O homem, disse: “Go to hell Man!”, e fez o
que tinha de fazer. O que disse, ficou
impresso na mente, para sempre. Vestia uma calça jeans. O velho jeans desbotado, era o que mais chamava a atenção em cima dele. Nos pés um par de botas velhas, a camisa
surrada, marrom da cor do cenário. O chapéu de caubói, dava-lhe um ar de
americano. A sua mochila tinha, na aba, que servia de tranca, vários botons com
cores e estrelas, azuis e vermelhas. A frase escapou-lhe da boca, como um tapa
de estalo, na cara da tarde. Sorria um riso cínico, de uma carreira de dentes
minúsculos, artificiais. As palavras lhes saíam assoviadas, secas, de uma
língua sem saliva. As pupilas dilatadas Se não fossem atentos os ouvidos que
ouviam, jamais entenderiam. Cairiam no oco da tarde. A vontade de viver, se
perdendo nos prados amarelos, no meio do sol quente, do vento, e da poeira. Indo
acabar se enganchando nas latas de lixo, cheias de moscas a beira da estrada. O
homem tinha várias tatuagens. Uma, que tomava todo o antebraço era uma mulher
nua, enroscada por uma enorme serpente. Ficou conhecido como o homem do crime,
no Bar do Bola Sete.
O homem, que disse que amava todas as
meninas. Alguma coisa muito cavernosa tinha, que ninguém, além dele, sabia. Tem
certas horas, que aparentamos sermos pessoas tão puras, tão poesia. Pra em
seguida, nos revelarmos verdadeiro chacal, habitante das trevas, e do lamaçal. O
coração, coitado, cheio de lodo fétido! Isso dependia do estado de humor que o espírito tivesse. Era motorista de um jeep verde, de capota preta. Os óculos de aros e
lentes tão redondas, deixavam-no com certo ar de intelectual. Estupidamente
inteligente. Jamais vestira uma calça jeans na vida. Impecável no manequim de
tecido, engomado. Detestava os hippies. Achava que eram todos um bandos de
maconheiros, filhinhos de papai que nunca sofrera na vida. E que viviam de
sombra e água fresca. Um bando de maricas que odiava o trabalho, o capitalismo,
a exploração do homem pelo homem. Cujo lema: paz e amor, era só um lema.
Se traduzia pela paz que o cigarro de maconha lhes proporcionava, e o amor, em sexo grupal, total, liberal.
O homem que morreria, senhor Djalma, entrou
no bar. Sentou num daqueles bancos altos que ficam próximo ao balcão. Apoiou os
pés numa espécie de estribo. Pediu uma cerveja. Nem bem o barman ligou a
vitrola, tomou-a! Engoliu-a em menos de três minutos, tanta era a sede.
Sentiu-se cheio, de espuma. O arroto subiu queimando as narinas, trago
forte de cevada. Daria um tempo, antes de pedir mais outra. Os olhos vermelhos,
escondia-os atrás de um óculos ray-ban. Lembrou da motocicleta que, um dia deixara
quebrada, lá trás, na estrada. Não seria melhor ter pedido café?
O homem, e sua xícara de café. Uma xícara de
café tinha tanto a dizer. Dizia de uma tarde fria, chuvosa. Lá pela tardinha, o
dia se foi, e antes que a noite viesse, com seu vento negro, de matar as cores,
de cobrir o mundo. O mundo, chorou. A chuva, tinha esse poder de fazer as coisas
ficarem tristes, pensativas e de fazê-las chorar. Dona Alzira, toda manhã ficava na
calçada, com uma vasilha na mão. Esperando o homem do leite, que viria no mesmo
instante em que os meninos entrariam pelo portão da escola. Logo ali a frente. Perfeita
sincronia, leite chegando, meninos entrando na escola. Dona Alzira que rimava
com vasilha, menino que rimava com traquino, jogar bola que rimava com escola. Os
meninos se foram, cresceram, viraram homens feito. Seu José do leite morreu,
morreu o cavalo que montava. Morreu a rua de paralelepípedo, que virou avenida.
Morreu o pé de castanhola do pátio da escola, morreram também as professoras, a
diretora e a zeladora. O velho portão com as iniciais do nome: G.E.P.F.C. tudo se
acabara. Dona Elvira, no entanto continuava lá, de pé, na calçada. Esperando o
homem do leite.
O homem moreno, com cara de setenta anos. As
rugas eram de verdade, e cabelos grisalhos também. Andava como quem dançava coco, e
tinha tantas histórias no andar. Conversava com a estrada. Pedia a Deus que a
dor no braço não viesse muito cedo, precisava de força pra aparar as canas
caiana, que o engenho manual faria virar garapa. As abelhas dóceis, atraídas
pelo doce mel, da cana. O pneu do carrinho baixou, estava furado. Ao passar na
rua da feira, ia cantando as modinhas do coco de roda que à noite iria ensaiar
com as meninas.
“Menina do laço branco/Sobrancelha da cor de
veludo/Me dá o teu vestido/ vou te olhar atrás do muro”
Não, não havia mais nada a fazer. O fim
estava próximo, literalmente. Tentou lembrar onde tudo começou, inútil
tentativa. Melhor ficar quieto. Aceitar, doía menos. Agora, pouco importava, se
quando morria, se tomava café, se tomava cerveja, se vestia jeans, ou calça de
tecido. Isso pouco importava agora. Se o que o matara era um mendigo, ou um
hippie. Se fora morto por conta de uma traição, de um triangulo amoroso, ou de
uma dívida não paga. Se era uma manhã cheia de sol, ou era tarde, chuvosa. Importava o que havia vivido. O amor que havia
sentido. Não tinha certeza, se fora olhar, a menina, que talvez se chama-se
Cícera, Letícia, Alícia... a tomar banho nua, no quintal da vizinha. Não havia
mais certeza, alguma. Se tivera tantos irmãos, se seu pai deixara sua mãe. Se a estrada logo ali a frente, tão cheia de luz, lhe levaria pra casa, ou pro céu. Isso, pouco importava agora. Não tinha tanta certeza, se
o que vivia era sonho, ou fantasia. Tudo isso, pouco importava... Agora.
14 de dezembro de 2020.
Ilustra este último capítulo do Conto: Baby-llon, foto da Contra-capa do disco Long play, de Djavan "Alumbramento" 1979. Ganhei de presente, do meu filho Joaddan.
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