CABELO DE FOGO



O vento frio, ao sol do meio dia. O deserto de acordar as almas. Curvadas de medo, sob o peso dos pecados das almas. Coração contrito, todo enrugado. A chuva indo por debaixo da manhã de sol, entre soluços, pranto matina. Vô, olha o arco-íris! A tia disse que tem um pote de ouro no final? Tão pertinho, dá até pra gente ir até lá. Não por aquela estrada, de ladrões e salteadores. Um caminhão parado no caminho. A barra de direção quebrada. A mulher chamou por padre Cícero, melhor que ele viesse ou teriam sérios problemas no precipício. Os escudos sempre servem para proteger. 

O menino fantasiado de matuto, tão satisfeito. Cabelo de fogo, ansioso pra participar da quadrilha junina em sua escola. A mãe acometida de enxaqueca, infelizmente não poderia ir. Os vizinhos acenderam as fogueiras do santo que nem sabiam que seu nome verdadeiro. Santo Antonio chamava-se Fernando? O disco voador passou rente aos fios de alta tensão produzindo um ruído parecido com o de um foguete de artifício, ao chegar lá na frente sumiu. Ou explodiu? Os extraterrestres vieram numa época imprópria. Se soubesse daqueles festejos com fogo e fogos deixariam pra vir outro dia. Que julgamento fariam de nós? Voltariam com má impressão dos humanos? Tecnologia nada compatível com as práticas. Era como estar na era do surgimento do fogo, e no terceiro milênio a um só tempo. O que mais se via eram almas secas. Os ventos as dobravam, quase tornando-as quebradiças. E não conseguiam afastar os maus espíritos. A praia deserta, a terra molhada. Os homens parados eram feitos lenha. O desejo e o medo juntos entraram dentro da noite. 

A massa no balcão era pra fazer um bolo. O labirinto não tinha cheiro, mas o leite leitoso cegava se caísse nos olhos. A cobra passava dum buraco pra outro o lenhador de um só golpe a partiu. Cada pedaço desapareceu pra cada lado pra ter duas mortes. Os filhotes no ninho de urubu regurgitavam. A calada da noite, impreterivelmente muda. O rapaz parou a moto na calçada, na mão trazia um embrulho. Nada sabia da baleia encalhada, na tevê. Tinha mais o que fazer. Havia muito gente olhando, do cais. Nada fácil o resgate. A menina queria história de menino de cabelos de ouro. O peixe, que não era peixe, saiu e entrou da história de trancoso que o avô contava. Era quase madrugada, mas ele conseguia, quase de graça, um dia ensolarado dentro do quarto. O sol chegando pela sua boca, entrando clareando e esquentando tudo. Colocou também umas árvores com folhas molhadas de orvalho bem ao lado da cama. Ao engolir o comprimido trouxe uma paz pra paredes e a bebida anil ficou encima do criado mudo. O milho, pra tirar as palhas, os cabelos, o cheiro de milho verde, bom pra cozinhar. A fotofobia, o rosto inchado de sono da noite mal dormida. Os pelos do braço também ficavam brancos. O pátio da escola, o musgo subindo pelas paredes. 

Era uma vez um menino dos cabelos dourados, e todos o chamavam de Cabelo de Fogo. Um dia, chegou a casa, e os cabelos estavam pretos. Até então ele não sabia. A mãe perguntou o que tinha acontecido? Ele disse que havia encontrado uma velhinha muito simpática que lhe oferecera pinhas. Como assim pinhas? Logo a fruta que sua vó mais gostava? E daí? Você aceitou as pinhas da velhinha? Não, ela não estava dando, mas vendendo. Ela falou que daria uma pra mim, se eu lhes fizesse um pequeno favor. E que favor foi esse? Simples, atravessar a rua, bater a porta da casa logo ali em frente, e entregar uma encomenda. Aceitei. Ao bater na porta fui atendido por um homem velho, barbudo, que me convidou a entrar. A casa era muito escura. Pensei em voltar, desistir, mas ele parecia muito legal. Topei. Passamos por um corredor escuro. E nada enxerguei. Ao chegar à sala, estávamos no meio de uma floresta. Um cavaleiro trajando armadura de ferro, veio ao nosso encontro. Sem dizer palavra entregou um cetro de prata, ao velho, que com ele tocou minha cabeça. Sem entender nada o velho apenas disse que eu tinha cumprido minha parte da missão e que podia ir embora. Só que todos sumiram e vi-me só. O dia de céu límpido, de repente tornou-se ameaçador. Um pequeno redemoinho se iniciou no topo da montanha, e veio girando com muita força. Arrastando tudo que encontrava pela frente. O velho reapareceu no alto de uma montanha, no meio de umas pedras. E começou a perder os poucos cabelos que tinha, sua pele começou a soltar-se da carne e daí a pouco era apenas um esqueleto cujos dentes que soltavam um a um e saiam voando. Seus órgãos: pulmões, coração, a aorta estourada, igualmente voavam. O sangue voando batendo no pára-brisa do carro e sua família viajando. E tudo ficou vermelho, dentro e fora do carro. As folhas das árvores tremiam e se soltavam com o vento forte. Primeiro as folhas velhas, depois as folhas verdes. 

Ouviram tiros que vinham do alto. Muito longe. Todos os olhares estavam voltados pra lá, pro alto da serra. Tinha um atirador de elite. A mulher com longo vestido e uma coroa na cabeça, vinha empurrando um carrinho de supermercado. O impacto do tiro empurrou sua cabeça pro lado. A coroa caiu no abismo. O jato de sangue, a queda. Os livros voavam das instantes, o chão inundado na casa do mago. Mobdick saiu do livro e ficou encalhada entre uma instante e outra. O velho e o Mar passaram e o barco. As folhas de papel boiando se diluindo. Mangas bonitas despencavam do pé. Ao tocar o espelho d’água causavam imenso tsunami. Os gafanhotos surgiram em nuvens verdes, o enxame fazia um bailado espetaculoso. As cortinas do dia, duas colossais colunas de água de chuva torrencial, caia como cachoeiras nos dois extremos da cidade. Uma cascata de cada lado da terra. O menino do cabelo de fogo trazia sua pipa encostada ao peito com cuidado para não molhar. Menino de Vidro, cabelos molhados, cabelos de ouro. A moça da janela ficou lá, por dois mil anos. A maquiagem esmoreceu. Cansada, fechou os olhos, nunca mais enxergaria como antes. A bolha como um aquário de pirilampos, que rangia nas dobras das asas, feito dobradiças velhas carecendo de óleo. E caíam em câmara lenta. O menino estava a ponto de desistir, não mais queria entender. Lápis de cor derretiam feito larva vulcânica e as cores se misturavam num carnaval de arco-íris. O pássaro de fogo emitia um canto mavioso, cujas notas mais altas explodia taças, e os cálices da cristaleira da casa da velhinha. 

Os dinossauros de ferro passavam devagar rangendo engrenagens. A cada pisada abriam imensas crateras, e os homens pigmeus da terra dos Pirineus atiravam flechas e lanças que sequer penetravam o couro sintético dos monstros jurássicos. Amazonas montadas em cavalos marinhos, voadores, exibindo corpos voluptuosos, de ouro fosco, diáfanos, atmosféricos. Bando de morcegos donde saltavam maruins reluzentes. As pulgas de diamantes despencavam do alto das árvores gigantemente acesas, neon. Seus frutos eram como estrelas e cometas. Uma revoada de tartarugas, indo ao encontro de ferozes pterodáctilos com asas de latão com tentáculos de marfim, garras de bronze, se digladiariam. Causando pandemônio cósmico. As tanajuras luzidias de ouro de Ofir tentavam escalar os dorsos de pulgões de camurça e guache, acabavam escorregando acabavam caindo vertiginosamente no precipício dos príncipes dos malogrados. Uma mulher deusa saída das profundas do mar, vestida de conchas, bordadas de águas marinhas, colar de pérolas, pulseiras de ostras. O espírito de um pirata voou saído dos destroços de uma caravela da ilha dos mil anos de tormentos. Subiu até a sereia empunhando sua garrucha apontando-lhe o peito deu-lhe tiro certeiro. Ainda deu pra ver a sereia despencando no precipício. Mesmo caindo a moça das profundezas do oceano desembainhou sua espada e desferiu um raio de muitos megawats de energia contra o plasma humano pirata. O que causou tamanha explosão que abriria um buraco negro no cosmo chamado de abismo de Sidamoom. 

O automóvel voador com seus pára-brisas ensanguentados pilotado por seres humanos. Caído no chão o menino ainda viu o cano de escape ia deixando pra trás uma nuvem de negro fumo, que ia desenhando caveiras, navios náufragos, arcas e tesouros, há muitos tempos desaparecidos. A espessa calda negra de desesperanças e torpor a sobrevoar continentes e as ilhas de onde surgiria a pangeia. Nos regaços pura calmaria. Ninguém ficava incomodado com nada daquilo. Especiarias vendidas na porta do templo, sem o menor pudor. Plantas aromáticas. Os peixes esticados derramavam suas escamas sobre as redes que brilhavam mortas e vivas, na luz do sol, no cheiro forte de maresia, nos temperos e açafrões. Os bailes teriam tochas acesas, palhas de coqueiro e os pães sem fermento nem sal eram cozidos as pressas na pedra mó. A fonte cheia de seus mistérios tragara ferozmente muitos heróis e guerreiros valentes, e encerrava em seu ventre as ninfas, os pássaros trovões, os camaleões alados e os jacarés de chifres de marfim e carapaças de mármore. A libélula de cetim e seda da china defendia a moça da torre do castelo. Trazia pra ela belíssimos presentes com desenhos de magos discípulos de Fumanchu e das minas encantadas da Macedônia. Cardinais faziam danças e plasmavam o carmim dos céus das escadarias do pantaleão. A serpente vibrante de Oregon para fazer vítima mais uma virgem da ilha de Násara sairia de sua caverna ao cair da tarde. No exato momento que o vulcão de Amom entraria em erupção e os deuses de Mali abandonariam suas tendas para irem banhar-se na piscina de Tentro, para adquirir forças para combater no vale de Mignon. Odaliscas seguiam pelo caminho levando canforas contendo licores, candelabros acesos, ardendo ossos humanos e cera de opala. O mago de Orion ficou no alto monte, segurando seu cajado, impassível desejava que as águias surgissem das águas que o mar tragara. O vulcano expelia larvas de fogo e aço derretido. E quando batia na areia da praia virava em estátuas de gigantes forjado em puro ferro. Fechou os olhos.

Cabelo de fogo estava morto. Oficialmente morreu atropelado. Bêbado, tentou atravessar a rua, na altura da ponte de pedra. Ninguém jamais saberia que fora por dívida de maconha. O tráfico não perdoa. Seu Malaquias, o vigia do armazém de estivas de Seu Joaquim Cãindu, encontrou o corpo caído. Se quer se deu ao trabalho de ir avisar sua mãe que morava na rua da poeira. Melhor assim, teria companhia para a longa madrugada que começava.

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