As Primas 2º Conto da série Quaresma-Pandemia 2021



Era tempo de um pedaço de quintal. Reduzido no tamanho, ampliado em outra dimensão. De aridez implacável de deserto. As coisas adquirindo outros conceitos, outros valores. O sol forte ao ponto de cegar os olhos, a sufocar, o calor, a poeira, a tirar-lhe o fôlego. Um deserto existencial, em toda a sua extensão, de solidão, de melancolia, de angústia. O tempo da quaresma e esse poder, de colocar à prova a sensatez. A lucidez. Ainda mais numa pandemia. Desafio a uma introspecção. A esvaziar de si mesmo. Voltar o olhar para dentro. Se aventurar numa viagem, tão fundo, ao ponto de não se reconhecer. Ir ao encontro de alguém, dentro de si, de quem jamais pensou existir. Sem medo, num lugar, totalmente desconhecido. Onde a mente sozinha jamais ousaria chegar.   

A parede não tinha reboco. E nem era de tijolos, erguida com muretas. Pedras de quinze por quinze centímetros, aparência de paralelepípedos gigantes. Demorou anos, a buscar ali uma beleza, que jamais viria. Porém não desistia. Dizia a si mesmo, que com o passar do tempo mudaria de opinião. O que até então não ocorrera. Continuava, desde da última vez que a contemplara com sua beleza, genuinamente feia. Feito menina-moça, com cara de sofrida. Por falar em menina, ela chegou. Um resmungo, foi seu cumprimento. Uma benção ganhou de resposta. Sentou no sofá, que ficava dando as costas pra parede. Sentou com seu jeito despojado, de toda menina daquela idade. O homem, de soslaio, ficou olhando-a. Sem saber se aventurava-se numa análise mais acurada. Tão recente estreada no mundo, menos de década e meia resumia sua existência. De quando conhecera, primeiro seus pais, depois ela. Até aquele momento. Ainda criança colocava-a no colo. Agora, como se achava uma moça, não fazia mais isso. Já se lhes apontavam os seios, as pernas finas, o short jeans desbotado, colava-lhe tanto as poucas carnes, e tanto ajuntava na virilha ossuda. Amava-a.

O muro, concebeu-o de um filme, se projetaria em muitos sonhos. Em alguns deles pro alto. E ia desafiar os céus. Noutros, descia tanto que uma ovelha facilmente o venceria. Construíra muitos castelos naquele muro, presenciou muitas batalhas, muito sangrentas até. E quando terminava, o cenário era desolador. Com paciência, pegava um balde e um pedaço de pano, e ia passar nos jatos de sangue esguichados, plasmados nas pedras, na parede. Presenciou muitos guerreiros tombarem aos seus pés. Alguns até preferiram eles mesmos tirarem a própria vida. A ficarem agonizantes. Em quanto seus colegas combatiam. Viviam e morriam.

A prima da menina, era ainda mais jovem que ela. Entrou na sala, viu o homem, viu a prima no sofá. E foi pro jardim tomar banho de sol. Nenhum deles a via. Não tinham capacidade para tal. Disse, mesmo sem proferir uma palavra que estava ali para ajudar. Só não sabia como. Sendo apenas de luz. Com seus olhos gigantes admirava tudo a sua volta. As flores, o verde das folhas, os biscuits, a terra fofa, escura, molhada, o cheiro de mato, o zumbido de uma vespa, as formigas à busca de nutrientes. Tudo merecia sua atenção. A torneira pronta pra servir. Abria e dava-lhe água, fechava e ficava pingando. “-Alguém deixou a torneira do jardim aberta?” “Não!” Ninguém havia deixado. Afinal não havia ninguém lá. Mas que alguns ouviram o esguicho d'água ouviram. Não se demoraria, tinha uma eternidade a esperando. Só Deus sabe o que a reservava, quando voltasse pro seu céu. Por certo, ao menos, uma reprimenda.   

As estações da via sacra. Assim como as estações do ano, tinha seus momentos de erguimento e de queda. De muita cor, mas também muita dor. E ter que morrer para renascer. Eram caminhos tortuosos. Em determinados momentos passaria por lamaçais. Em lugares escuros, tão escuro que parecia noite, e noite de trevas. Mas também por lugares claros. Ao ponto de cegar de tanta luz. Noutro, o silêncio. Silêncio pela morte de Cristo, e um turbilhão de sentimentos. E parecia noite, que parecia dia. Os incrédulos do palácio diriam, foi só um eclipse. Eles tinham explicações para tudo. As estações de trem, e de ônibus, também com suas características tão parecidas, gente de todas as origens, de boa e de má índole. Cruzavam caminhos, retos e tortuosos, logo a frente. O muro, por um momento virando o das lamentações. E via os homens tocarem com suas cabeças, na pedra, repetidas vezes, repetidas orações. Batiam com a cabeça onde antes outros homens bateram com suas espadas. A tirarem fogo do granito, buscavam o corpo do seu opositor. E era tanto ódio em seus olhos, em seus corações que o sangue derramado escurecia, tornando-se preto. Destruir, matar em nome de Deus!

A menina do sofá, fez, dentro do coração, um propósito de mudar de vida. Talvez impelida pelo tempo de quaresma, tempo de pandemia. Mesmo não tendo fé em nada, não tendo medo de vírus nenhum. Pouco preocupada com vacina, aglomeração, uso de máscara. Queria mudar o rumo de sua vida. Álcool virava piada, ao invés de tê-lo apenas nas mãos, dizia: melhor ingeri-lo. O pai, outro dia perguntou-lhe por que não namorava. Achava-a tão diferente das outras meninas de sua idade. Achava até que tivesse tendências homossexuais. Assustou-se. Como pode? Se considerava tão feminina. Pôs-se a pensar: teria, o pai, descoberto nela, algo que nem sabia? A loucura chegava pelos ouvidos. Os sentidos, tinham poder de manter a lucidez. A insônia, a ansiedade, a angústia em doses bestiais. Nada que uma cavalar dose de rivotril não resolvesse. A mãe nem ia perceber a subtração do líquido no frasco. Viu as unhas caírem. Balançava as mãos trêmulas e via as unhas pendurando-se, caindo, uma a uma. O rosto em fogo. No espelho viu seu cabelo, sua cabeça ardendo em chamas. Os olhos duas bolas de fogo. A pele mudando de cor ora azulzíssima, lilás, rosa, amarela, alaranjada. Agora era uma princesa, seus súditos eram animais, desenhos que iam surgindo na parede, e pulavam pra sala. Desenho animado e realidade misturando-se numa ciranda louca. Nunca mais tomaria aquilo. Nem quando fumou o cigarro artesanal, com um amigo gay, naquele inferninho no sábado à noite, sentira tais coisas. Não gostou de ser a Rapunzel, tinha medo de altura. O cabelo descia pelas seus minúsculos seios, cobria-lhe o sexo. Estava nua, deitada no sofá, no meio da sala. A cama improvisada virou um carrossel. O céu caiu. No lugar, colou, ela mesma, uma folha de papel machê. E ficou tão mal pregado, caído de um lado. A parte caída permitia uma nesga do que havia por trás, uma fornalha em chamas. Caiu no chão, desmaiada.     

A semana santa se aproximava, com ela o caminho da dor. O santo ofício. As primas, parte da oração que se reza nas primeiras horas, antes do sol nascer. Com o cantar do galo. A pandemia empurrara todos os planos pra dentro de casa, pra debaixo do sofá. O par de tênis, um com a boca pra cima, o outro com a boca colada no chão. Parecendo dois bêbados, de ressaca. Nada do que faziam antes podiam fazer agora. Ficar sentado na praça olhando os pardais, as nuvens descompromissadas de chuvas. A praça, olhando as crianças, andar de bicicleta. Caminhar a beira do asfalto ir até o condomínio. Assim que a visse, beijaria-lhe o cabelo. Sorririam, juntos. Sorriam, de nada.

Fabio Campos, 13 de Março de 2021.

 


 

 

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