Tempo, Tempo, Temporal.







































A chuva caía torrencial. Raios clareavam vez outra, à noite, a torrente d’água. Azulada, quando não negra. As copas das árvores, o matagal. A estrada, convertendo-se pouco a pouco num rio, sinuosamente ao sopé da montanha. No meio da tempestade, um vulto se projetava na estrada, toda vez que o risco de luz cortava o manto negro. Perempto avançava o vulto negro. Sob espessa malha d’água. Chapéu na cabeça. Um homem vinha vindo, molhado até a alma. A água escorria-lhe pela aba do chapéu, pelas costas, pela manga comprida da camisa, pelos braços. A mão direita segurava uma estrovenga. No fio da lâmina, sangue.

O sol, e sua incrível capacidade de animar as cores. Mesmo as mais preguiçosas. O azul do céu contrastando com o cabelo ruivo da menina. Amarelando à tarde, feito quadro de Van Gogh. O irmão entretido com cavalinho de madeira, no alpendre. Os pássaros, onde estavam? Denunciava-os seus cantares alegres. Os óculos, feitos pra pensar, pensavam sobre a mesa. Os chocalhos diziam longe a onde ia o gado, logo ali. Um homem que nunca tivera naquele fim de mundo de meu Deus, surgiu na cancela.

O quarto na penumbra. Uma vela acesa, vigiando as imagens dos santos, algumas sérias outras tristes, sobre a mesinha de madeira forrada com pano branco. Se dia ou noite, ali dentro tanto fazia. O homem estrangeiro chegando, as crianças brincando. Uma mulher, que não dava pra ver, se ocupava entre a cozinha e os fundos. De onde aparecera aquele cachorro? A casa. O alpendre. As crianças. O cão enorme. O vento soprando assobio vespertino. À tarde, no esplendor de beleza de quinze horas, de azul e branco no céu. A solidão passeando no oitão da casa. O silêncio quebrado pelo pipilar dos pássaros. Calmaria, grito de crianças, calmaria. Aquele cachorro de onde aparecera? O menino agora brincava com barro de louça. Fazia bolinhas. A menina agora na rede, no alpendre. O sol fazendo réstia até a metade do piso. O cimentado quente. A boneca de cabelos amarelos, olhos azuis fixo nas telhas. Uma mosca, e seu vôo inoportuno, do cabelo pra boca. De repente um estampido. Um tiro? Não, não pareceu um tiro.

Vô, conte uma história de malassombro. Não. Você sempre assusta de noite. E acaba sem querer dormir na sua cama. Vou não assustar. Vai sim. Está bem, vou contar aquela que comecei outro dia, e você me mandou parar. Do homem que... Sim, aquela realmente aconteceu comigo. De quando tive que fazer o reconhecimento de um percurso, que faria com meus alunos, e acabei me perdendo, lá na serra. Faz tempo viu? Duas crianças tentaram ajudar-me mas... Era uma vez uma montanha. Pra chegar até lá, tinha que passar na frente dum cemitério. E no sopé havia uma mata. No meio da floresta morava um velho. No vilarejo próximo, havia um menino que não gostava muito de estudar. Um dia, ao invés de ir pra escola, foi pra o campinho jogar bola. Só que não encontrou ninguém lá, estavam todos na aula. Daí, ficou olhando pra uma mata que ficava ao lado do campinho. Resolveu entrar na caatinga fechada. Não andou muito e já estava perdido. Desesperado, começou a correr e quanto mais corria mais se perdia. No meio da floresta encontrou uma casa. Havia inscrições e cruzes nas paredes. Crânios no chão, pingos de sangue, velas acesas.

O cachorro continuava lá. De pé sob as patas dianteiras emparelhadas o traseiro apoiado no chão. O rabo recolhido contra o próprio corpo e as orelhas apontadas pra cima, em guarda como premeditasse algo a acontecer. Um tiro. E o cão correu pra dentro de casa. As crianças, como se nada houvesse acontecido, continuaram brincando. O pai costumava atirar detrás de casa. Se fosse preciso abater uma galinha, certeiro atirava na cabeça. Vida no campo alternada de sucessivas tribulações e momentos de paz. E novamente a calmaria.

O velho, a casa da floresta, a bola de cristal. Dentro do quarto, na penumbra viu o menino se aproximando. O menino apanhou cerejas no jardim. Ia levá-las a boca mas foi interrompido. Não faça isso. Essas frutas, apesar de belas e vistosas, são venenosas. Uma mordida e daí a pouco, você estaria morto. Eu lhe vi chegando, sei por que está aqui. Não gosta de ir à escola? Não é? Venha tenho algo para lhe mostrar. Um pouco assustado. O menino cedeu.

O cachorro avançou sobre homem e o mordeu no pescoço, e boca. Ferido de morte por um tiro de garrucha. A mulher estava caída também ferida mortalmente. O homem havia desferido vários golpes de estrovenga. Na luta entre cão e homem, venceu o cão. De repente, o próprio cão virou um homem. E estava de pé, na cozinha olhando pros corpos inertes do homem e da mulher, ali no chão. Lá fora um casal de crianças brincava. Arrastou os corpos pros fundos. Cavou duas sepulturas atrás de casa e os enterrou. O menino continuava a brincar com os bois de barro, e as balas de peteca que havia feito. A menina e sua boneca na rede. Para onde teria ido aquele cachorro? O estrangeiro da cancela observava. Pensou em bater palmas, desistiu. Pensou em chamar as crianças, desistiu. Rodeou o oitão da casa e viu um homem cavando sepulturas para enterrar dois corpos. Trajava sobretudo preto e um chapéu também preto. 

Depois que enterrou o casal, o homem voltou para ver as crianças, mas já não estavam lá. O menino achava muito interessante, tudo que havia via. O velho o observava. Os animais empalhados. A bela cabeça de alce na parede, um lobo guará, uma corujão que parecia olhar fixo pra ele. O preto velho, disse que sabia de muita coisa. Das pessoas conseguia ver suas almas. E mesmo outras, que por ventura as acompanhassem. Fez uns gestos sobre a fronte do menino. Seus ancestrais, disse, vos acompanham, para onde vá, o protegendo. Foi até um antigo baú, abriu. Uma luz vermelha vermelhou o quarto. De lá dentro tirou uma pedra polida, parecida com um diamante, dela emanava a luz rubra. E disse. Está vendo esta pedra? É seu coração. Guarde-a. Todo dia perde um pouco de sua cor e brilho. Quando não estiver mais radiando essa luz, você estará morto.

O homem de preto, sozinho no alpendre, da casa. Em plena tarde. Num piscar de olhos, e voltou a ser um cão peludo. E de um único salto ganhou a mata. As crianças caminhavam, na companhia do estrangeiro, conversavam coisas corriqueiras. De que cada um mais gostava de fazer nas férias, caçar, tomar banho no rio, jogar bola. Conversavam pra disfarçar o medo, a sede, a fome. A menina, agarrada a sua boneca permanecia calada. Andaram muito, até encontrar numa clareira onde havia um belo chalé. Ali morava uma tia dos pequeninos, Contaram pra ela o que havia acontecido. A pobre senhora apenas ouvia calada. Serviu-lhes café com sequilhos. Perguntou-lhes quanto tempo havia que andavam na mata? A pelo menos duas horas, respondeu o homem. E disse baixinho, que só ela mesma pode ouvir. Exatamente em meia hora o cão estará aqui. 

O velho disse ao menino. Você é discípulo de Leviatã. Nasceu para cumprir uma missão. É sua missão na terra ouvir os lamentos dos que deixam a vida. Especialmente os que a deixam antes do tempo. Vai morar perto de um cemitério. Apacentador de espíritos sua função. Toda vez que um defunto passar pelo portão para ser sepultado. Se tiver deixado essa vida em paz, nada acontecerá. Porém, se tiver morrido tragicamente, ou partido antes da hora. Sua alma virá até você, vai lhe procurar para pedir algum tipo de favor. Algo que deixou de realizar.

Venha vou lhe mostrar o que aconteceu a seus pais, disse o velho. E levou o menino para o quarto, até a bola de cristal. Dentro da bola o menino pode ver o que acontecera naquela tarde que brincava no terreiro com sua irmã. O cachorro que entrou correndo dentro de casa. A tentativa de salvar sua mãe. Tarde demais. O cão, era o mesmo que rondava seu pai desde muito tempo. Entendeu porque seu pai sempre vivera acompanhado daquele cão. Fosse a onde fosse. Sua irmã até conversava com ele.

O velho disse para ter cuidado com a pedra. Levasse-a sempre consigo. Que a defendesse como sua própria vida. E que nada de mal deixasse lhe acontecer. Foi no ano quarenta de seu aniversário, resolveu voltar à velha casa onde morava quando criança. Onde vivera sua infância, junto com sua irmã. Invadido foi de melancolia ao vê-la. Estava abandonada. Fez questão de chegar por volta de três da tarde. A lembrar, daquela tarde que o homem estrangeiro os resgatou, pra casa da tia. Um sol semelhante aquele amarelava as coisas. As nuvens e o céu azul também estavam lá, tudo como antes. A solidão sempre, sempre lá estaria. Os túmulos detrás de casa.

Estava resolvido. Passaria a noite no velho sítio abandonado, sozinho. Onde sepultados estavam seus pais. O cantar dos pássaros, embalou sua tristeza. O calor do sol, aquecendo a rede no alpendre o fez voltar no tempo. Assim a tarde foi se indo. De repente, o céu antes azul, inflamou-se de nuvens negras, e caiu tempestuoso temporal. Uma chuva grossa com força castigou o velho telhado. E se fez trevas no mundo. Procurou uma vela, acendeu. Seu rosto amarelado projetou sombras, nas paredes de barro e taipa. Os móveis do tempo que morava ali rangiam de muito velhos. Abriu uma gaveta e encontrou a faca com a qual sua mãe preparava as comidas, matava as galinhas. A velha garrucha enferrujara. A pedra do cordão no seu pescoço por instantes pareceu perder o brilho. De repente um vento forte, e a porta da frente de um baque se escancarou. No umbral, o raio clareou, o vulto de um homem, de chapéu preto. Molhado até a alma. Na mão uma estrovenga. Pra ele olhava com ar de ódio, ameaçador.


BENJAMIN (The Armchair)






































Estava chegando os dias de ficar sentado na poltrona. Dia de ficar olhando a montanha. E ver de novo os meninos escalando-a, há muito tempo atrás. Tempo da estrada cheia, de gado. Tempo da safra de umbu no inverno, e de caju no verão . O carro lentamente avançando. Devagar, esperando os bovinos permitir passagem. Um magnífico Aero Willys veio vindo, guiado por um... anão?! Um imenso chapéu de caubói. A cabeça, como a de um homem mediano, como se implantada no corpo de uma criança. Os trajos era de vaqueiro. Parou, junto ao rapaz, Ao rapaz parado a porteira, ofereceu carona. O moço aceitou. Achou bem interessante, a adaptação que o homúnculo fizera para alcançar os pedais do freio, acelerador e embreagem. O rancho da namorada, ficando pra trás. Ainda o seu perfume retivera nas mãos. O anão puxou conversa, falou do circo armado no povoado. Do show country do qual fazia parte. Do quão difícil fase estava passando, sua namorada fora embora com outro. Ligou o som do carro, e encheu o automóvel com música de dor de cotovelo. Os detalhes do painel, recoberto com couro de búfalo, também os bancos. No retrovisor interno, um penduricalho com vários amuletos, pés de cabra, coelho, uma figa, uma pequena imagem de Nossa Senhora Aparecida, e uma ferradura enorme. O barranco que um dia o rapaz esteve sentado com a amada passou, bem devagar. Ali, um dos muitos beijos furtados. A boca, acabaria descobrindo, ficava morna quando ela estava perto de menstruar. 

Vô pode levar-me pro parque hoje? Lembrou da mãe da neta. Seria a segunda ou terceira geração que levava pro parque? Sempre nas festas da padroeira. Sobrinhos, filhos, agora a neta. Lembrou quando a criança de levar ao parque, era ele mesmo. Os brinquedos tão mais simples. Uns laças-laças, uma pescaria onde os peixinhos ficavam enfiados numa bacia cheia de areia, ao serem fisgados uma plaquinha indicava o prêmio: uma bola “Dente de Leite” de plástico; um boneca nua, assexuada; uma vareta. Objetos que valiam menos que o próprio bilhete pago. Mesmo assim encantador era ganhar, fosse o que fosse. O carrossel, as patinhas, os barcos. As barracas de quitutes e o cheiro forte de cebola e defumados. A moça foi à cidade, e eram os dias daquela festa. O rapaz estava sozinho em casa. Dias antes haviam brigado, à dias sem se verem. A menina foi andar de bicicleta, estava com raiva dele. Caiu, quebrou o braço. Falou pra irmã que se abusara dele. Por quê? Por estar sempre com o mesmo visual. Sempre com aquelas camisetas preta. No início achava maneiro. Tinha só quinze anos. Depois a irmã aconselharia o cunhado a mudar de vez em quando, a cor das camisetas. O relógio “Champion” de muitas pulseiras, o primeiro presente de aniversário. 

Ao abrir a porta, lá estava de pé. O braço engessado. Cara de menina travessa, meio sorriso nos lábios, uma das pernas balançava, de nervosa. Ele, calado. Abriu-lhe a porta. Entrou. Ficaram um tempão olhando um pro outro, sem dizer palavra. A tarde toda, ela deitada no sofá, ele sentado na poltrona. Velha poltrona que fora do pai, que herdou do avô. A tevê, não se animavam ligar. Ela agarrou no sono. O mês era convidativo para um café com chocolate. O rádio ligado, o locutor a dizer que era a hora do “rei’. Referia-se a Roberto Carlos e o moço de Itapemirim, veio embalar velhos pensares: “Da janela o horizonte/ A liberdade de uma estrada eu posso ver/ O meu pensamento voa livre em sonhos/ Pra longe de onde estou.” 

Lembrou do dia que o amigo perdeu o carro de volta pro sitio. E teve que dormir em sua casa, era véspera de feira. À noite foram andar nas toldas que vendiam comida, comeram cuscuz com carne de bode, regado a cachaça. Ficaram bêbados. De volta a casa, na cozinha, beberam mais ainda. E riam de bêbados. Acabaria, um dormindo no chão e o outro no balcão da pia. De manhã os dois estavam no chão. O circo ficaria só mais aquele final de semana. E iria pra outra cidade. A praça de repente virou um aglomerado de gente. Todos queriam ver um homem, um romeiro, penitente, fizera uma promessa, iria levar uma cruz, em tamanho e peso semelhante à de Cristo, até a cidade de Juazeiro do Norte no Ceará. Até o horto na estátua de padre Cícero. Tempos depois, estaria a pensar no homem e sua promessa, que loucura, se não fosse pela fé, seria absurdo. O percurso era de mais de quinhentos quilômetros. Era um homem atarracado, mas bastante forte tinha feições de índio. Agora a casa era um mirante, donde se via a rua, palco de muitos shows que a vida proporcionava, diariamente. Outro julho, num dia frio, bom para tomar café com chocolate, e se cobrir debaixo dos lençóis, na poltrona. Outro dia, minha mãe recebia a visita da comadre, assim que saiu imediatamente o irmão pequeno se aninhou na poltrona. aquecida pelo corpo da ex-ocupante. A mãe o ralhou, dizendo que aquilo não era legal. O menino queria saber por que. Dizer apenas que fazia mal não era resposta convincente. Que mal haveria deitar sobre uma poltrona quentinha? Ainda que aquecida pelo corpo de outrem? Benjamim. Como poderia alguém colocar nome tão feio em alguém? Ah! Agora, é que vem dizer que meu nome é feio? Tantos anos depois? O amor é cego. Ah, então não há mais amor? Não era bem isso que queria dizer. Mas é o que parece. Nem tudo que parece, é. O pai, verdadeira paixão tinha por nomes de americanos ilustres, meus outros irmãos: Thomas Edson, Henri Ford, Roosevelt. A música de Roberto Carlos veio voando. Seria somente dentro de sua cabeça? 

O circo agora estava indo pra cidade vizinha. A ex-namorada do anão fora esfaqueada por outra mulher, por ocasião de uma briga no bordel. Socorrem-na. O parque de diversão, onde antes estivera o circo, foi armado. O som efusivo, os rojões estourando no negro céu, o carrossel girando estonteante, a algazarra das crianças. O menino que se fartava com algodão doce, depois de jovem passara à refrigerante e sanduíche. Uma vez adulto, cerveja e vodka, a embalar os sonhos. Da poltrona dava pra ver tudo. Dava pra rezar. O pai do pai morrera sentado naquela poltrona. É poético morrer sentado. Enquanto todos pensavam que ele ouvia música, morria. Gostava da música de Roberto Carlos: “Eu às vezes penso até onde essa estrada/ Pode levar alguém/ Tanta gente já se arrependeu e eu/ Eu vou pensar, vou pensar.”

Vô, daqui de casa, você é quem vai morrer primeiro. Não é? Sempre são os mais velhos que morrem primeiro, vô. Concordou. Nada mais coerente do que dizia a neta. Coerente e triste também. Talvez quem sabe, com um pouco de sorte, igual ao avô, morreria sentado naquela poltrona. Preferia Djavan a Roberto Carlos. A neta já acostumara. Quando iam pra praça, assim que entrava no carro. Vô põe Djavan. Posso baixar os vidros da janela? E o carro se enchia de “Lilás”. Baixinho punham-se a cantarolar, a letra já sabia de cor. De novo a menina do braço engessado. E tomaram banho no quintal junto ao lavador de roupas. Ela só de calcinha. Tendo o cuidado de levantar o braço pra não molhar o gesso. Benjamim. Não é o mesmo que colibri? Talvez um beija-flor. O eletricista que fazia reparos lá em casa chamava a tomada de eletricidade de benjamim. E ficava agora associando seu nome, ao pequeno pássaro, a tomada elétrica, quem sabe ao bolero: “Besame, besame mucho!” A noite os dois, tomariam café com leite, pão com manteiga. A luz de vela, não por ser romântico, mas por queda de energia frequentes naquela época. Dormiram juntos. A primeira noite de amor, dos dois. De manhã, estava decidido agora pertencia, um ao outro. Decidiriam mais tarde que iriam se casar. Mal sabiam o que os esperava. Mesmo assim traçavam planos pro futuro. Quando a mãe soubesse, talvez chorasse, talvez ficasse brava. melhor não saber. Não naquela ocasião. Algum dia saberia. Mas não agora. Não sabia com quem contar naquele momento. Nenhum dos dois tinha muito com quem contar. “Quantas vezes eu pensei sair de casa/ Mas eu desisti/ Pois eu sei lá fora eu não teria/ O que eu tenho agora aqui.” 

Tem Benjamins velhos também, o mais velho que conhecera naquela época era o almocreve que trazia água do rio, num burrico para encher a cisterna de casa. Mas tinha pessoas que abreviava, e chamavam o homem de “Seu Beija”. Um vocativo como a obrigar o pobre tangedor de burro a ser o maior beijador do mundo. “Meu pai me dá conselhos/ Minha mãe vive falando sem saber/ Que eu tenho meus problemas/ E que as vezes só eu posso resolver.” Benjamin lembrava também dum Benjamin dos livros da escola, um velhinho de boa cara, um tanto quanto sorridente a segurar uma pipa, que voava num dia nublado e chuvoso. Ah! Menino traquino... Não sabe que é perigoso soltar pipa em dia chuvoso? Talvez os Benjamins sejam todos assim. Sabem, as vezes, da iminência do perigo que correm mas se arriscam assim mesmo. Porque estar sentado na poltrona é tão prazeroso e perigoso quanto sair correndo na chuva. Assim, como nascer e morrer. São tudo conseqüências. “Coisas da vida/ Choque de opiniões/ Coisas da vida/ coisas da vida.” 

ATRAVÉS DA VIDRAÇA




























Era uma vez uma janela. A moça. E dois homens. 
A janela ficava na casa velha, de esquina. Os homens estavam sentados na praça. Sobre a moça, falaremos depois. O dia mal começara, e já estava olhando pro lado do por do sol, torcendo pra noite chegar logo. E fez o que pode, deu de se encolher debaixo de nuvens carregadas. Ensaiou uma chuvinha, que fez os panos sumirem do varal. O cachorro, meio contravontade deixaria a calçada da igreja. Tudo conspirava, tentativa vã, pra antecipar o anoitecer. 

A moça, da cor de quase Rapunzel, dos olhos de Nossa Senhora de Guadalupe. Olhos de menina, sonolenta. Estava bem ali, à janela. Era sempre assim, em tudo quanto era história, aparecia pra dar graça e beleza. Lembrou do pai, com seu jeito chucro, de camponês. De cócoras encostado num canto de parede. Uma das mãos em concha, com a outra macerava um pouco de fumo picado. No canto do lábio um retângulo de papel seda, aderido ao lábio inferior, que de forma alguma o impedia de falar. E falava de uma parelha de bois pra amansar. Ô bichos bestas só é boi. O dia todo, pra lá e pra cá, puxando um toco de pau, pra fazer gosto ao homem. Se ao menos fosse agosto. Teria motivo pra dizer que fazia frio. A instante cheia de imagens de santo. No alto, ficava a do santo de cada mês. Como era julho, senhora santa Ana, lá no alto. Destronou Antonio Pedro e João. O rádio ligado. Em tom solene o locutor falava da fundação da usina hidrelétrica de Paulo Afonso, a obra do século! E era mesmo. O jipe da polícia passou em direção da estrada que leva aos sítios. Seguiam em perseguição a bandidos que assaltaram ao banco. Estrada de barro, poeira não levantou porque havia chovido de madrugada. O homem do telégrafo, de casaca e pára-sol, saiu pra entregar as correspondências. As cartas ficaram na mesa junto à xícara de café. Na beira do fogão calor, na soleira da porta, frio. Vô calor e frio é calafrio? Quase isso. Faltou água no chuveiro, a moça foi tomar banho com a mangueira no quintal. O menino do alto da goiabeira deliciava-se com a visagem. A moça sorria. A água fria intumescia o bico dos seios, os pelos da púbere púbis. Os meninos voltavam da escola, o que chutava uma lata foi repreendido pelo vizinho. O que jogou cascas de banana em cima da marquise foi repreendido pelo comerciante. O que chutou a bola na fachada da casa, a perdeu, o vizinho a rasgaria de faca. Como se nada tivesse acontecido avançaram, com destino ao campinho. Fariam uma bola de meias. Os velhos contos de Christian repousavam tristes nos livretos da instante. Enquanto passavam barulhentos desenhos animados na tevê. E traziam estranhas idéias pra cabeça do inventor de sonhos. Os assaltantes fugiram pela estrada vicinal. A moça jamais ficaria velha, de tanto olhar pela vidraça. Um dia seria matrona, e o banho, continuava sendo no quintal. E os meninos que nunca envelheciam espiavam pela brecha do portão. Os dois homens conversavam e diziam assim: Estamos ficando velhos. O que fizemos de nossas miseráveis vidas? O tempo passou. A vida passou. Escorreu feito areia entre os dedos. Nada pudemos fazer, em nosso próprio benefício. A vida segue. Já sei! Disse o primeiro: Vamos assaltar o banco! Teremos dinheiro para curtir um pouco da vida que nos restas. Ajuntou o segundo. E novamente o primeiro: Vou a casa pegar o carro. E o segundo: Eu pego as armas, a dinamite. 

Para minha mãe, todas as mulheres chamavam-se Maria. Ou pelo menos deveriam chamar-se Maria. Todas eram como cópias, ainda que esmaecidas, de Nossa Senhora. Maria que lavava a roupa. Maria que preparava a comida. Maria que cantava pra dormir. Maria que ia pra feira, namorar. Quando se aproximava a festa, o espírito da festa chegava bem antes. Assim como as roupas, os relógios, e os carros se modernizavam. Os prédios vestiam-se de tintas novas, e se alegravam com sorrisos em suas janelas. A igreja ganhou pintura nova, carreiras de luzes na torre. Na vidraça a menina. Olhava a rua. Toda vestida de rosa, o cabelo penteado o colo perfumado. A mãe falou não abra a janela. Achava perigoso. A menina pediu: Vô conta uma história. História que tenha coisas deliciosas, nada de tristeza. Coisas que acordem os pássaros, que encha de luz dentro da gente. De era uma vez, vô! Qualquer coisa assim. De casas onde tudo dê vontade de comer. Não a casa de João e Maria. Essa eu já sei muito bem como termina. Queria que contasse sobre coisas onde homens conversem com plantas e animais, conversassem e se entendessem. Onde soldados e polícias, não nos metessem medo, mas mantivessem a ordem. E caso alguém fizesse algo errado fosse punido com justiça. Sinos badalassem com alegria, a anunciassem festa. Festa dos jovens, e também dos idosos. A cidade ficaria alegre com a juventude, em vigor desfilando pelas ruas. Alguns dias depois reverencias seriam pros idosos, os avós. Festa dos ancestrais, os avós de Cristo. O novo sino era imenso, guardado, encerrado no salão paroquial. Esperando que o tombassem pra torre. Se estivesse lá no alto, privilegiada visão teria do assalto. 

Através da vidraça a moça via o mundo, aparecia-lhe como apareceria na tevê, em play back, horas depois. Naquele instante a moça via, em tempo real, o futuro. O futuro que dali a pouco viraria notícia. Dois homens desceram do carro na porta do banco. Nem bem o dia acordara. Os que se divertiram na festa por certo ainda dormiam o sono dos justos, dos ressacados. Bandeiras e cores tremiam nos cordões estirados no ar, inchado de sol. Tontas e cansadas acenavam pros passantes. O moço que vendia leite porta a porta, no ritual de chocalho. O pãozeiro com o balaio na cabeça apregoava o que seu aromático produto chegava bem antes sem dizer palavra. O pai da moça estava com problemas de saúde. O homem que sabia domar cavalos, que amansava parelha de bois, que amansava a terra, que fazia um carinho nela. E seus afagos faziam-na dar flor. E o faria dançar de alegria, quando parissem rebentos, de cabelos dourados e dentes de leite amarelinhos, que tinha outros irmãos morenos. Agora, força pra terra, não tinha mais, nem pro domo dos bichos brabos. Vô espiga de milho é menina? O feijão é menino? O milho e o feijão são menino e menina. O milho, no alto tem seu pedúnculo, que é seu lado macho, no encontro da folha com o caule, a gema, sua parte menina. O feijão dá a flor, a flor é, a um só tempo, menino e menina. O pai da moça, no inverno se amancebava com a terra. Amanhecia e dormia com ela. Até ajuntar a safra, um namoro só. No verão se amigava com as éguas, vacas e cavalos. Quão belos seus rebentos. 

O primeiro homem entrou no banco portando a dinamite. O segundo ficou na porta. Um rapaz pintava a fachada da casa, vizinha. O segundo homem, falou bem assim: Cara! Se eu fosse você, saía daí. Vai ter maior estouro, por aqui! O pintor entendeu o recado, largou escada, pincel e tinta. A explosão afugentou os pardais, sacudiu as folhas do pé de amêndoa, reverberou na vidraça, balançou as cores. A moça permaneceu impassível. Apenas expectadora, do crime que via, ao vivo, a cores. Enquanto o dinheiro era recolhido o vigilante tentou reagir. Engalfinharam-se, o segundo homem e o vigilante. Novamente rendido o segurança levou umas coronhadas. O homem exaltado perguntou-lhe: Quer morrer é?! Isso é dinheiro do governo! Vai morrer defendendo dinheiro do governo? Otário? Olhe para nós. Temos cara de bandidos? Temos idade pra ser seu pai. Você tem todo um futuro pela frente. Tente enxergar além. 

Lá fora. O que você vê agora? A vidraça, a dinamite estourou, talvez ela, estivesse tapando seus olhos. Um céu anuviado que promete chuva. A chuva meu caro, dá vida, faz nascer a semente, mas mata pinto também. Tudo tem um lado bom e um lado ruim. Decidimos roubar o banco isso terá consequências. Adeus, caro jovem, admiro sua coragem. O carro preto em disparada saiu em direção ao sítio. Foi ficando, cada vez mais, pequeno, até sumir na estrada. Deixando pra trás, uma cidade, que voltava à rotina. A monotonia, da moça na vidraça. A chuvinha ameaçadora, faria os panos sumirem do varal. E o cachorro, meio contravontade  deixou a calçada da igreja.


CABELO DE FOGO



O vento frio, ao sol do meio dia. O deserto de acordar as almas. Curvadas de medo, sob o peso dos pecados das almas. Coração contrito, todo enrugado. A chuva indo por debaixo da manhã de sol, entre soluços, pranto matina. Vô, olha o arco-íris! A tia disse que tem um pote de ouro no final? Tão pertinho, dá até pra gente ir até lá. Não por aquela estrada, de ladrões e salteadores. Um caminhão parado no caminho. A barra de direção quebrada. A mulher chamou por padre Cícero, melhor que ele viesse ou teriam sérios problemas no precipício. Os escudos sempre servem para proteger. 

O menino fantasiado de matuto, tão satisfeito. Cabelo de fogo, ansioso pra participar da quadrilha junina em sua escola. A mãe acometida de enxaqueca, infelizmente não poderia ir. Os vizinhos acenderam as fogueiras do santo que nem sabiam que seu nome verdadeiro. Santo Antonio chamava-se Fernando? O disco voador passou rente aos fios de alta tensão produzindo um ruído parecido com o de um foguete de artifício, ao chegar lá na frente sumiu. Ou explodiu? Os extraterrestres vieram numa época imprópria. Se soubesse daqueles festejos com fogo e fogos deixariam pra vir outro dia. Que julgamento fariam de nós? Voltariam com má impressão dos humanos? Tecnologia nada compatível com as práticas. Era como estar na era do surgimento do fogo, e no terceiro milênio a um só tempo. O que mais se via eram almas secas. Os ventos as dobravam, quase tornando-as quebradiças. E não conseguiam afastar os maus espíritos. A praia deserta, a terra molhada. Os homens parados eram feitos lenha. O desejo e o medo juntos entraram dentro da noite. 

A massa no balcão era pra fazer um bolo. O labirinto não tinha cheiro, mas o leite leitoso cegava se caísse nos olhos. A cobra passava dum buraco pra outro o lenhador de um só golpe a partiu. Cada pedaço desapareceu pra cada lado pra ter duas mortes. Os filhotes no ninho de urubu regurgitavam. A calada da noite, impreterivelmente muda. O rapaz parou a moto na calçada, na mão trazia um embrulho. Nada sabia da baleia encalhada, na tevê. Tinha mais o que fazer. Havia muito gente olhando, do cais. Nada fácil o resgate. A menina queria história de menino de cabelos de ouro. O peixe, que não era peixe, saiu e entrou da história de trancoso que o avô contava. Era quase madrugada, mas ele conseguia, quase de graça, um dia ensolarado dentro do quarto. O sol chegando pela sua boca, entrando clareando e esquentando tudo. Colocou também umas árvores com folhas molhadas de orvalho bem ao lado da cama. Ao engolir o comprimido trouxe uma paz pra paredes e a bebida anil ficou encima do criado mudo. O milho, pra tirar as palhas, os cabelos, o cheiro de milho verde, bom pra cozinhar. A fotofobia, o rosto inchado de sono da noite mal dormida. Os pelos do braço também ficavam brancos. O pátio da escola, o musgo subindo pelas paredes. 

Era uma vez um menino dos cabelos dourados, e todos o chamavam de Cabelo de Fogo. Um dia, chegou a casa, e os cabelos estavam pretos. Até então ele não sabia. A mãe perguntou o que tinha acontecido? Ele disse que havia encontrado uma velhinha muito simpática que lhe oferecera pinhas. Como assim pinhas? Logo a fruta que sua vó mais gostava? E daí? Você aceitou as pinhas da velhinha? Não, ela não estava dando, mas vendendo. Ela falou que daria uma pra mim, se eu lhes fizesse um pequeno favor. E que favor foi esse? Simples, atravessar a rua, bater a porta da casa logo ali em frente, e entregar uma encomenda. Aceitei. Ao bater na porta fui atendido por um homem velho, barbudo, que me convidou a entrar. A casa era muito escura. Pensei em voltar, desistir, mas ele parecia muito legal. Topei. Passamos por um corredor escuro. E nada enxerguei. Ao chegar à sala, estávamos no meio de uma floresta. Um cavaleiro trajando armadura de ferro, veio ao nosso encontro. Sem dizer palavra entregou um cetro de prata, ao velho, que com ele tocou minha cabeça. Sem entender nada o velho apenas disse que eu tinha cumprido minha parte da missão e que podia ir embora. Só que todos sumiram e vi-me só. O dia de céu límpido, de repente tornou-se ameaçador. Um pequeno redemoinho se iniciou no topo da montanha, e veio girando com muita força. Arrastando tudo que encontrava pela frente. O velho reapareceu no alto de uma montanha, no meio de umas pedras. E começou a perder os poucos cabelos que tinha, sua pele começou a soltar-se da carne e daí a pouco era apenas um esqueleto cujos dentes que soltavam um a um e saiam voando. Seus órgãos: pulmões, coração, a aorta estourada, igualmente voavam. O sangue voando batendo no pára-brisa do carro e sua família viajando. E tudo ficou vermelho, dentro e fora do carro. As folhas das árvores tremiam e se soltavam com o vento forte. Primeiro as folhas velhas, depois as folhas verdes. 

Ouviram tiros que vinham do alto. Muito longe. Todos os olhares estavam voltados pra lá, pro alto da serra. Tinha um atirador de elite. A mulher com longo vestido e uma coroa na cabeça, vinha empurrando um carrinho de supermercado. O impacto do tiro empurrou sua cabeça pro lado. A coroa caiu no abismo. O jato de sangue, a queda. Os livros voavam das instantes, o chão inundado na casa do mago. Mobdick saiu do livro e ficou encalhada entre uma instante e outra. O velho e o Mar passaram e o barco. As folhas de papel boiando se diluindo. Mangas bonitas despencavam do pé. Ao tocar o espelho d’água causavam imenso tsunami. Os gafanhotos surgiram em nuvens verdes, o enxame fazia um bailado espetaculoso. As cortinas do dia, duas colossais colunas de água de chuva torrencial, caia como cachoeiras nos dois extremos da cidade. Uma cascata de cada lado da terra. O menino do cabelo de fogo trazia sua pipa encostada ao peito com cuidado para não molhar. Menino de Vidro, cabelos molhados, cabelos de ouro. A moça da janela ficou lá, por dois mil anos. A maquiagem esmoreceu. Cansada, fechou os olhos, nunca mais enxergaria como antes. A bolha como um aquário de pirilampos, que rangia nas dobras das asas, feito dobradiças velhas carecendo de óleo. E caíam em câmara lenta. O menino estava a ponto de desistir, não mais queria entender. Lápis de cor derretiam feito larva vulcânica e as cores se misturavam num carnaval de arco-íris. O pássaro de fogo emitia um canto mavioso, cujas notas mais altas explodia taças, e os cálices da cristaleira da casa da velhinha. 

Os dinossauros de ferro passavam devagar rangendo engrenagens. A cada pisada abriam imensas crateras, e os homens pigmeus da terra dos Pirineus atiravam flechas e lanças que sequer penetravam o couro sintético dos monstros jurássicos. Amazonas montadas em cavalos marinhos, voadores, exibindo corpos voluptuosos, de ouro fosco, diáfanos, atmosféricos. Bando de morcegos donde saltavam maruins reluzentes. As pulgas de diamantes despencavam do alto das árvores gigantemente acesas, neon. Seus frutos eram como estrelas e cometas. Uma revoada de tartarugas, indo ao encontro de ferozes pterodáctilos com asas de latão com tentáculos de marfim, garras de bronze, se digladiariam. Causando pandemônio cósmico. As tanajuras luzidias de ouro de Ofir tentavam escalar os dorsos de pulgões de camurça e guache, acabavam escorregando acabavam caindo vertiginosamente no precipício dos príncipes dos malogrados. Uma mulher deusa saída das profundas do mar, vestida de conchas, bordadas de águas marinhas, colar de pérolas, pulseiras de ostras. O espírito de um pirata voou saído dos destroços de uma caravela da ilha dos mil anos de tormentos. Subiu até a sereia empunhando sua garrucha apontando-lhe o peito deu-lhe tiro certeiro. Ainda deu pra ver a sereia despencando no precipício. Mesmo caindo a moça das profundezas do oceano desembainhou sua espada e desferiu um raio de muitos megawats de energia contra o plasma humano pirata. O que causou tamanha explosão que abriria um buraco negro no cosmo chamado de abismo de Sidamoom. 

O automóvel voador com seus pára-brisas ensanguentados pilotado por seres humanos. Caído no chão o menino ainda viu o cano de escape ia deixando pra trás uma nuvem de negro fumo, que ia desenhando caveiras, navios náufragos, arcas e tesouros, há muitos tempos desaparecidos. A espessa calda negra de desesperanças e torpor a sobrevoar continentes e as ilhas de onde surgiria a pangeia. Nos regaços pura calmaria. Ninguém ficava incomodado com nada daquilo. Especiarias vendidas na porta do templo, sem o menor pudor. Plantas aromáticas. Os peixes esticados derramavam suas escamas sobre as redes que brilhavam mortas e vivas, na luz do sol, no cheiro forte de maresia, nos temperos e açafrões. Os bailes teriam tochas acesas, palhas de coqueiro e os pães sem fermento nem sal eram cozidos as pressas na pedra mó. A fonte cheia de seus mistérios tragara ferozmente muitos heróis e guerreiros valentes, e encerrava em seu ventre as ninfas, os pássaros trovões, os camaleões alados e os jacarés de chifres de marfim e carapaças de mármore. A libélula de cetim e seda da china defendia a moça da torre do castelo. Trazia pra ela belíssimos presentes com desenhos de magos discípulos de Fumanchu e das minas encantadas da Macedônia. Cardinais faziam danças e plasmavam o carmim dos céus das escadarias do pantaleão. A serpente vibrante de Oregon para fazer vítima mais uma virgem da ilha de Násara sairia de sua caverna ao cair da tarde. No exato momento que o vulcão de Amom entraria em erupção e os deuses de Mali abandonariam suas tendas para irem banhar-se na piscina de Tentro, para adquirir forças para combater no vale de Mignon. Odaliscas seguiam pelo caminho levando canforas contendo licores, candelabros acesos, ardendo ossos humanos e cera de opala. O mago de Orion ficou no alto monte, segurando seu cajado, impassível desejava que as águias surgissem das águas que o mar tragara. O vulcano expelia larvas de fogo e aço derretido. E quando batia na areia da praia virava em estátuas de gigantes forjado em puro ferro. Fechou os olhos.

Cabelo de fogo estava morto. Oficialmente morreu atropelado. Bêbado, tentou atravessar a rua, na altura da ponte de pedra. Ninguém jamais saberia que fora por dívida de maconha. O tráfico não perdoa. Seu Malaquias, o vigia do armazém de estivas de Seu Joaquim Cãindu, encontrou o corpo caído. Se quer se deu ao trabalho de ir avisar sua mãe que morava na rua da poeira. Melhor assim, teria companhia para a longa madrugada que começava.