrandar os medos que ameaçavam a alma. Aracy na cabeça, uma
trouxa feita de uma peça de cobertor branco, amarrado num nó feito com as
quatro pontas. Encerrado ali, ia uma jarra de louça. Uma lata redonda com
tampa, cheia de farinha de mandioca. Também uma rapadura, uns pedaços de carne
assada. Um embornal de vísceras de veado, abastecido de água friinha de dar
gosto. O chofer deu breque no monstro que roncava, bem ao lado das duas
criaturas, indefesamente surpresas. Depois dum cumprimento, a carona oferecida.
Às duas mulheres, de bom grado aceitaram. O destino, os mesmos não eram. Na
metade do trajeto ficariam. Mãe e filha indo estavam pro Sítio Umburana Doce. Pra
casa de comadre Maria Virgínia, que tivera mais um filho. O décimo segundo na
contagem total, o oitavo varão. Assistir-lhe-ia na convalescença, no
resguardo. Era sempre assim, todo ano. Uma, a cada resguardo, assistia a outra.
A paisagem deixou de ser ameaça, de vida e morte, passou a ser vista sedutora.
Boa pra deitar os olhos quase cerrados, no mundão de mata e plantações. E
correr a amamentar os sonhos. Ver crescer, até que ficassem fortes, robustos,
preparados. E caíssem na lapa do mundo, sem dó, nem pena. A se aventurarem com
gosto, como quem coloca farelo pra porco, milho pras galinhas. Amanacy mais
jeito tinha pra criar galinha e porco, do que gente. E preferia mil vezes
cuidar duma tarefa de roça de feijão e milho verde, do que suplantar arado de
carretel, linha e agulha na máquina de fiar.
Morua-ru-ani o índio do cavalo
negro, se havia sentado no alpendre da casa de dona Virgínia, dali a pouco a
tarde viria se despedir, dos seus olhos repuxados. Manancy quis saber o que o
irmão de pele buscava ali. Viera à procura de sua descendência. Era um remanescente
dos Yaganos. Da antiga tribo de índios da Terra do Fogo. Tinha esperança de um
dia encontrar seus irmãos. Buscava onde fora parar os seiscentos nativos Yaganos,
da Terra do Fogo. Os bravos guerreiros que ao tentar enfrentar o cão de Vanuatu,
na Vila Ushuaia tragados que foram pelo hálito do feroz canino. Morua-ru-ani
contou toda a história, a mesma contada de geração a geração pelos seus avós. O
extraordinário desaparecimento marcara para sempre a história deles. Foi como
se a terra tivesse engolido os bravos guerreiros. O mais incrível era que tudo tinha
uma explicação de ser. Era no vaso da Catarina que Morua-ru-ani poderia
encontrar o segredo do grande mistério do desaparecimento dos guerreiros de seu
povo. O índio sentia, estava a um passo de ser desvendado o misterioso fato.
Contava claro, com seu amigo Tagor que se dispusera a ajuda-lo. Também um bando
de ciganos que estavam arranchados nas imediações.
Os aldeões estavam numa comoção
só. Estavam decididos, se organizariam para destruir Vectro. Foi consternador
ver a vila inteira, ir enterrar seus mortos. E juraram vingança. Havia entre
eles, um, chamado Bento Benzedor. Era o conselheiro da vila a quem os
camponeses sempre recorriam pra resolver contendas, os litígios, e situações
semelhantes aquela. Foram exatas, trezentas pessoas, mortas. Trezentas vidas
ceifadas. Entre homens, mulheres e crianças. Dizimadas por um único golpe do
maligno Vectro. Houve um cerimonial de entrega das vidas dos que iam combater,
e pedido de sorte a Deus. Precisariam de muita sorte, para o que iriam fazer.
Os homens da aldeia eram cerca de mil. Porem não se podia contar com todos.
Entre eles haviam velhos e doentes. Mais de duzentos, dentre eles não tinham
forças para combater. Tagor e o índio passaram duas semanas dando instrução de
guerra, treinando os moços da aldeia que iam lutar contra Vectro. Tagor idealizou
e a eles contou, qual seria seu plano. Teriam que localizar e atrair Vectro
para uma cilada. Propor uma luta, desigual, entre o Transformer e apenas um
aldeão, um garoto apenas. Seria como nas Escrituras Sagradas, o episódio do pequeno
Davi contra o gigante Golias. O local do embate estrategicamente um
desfiladeiro dentro do vaso, e quando o alien estivesse debaixo da armadilha fariam
descer sobre ele uma descarga de pedras grandes, toras de madeira. E mais um
tacho de azeite quente. Era torcer para que tudo desse certo.
Pra ganhar as garrafinhas
contendo água, e terra de Israel, a história que o padre contou a Tagor foi a
seguinte. No tempo que padre Sigismundo Alencar esteve à frente da freguesia do
Crato e Juazeiro do Norte, no vale do Cariri, no estado do Ceará. Um bando de
cangaceiros andava espalhando terror por toda chapada do Araripe. O chefe do bando,
um galego cabeludo, por nome de Herculano Novaes, que tinha por apelido Cascavel.
Por onde passava um rastro de sangue e destruição deixava. Coronel Marcolino
Rodrigues de Miranda, homem rico e poderoso de grande influência política na
região. Era pai de Maria Serafina da Soledade, uma menina de seus
catorze anos. Numa das investidas do bando de Cascavel, a filha do coronel que
estava passando uma temporada na casa da tia, Teodomira Rodrigues, foi raptada
pelos cangaceiros. O coronel formou um contingente de jagunços e foram ao encontro
do bando. No confronto os bandidos salteadores escaparam ilesos. Enfurecidos,
dias depois, atacaram uma das fazendas do coronel, onde fizeram muitas baixas.
Levaram armas, suprimentos. Atearam fogo na casa grande. Mataram homens da
confiança do coronel. A filha do homem, mantiveram como refém. O coronel ajuntou
os varões da família, filhos, sobrinhos e tios da filha. O que tinha de homens,
e mais uma volante da polícia, e foi em perseguição aos bandidos. Por meio de
informação dum ‘coiteiro’ localizaram os facínoras. Estavam enfurnados numas
locas de pedras, conhecido por “Boca das Cobras”, as margens do rio Salgadinho,
no sopé da serra da Boa Vista. Estavam encurralados, pois havia uma só saída. Padre
Sigismundo, e todo sertão, ficou sabendo que o coronel Marcolino deu um
ultimato ao bando, que soltassem sua filha, ou ia invadir o local, e que não ia
ficar um só do bando vivo pra contar a história. Resgataria sua filha nem que
fosse a nado, num rio de sangue. Os bandidos ameaçaram matar Maria Serafina se
isso acontecesse. Padre Sigismundo, a cavalo, imediatamente partiu pro local, para
intermediar uma trégua. Se dispôs a ser moeda de troca, e tornar-se refém no
lugar da menina. Cascavel aceitou, mas
ao se aproximar, o crucifixo no peito do padre, atingido pelo sol, refletiu um
brilho, que o chefe dos cangaceiros pensou ser uma arma de fogo, e atirou. Do
nada, apareceu uma cobra jiboia de vinte metros que dum bote engoliu Cascavel. Isso fez Tagor lembrar a passagem
bíblica, em que a cobra do faraó foi engolida pela de Moisés. O padre
milagrosamente foi salvo, pelo crucifixo que recebeu o tiro. Atordoados os demais
cangaceiros fugiram.
O índio dizia que a história do
desaparecimento dos seiscentos homens do seu povo, se fundia com o surgimento
de um grupo de ciganos naquela região. Isso data do século doze depois de Cristo.
Como explicar tal semelhança, aqueles homens falavam dialeto próprio. Tinham a
fama de ladrões e salteadores. Eram fortes no porte físico, e de feições belas.
Para ganharem algum dinheiro para seus sustentos se apresentavam nas aldeias
com exibições circenses, onde feitos fantásticos realizavam com o uso da força
bruta, truques de magias puramente indígenas. Com uma marreta, quebravam pedras
enormes colocadas sobre o peito de um deles. Com a força dos cabelos, e das
mãos freavam uma parelha de bois de arado, ou apenas com as mãos estancavam o
repuxo de quatro cavalos de corrida, dois para cada lado. Mas sempre foram maus
vistos pelas sociedades feudais. Havia os que diziam que eles provinham dos
espanhóis. Deles, teriam ganhado o apelido de “Gitanos” outros diriam que sua
descendência era Árabe, e ainda indianos. Houve quem afirmasse categoricamente que
seriam descendentes de Caim, irmão de Abel da estirpe de Cam. A eles também uma
antiga lenda hindu atribui-lhes serem os forjadores, ou ladrões, dos pregos da
cruz de Cristo. Motivo pelos quais os obrigariam a vagar pelo mundo.
Tagor partiu ao encontro do pai
de Joana Antonieta. Encontrou-o dentro de uma caverna escura. Na verdade não
era mais ele corpo e alma. Só o espírito. Era noite, e todos os dias era noite
pra ele. Não podia sair dali. Simplesmente não conseguia. Andava por intermináveis
corredores escuros. Quando ficava cansado parava e acabava dormindo. Procurava
um lugar mais ameno. Tendo por cobertor a escuridão. Era uma caverna úmida. Do
teto o farfalhar das asas dos morcegos sobrevoando sua cabeça. Embalava seu
sono, o chiado das corujas, som horripilantemente aterrador. Uma goteira que
parecia não acabar nunca, explodia dentro da cabeça. De vez em quando ouvia
como um choro de uma criança, uma menina. Talvez perdida, dentro de algum túnel,
daquela caverna que não tinha fim. Tagor
percebeu que ele não tinha vontade de conversar. Talvez tivesse vergonha do que
fizera em vida. Mas se contasse quem sabe não aliviasse o peso da consciência. Quem
sabe Antonieta lhe perdoasse. Disse, sem falar palavra. Estava com muito
remorso pelo que fizera a Antonieta. Em vida, a abandonara, com a mãe sozinha e
doente. Antonieta tinha apenas três anos de idade. A mãe de Antonieta morrendo
lentamente consumida pela peste negra, que quase dizimou a Europa. Antonieta sendo
levada pra ser criada pela tia no subúrbio de Paris. Antonieta não lembrava
nada dessa fase de sua vida. O pai no entanto sim.
Marcos, o primeiro menino das
bicicletas, ficou sabendo de Milu, a gata mãe de Derick. Estava num abrigo para idosos chamado São Vicente de Paula, próximo ao santuário de Nossa Senhora de Guadalupe, em Santana do
Ipanema. Sob a guarda de dona Lourdes, que alimentava e cuidava dos nove
velhinhos que lá residiam. Milu queria saber do paradeiro de Derick,
de Bola de Gude e Chiclete seus irmãos. A gata ficava o tempo todo no colo de
dona Nenen, na verdade dona Gumercinda Rodrigues que dizia ser irmã do coronel
Rodrigues da Rocha, e que ficou cega, aos 80 anos, de catarata. Jurava, porém,
ter sido obra dum cangaceiro apelidado de Cascavel. Milu era os olhos da cega.
Esticava o pescoço se alguém se aproximava. Miava manhosa se vinha gente conhecida,
miava ameaçadora se não. Miou, agora mesmo, arregalando os olhos, arrepiando o
pelo.
Fabio Campos, 21 de Fevereiro de
2017.