Tinha uma coisa com ele. Não gostava de
passar, naquele corredor. Apesar de curto, tinha pouco mais de três metros, levava
ao hall da escola. Tantas foram as vezes, que sonhara com aquele par de paredes.
Sonhos, às vezes bons, outras não tão bom. E até pesadelos! Desde o último que
teve, já passara meio século. Muita poeira, teias de aranhas, fezes de morcegos
escalavam potentes vigas de madeira, que se cruzavam, se apoiavam umas nas
outras. Naquela época ficava a muitos metros à cima de sua cabeça. Pareciam tão
maiores do que eram realmente. Paredes amareladas, encardidas. Carimbadas de
grude das mãos dos meninos. O sol emprestava um pouco de claridade pra quem
precisava passar ali, e tinha medo de escuro. Pelo menos até umas cinco horas
da tarde podia contar, com a aquela ajuda, do rei da luz.
A casa onde morava, também tinha corredores.
Aliás era mais corredor, que casa. Um dia, melhor dizendo, numa noite, de
dentro de um deles, surgiram criaturas fantasmagóricas. Seres de um mundo nunca
imaginado. Homens com cabeça de porcos. Cavalos com cabeça de cassácos. Negros
musculosos, seminus, coberto com pedaços de pele de animais. A cabeça raspada.
A pele luzidia, como se fossem trabalhadores de minas. E que suavam e suavam,
nas profundezas das cavernas onde trabalhavam. Dia e noite escavando um minério,
de pouco valor. Aquilo, não era sonho, era real. Uma projeção do passado. Nunca
ficariam ricos. Perderiam suas vidas e seus espíritos ficariam aprisionados
ali. Para sempre.
Era uma vez um homem que amava. Amava tudo
que via. Amava todas as coisas com muita intensidade. Vivia dizendo ao seu
coração, que amava todas, todas as meninas do mundo! Tinha firme a ideia que as
amava, com um amor gratuito, sem querer nada em troca. Não queria, nem esperava
ser correspondido no amor que amava. Prometera, a si mesmo, que jamais as
desejaria sexualmente, apenas as amaria, gratuitamente. Tinha medo de manchar a
pureza que saía dos seus corações. Pedia perdão, a Deus! Uma coisa não negava, vontade
tinha de abraçá-las, uma a uma. Beijar seus cabelos. Faria uma afago com as
mãos. Mas sabia, poderia ser mal entendido por isso. Um dia, tremenda decpção, ainda causaria, todo esse amor.
O homem via os cavalos, gostava de ficar
olhando eles, correndo no cercado. Amava ver suas crinas, seus rabos balançando
ao vento resplandecendo no clarão do sol. Se compadecia de cavalos velhos, que
os donos não queriam mais, assim como tinha dó, dos cachorros largados na rua,
dos gatos que não tinham dono. Chorava em seu coração se via uma casa velha de
taipa, abandonada. Conversava com todos. Era um diálogo diferente, na verdade,
um monólogo. A conversa, com os cavalos velhos se dava assim, pensava: Ê
cavalo, quem te abandonou assim? Quem dera pudesse eu levá-lo comigo, pra minha
casa. Porém não posso. Você não conseguiria escalar os dezessete degraus até o
meu apartamento. Você, não caberia dentro do meu banheiro. Pra mim já é
apertado, imagine? Pedia ao vento que cuidasse dele. Pedia ao sol que não o
castigasse tanto. Aos mosquitos nada pedia, eram tão insensíveis. Prometia que
um dia voltaria. Ainda que fosse pro seu sepultamento. Amava as cores das
nuvens, e ficava morrendo de saudade, quando elas precisavam partir. Levadas
pelo vento. Vento, vento, vendaval. Se havia uma coisa, neste mundo, da qual
teria saudade quando morresse, seria o azul do céu.
Era aquele, um dia de bebê. Dizia assim, e
ficava rindo do trocadilho: “Um dia de beber!”. Era um menino, tinha só um
ano e alguns meses de idade. Amava-o. Amava-se, pois o bebê era ele próprio. O
cabelo encaracolado, a pele morena, o nariz afilado. Tudo nele, remetia a ele.
Pensou o que seria dele? O que o destino lhe reservava? Sabia que o que chamava
de destino, Deus chamava de confiar em Deus. E, na sua infinita misericórdia já havia
pensado primeiro que ele, a respeito do bebê. Mesmo muito antes dele nascer.
Não adiantava se preocupar. O ocupar-se antes da hora, era tão inútil. As coisas
que estavam pra acontecer, aconteceriam mesmo que o escritor terrestre jamais
imaginasse. O escritor celestial providenciara. Rezas eram apenas rezas. Poder de mudar acontecimentos, que precisavam acontecer, não tinham. Para o bem
daquele, e de todos os bebês do mundo. Os nascidos e os que estavam pra nascer.
Pensou em sua mãe. Pensou como ela rezava. Todos os dias rezava. As orações de
sua mãe, foram subindo, subindo, uma atrás da outra. Subiram com tanta insistência que chegara a Deus. Pelo
menos com cinquenta anos de atraso. A perseverança, acabava por vencer, pelo cansaço. Assim, como
a mãe de Santo Agostinho.
Haviam histórias que não precisavam ter pé, nem
cabeça. Nem corpo. Precisavam dizer, sobre sentimentos. Dizer, de uma parede que se abria para
deixar surgir um novo mundo. Algo tão incrível que jamais contara pra alguém.
Tinha medo de ser mal entendido. De ser chamado de louco. E mesmo excluído
do grupo de colegas, por aquilo. Naquela noite, levantou da cama pra ir no
banheiro aliviar a bexiga. Teria que passar no corredor. O corredor da aparição. Ficou com
mais medo. Isso só aumentava a pressão da urina na bexiga. Passou horas, entre dormindo e acordado, criando
coragem. Abriu um pouquinho a porta. Lá estava a parede, negramente calada. Sem
nada lhe dizer. Nada acontecia. Nada, nem desse, nem do outro mundo. Uma
parede, como todas as outras. As coisas não eram como, nem quando, a gente
queria. Se tivesse de acontecer, simplesmente aconteceria. Sem forçamento de
barra. Pelo que lembrava só aconteceu uma vez. Todas as outras, foram frutos de
sua imaginação.
Contemos então como foi o ocorrido, na única vez
que a parede do corredor abriu o portal pro outro mundo. A bem da verdade, não
é que a parede se abriu. A parede começou a projetar, sobre si mesma, um imenso painel vivo,
tridimensional. Se transformando numa imensa tela, exibindo
imagens de outra dimensão, como num cinema vivo. Em que o expectador tinha a
possibilidade de interagir com as personagens que iam surgindo, na visão super
realista. Belíssimas paisagens, um pôr-do-sol africano se materializou. Elefantes
e girafas se despediam de mais um dia de sobrevivência, no império majestoso da selva, onde vigorava a lei do mais forte. Hipopótamos adentravam um lago, soprando água pro alto, de suas enormes narinas. De repente, mudava a cena pro polo norte. E o que
se via era só brancura de gelo. E o vento frio vinha bater na porta do quarto do
menino. Havia, no sopé da montanha uma
casa feita de troncos de madeira. O inverno rigoroso empurrara todos os seres
vivos pros seus abrigos. Dava pra senti-los, escondidos dentro das cavernas, ursos hibernavam. As aves migraram pra outras regiões. As cobras entocadas, passariam meses sem se alimentar. De repente um homem negro
surgiu naquele cenário. Era alto, em estatura. Vestia peles de animais, que
cobriam parte dos músculos vigorosos que tinha. O homem parou bem próximo a
parede, cruzou os braços e falou.
Seria tão menos dolorido se todas as pessoas
do mundo, ao pressentirem a morte, entendesse-a, respeitasse-a. E
principalmente aceitasse-a. Entendeu a mensagem, o fim estava próximo.
Infelizmente não era como queria. Não era do seu jeito assim que as coisa
aconteciam. Senhor Djalma ficou olhando. Contemplava ele próprio dentro do
caixão. Parecia tão sereno, não o que contemplava, mas o defunto. Parecia, apesar de não
ter ocorrido de forma natural, que aceitara passivamente a morte.
Lembrou de quando seu pai morreu. Na noite do
velório, recusou-se olhar o corpo do féretro. Uma lua minguante silenciosamente
compartilhava do seu silêncio, da sua angústia. Quando o sol despontou, bateu um
sono. Preferia ir dormir, a seguir o cortejo. Negava tudo daquilo. Queria que
fosse um daqueles pesadelos que quando viesse a manhã, se dissiparia. Simplesmente não queria
aceitar aquela realidade. Tinha esperança de viver ainda, tantos momentos ao
lado dele. Anotara numa caderneta, um monte de coisas que tinha pra dizer pra
ele, quando voltasse do hospital. Uma espécie de diário. E ele voltou. Só que morto.
A morte, tão cheia de surpresas. Ninguém, em
sã consciência, queria morrer. Embora existam os que se preparam para ir ao seu
encontro. E se o fazem, é por entender que ela, é algo inevitável.
Entendia que tempo, não tivera pra esse preparo. Talvez por isso, vagava em
espírito, até o presente momento, por não aceitar a morte. Não, da forma como viera, ao seu encontro.
Fabio Campos, 06 de dezembro de 2020.
Ilustra o penúltimo capítulo deste Conto, foto da capa do disco de vinil de Benedito de Paula, de setembro de 1982. "Ah! Eu chorei!" É uma, das músicas desse LP.