Carnaval. Bloco na rua. A moça de
óculos. Impassível. Permanecia lendo. As páginas do livro iluminava. Seu rosto. Tornando ainda mais alvo. Sereno. O mundo a lia, também. Lia. Os pássaros a
liam. As árvores, o vento. A tarde. Caindo. Devagar. O cantor parou de cantar. Por
que o cantor parou de cantar? Estava doente. Estaria realmente doente? Que
doença tinha? Talvez tivesse morrido. A música, porém, continuava. Soava alto ainda, sua voz.
Carnaval, tempo de amar. Indiscriminadamente. Amor fantasia.
Carnaval. As pessoas se amando.
Mais intensamente, pois era carnaval. Amor irreal. Surreal. Sem compromisso, pois era carnaval. Teriam a
quaresma inteira pra pedir perdão, a Deus. Ao padre, ao sacristão. A si mesmo.
Ao próximo carnaval. Ao mundo. Por que não? Pelo que? Pelas faltas, pelos
excessos. Pelos atos, de fato. Pelas palavras. A omissão. Pelo álcool. A embriaguez do frevo.
Pelo sexo adoidado. Pela ressaca de corpo.
Ressaca da alma. Choro. Não dava pra voltar a trás. Não daria?
Nas searas, o carnaval sempre
diferente. Os negros, os batuques. O maracatu. O quilombola. O mela-mela, de
barro. Tirado de dentro da barragem. O colorido contracenava com o céu, o
amarelo lutando com o azul. O branco. O negro, o dente branco, o cachorro negro. A raiva, o
dente, o osso e o urubu.
O cantor. Tinha um caso, com
outro cantor. E os professores. Riam na praça. Nos caminhos. As crianças
correndo, as bicicletas. O homem de rua.
A oportunidade de redenção. A caridade com prazo de validade. Pra quando viesse a quaresma. Dar esmola. Pra expiar pecados. Com certificado
de anuidade. Os padrinhos sempre fazem afagos nos afilhados. Mas somente quando
queriam. No momento não queria.
O cantor. Homem com cara de
menino. Precisava de subsídio pra compra de um cigarro. Canabis sativa. Pediu
dinheiro a um, que não tinha. A outro, que não queria dar. A um terceiro que
daria. Mas só se tivesse. E era sempre assim quem mais queria, nunca tinha pra
dar. Canabis ia ter que esperar. In. Felizmente. Ora ela. Ela sabia esperar.
Tinha uma paciência! “Impaciência de pulga.” Se vira peão! Sabia. Arranjaria o dinheiro. Sempre dava um jeito.
Amores desfeitos. O velho pai. Pra esses casos. Tinha um dizerzinho popular:
“Dinheiros curtos, morenas apaixonadas.”
O cantor. Amava o amigo com muita
paixão. E quando veio a decepção. Quase morreu de amor. Nada mata mais que o amor.
Amor não correspondido. Morreria! De amor?
Os pecados. Engraçado, ficam todos esperando o carnaval chegar. Carnaval tempo de pecar. A saírem por aí. Se esbaldando. Fazendo homem beijar na boca. Outros homens. Só
porque era carnaval. Carnaval faz mulheres amarem, tresloucadamente. Declararem-se
a outra. Traírem seus homens. Por vingança. Esperara o ano inteiro. Agora que
era carnaval. Tudo valia. Tempo de transar. Transar trans-louca-da-mente.
O beijo. O choro. O
arrependimento. Antecipadamente. O cantor morreu. Teria sido de Aids? Observou
como estava tão magro ultimamente? Primeiro teve febre. Muita febre. Calafrios.
Viu? Viu, cada um dos seus ossos no
espelho. Viu? O cabelo caindo. Ficando ralo, bem pouquinho. Os olhos afundando,
lentamente. Espelho, espelho meu? Existe alguém tão horrendo quanto eu? Tem.
Carnaval. “Tem carnaval! Tem um fusca e um viô...”
Genital despudoradamente exibido.
Prova do seu amor proibido. Amor. Sexo avassalador. Agora exibia carne
descarnada. Descarnal, corpo de carnaval. Um cigarro de Canabis. Daria pra
aliviar muita coisa. Esqueceria, o desconfortável prazer de ver no que havia se
transformado. Se travestindo de caveira. Ótima fantasia de carnaval. Zumbi de
si mesmo. Seria engraçado? Sairia na rua claudicante. Julgariam que estivesse
bêbado. Fraco. As forças o abandonavam. Um bobo. Não de carnaval. Não exatamente,
realmente bobo.
O cantor. Amanhecera morto Não
fosse carnaval, ninguém acreditaria. Não acreditaria justamente por ser. Seria
preciso a dor de uma quarta-feira de cinzas pra acreditar, que realmente
morrera. Não se morre uma estrela assim. Não em pleno carnaval. Mas se isso
tivesse realmente acontecido? Teria morrido feliz. Não se fora num dia
qualquer. Em nome do prazer. Tinha que ser no carnaval. Pareceria uma daquelas
caprichadas, caprichosas fantasia de carnaval.
Jamais esqueceria os beijos. Molhados de
cerveja. Beijos com sabor Canabis. Beijos de fumo. Um trago um beijo e soltava a fumaça. No bloco de carnaval tudo
vale. Beber, transar nos banheiros dos bares. Urinar vestido na fantasia, porque macacão é tão ruim pra quem quer aliviar a bexiga. Se se
molhar de cerveja. Ficar com uma cara engraçada. Os cabelos duros de cerveja,
maisena, detergente, uísque, talco, perfume barato, óleo de comida. Graxa de
sapato. Ficar com cara de minerador. Os bolsos cheios de areia do rio. Ouvidos cheios d’água. Cabeça cheia de nada.
Carnaval. Tempo de outros tempos. De ser. Outro ser. Tempo de não ser. Tempo. De esquecer.
Não ser o mesmo. De sempre. Tempo. De inventar de ser outro. Fantasia. Desinventar de ser. Desilusão. Se fantasiar de morte. Morrer.
"a nossa vida é...
um carnaval...
jogaram cinza...
caiu a máscara da ilusão..."
Fabio Campos, 14 de fevereiro de
2019.