BABY-LLON Cap 1 "Ossos"



FICÇÃO: BABY-LLON                Cap.1 Ossos



Podia dizer que havia muito azul. Saindo de dentro do mar, entrando por dentro do céu. Galopando até um infinito. Matando por desprezo, o cais do porto, as gaivotas, os barcos e pescadores. As nuvens do jeito que estavam, algumas mais escuras gritando para as mais claras, pra que fugissem dali, depressa. Isso trazia coisas de recordar, de outrora. O homem, se lá não estivesse, talvez tanta falta não fizesse, porém ele estava lá. O silêncio nascia a partir dele. Não era poeta, junto com o gosto de fumo, na boca, um resto de poesia, de tempos idos. Aquilo deixava-o nu. Como no sonho recorrente.


As pessoas passavam. O sexo exposto, as nádegas magra, e fria. Quem passava, via-o, e seguia, indiferente. Uma mulher de cabelo preto, parte dele escondido debaixo do chapéu, branco, de pano engomado. O entorno dos olhos, um exagero de sombreado, a boca de batom, quase preto. Feito personagem das fitas de Carlitos. Deteve-se mais tempo olhando-o, porém sem parar, e seguiu. Os cafés estavam lotados, o fim de tarde se pronunciava, ameaçador, de chuva. Um pintor concentrado na sua tela, reproduzia o chafariz, a praça, a catedral ao fundo. 



Vinte e um homens, era o número de irmãos, que tinha. Nunca na vida jamais se reuniram. Quem sabe na infância talvez, e nunca mais, em momento algum. O pai viúvo. Aos noventa anos. Desde os sessenta anos, ficando caduco, broco. Detentor de dois mil hectares de ódio e terras. A maioria dos filhos, agourava a morte do velho, esperando herdar, cada um, sua parte. O homem nu na praça, ficara sabendo, do desaparecimento de alguns familiares. Em menos de dois meses, onze haviam sumido. Ninguém, além dele havia percebido isso. Dentre os desaparecidos, alguns primos, um tio, e mesmo um dos seus irmãos. Simplesmente sumiram. 

O homem que estava na praça se chamava Djalma. Senhor Djalma, do ministério público estadual, aprendiz de rábula. Dentre os irmãos, nem era o mais velho, nem o mais novo. Ficava ali na faixa do meio. Possuía um rosto extemporâneo. Senhor Djalma, poderia ter nascido no século dez, ou no vinte e um. No Paquistão, ou nas América. Iria sempre aparentar um qualquer. O rosto espadaúdo, caucasiano, o bigode vasto, o cabelo ralo, um tufo de fios brancos se pronunciando nas têmporas. Senhor Djalma, poderia estar trajado de pirata, de cowboy, ou de padre, qualquer figura, cair-lhe-ia muito bem. Mas, naquele exato momento estava nu. Aliás, era como se sentia, naquele instante. Vestir vestia sim, uma camisa, de pano fino, vaporoso, bege, de gola, uma carreira de botões descia pelo meio do peito, A calça também de tecido. Uma das mãos no bolso, a outra segurava um disco de vinil, de Altemar Dutra. Dali a pouco iria pra um bar, e pediria uma bebida e que colocasse o disco pra tocar. Chapéu de massa, surrado, nódoas de bolor entre a fita da copa e as abas. O cigarro curto, de pouca fumaça, amassado próximo ao filtro, quase que desaparecia no bigode preto-castanho. Senhor Djalma pensava. Em que pensava? Nunca casara, mas tinha uma filha que se chamava Rana. Aonde e como estaria? 


Da praça onde estava, senhor Djalma podia ver, lá no alto, o muro do cemitério. Teve vontade de ir até lá. Visitar o mausoléu da família. Toda vez que via o cemitério, uma imagem lhe vinha. Os ossos de seus familiares, dentro de um saco de estopa. Foi no dia do sepultamento de uma tia, uma irmã de seu pai, que o detestava, era criança ainda. Ao escavar a urna o coveiro teve que retirar os ossos dos familiares. Pegava-os com as mãos. Colocava-os todos num saco. Gesto corriqueiro para a maioria dos que ali estavam. Para o senhor Djalma, que era só uma criança, não. Pois sabia, dali alguns anos, seriam os seus próprios ossos, que seus familiares estariam contemplando. Ao final, o saco com os ossos foi colocado sobre o caixão, e a tumba lacrada com cimento e cal. Jamais esqueceria aquela cena. Algo mais, além dos ossos, ficaria daquela cena.


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