De repente um estrondo se ouviu.
Tão forte que as paredes da casa balançaram. Tinha sido mais uma das detonações
de explosivos, numa imensa rocha que os pedreiros tentavam tirar do caminho da
construção. Ocorriam várias daquelas por dia. Não tinha porém, como se
acostumar com aquilo. Toda vez, assustava-se. Era tão próximo. Logo ali, num
terreno baldio, anexo a casa do vizinho. Noutro dia passara por lá. Viu o
estrago, que já haviam causado a rocha. Pensara em sugerir aos encarregados,
que antes de provocarem as explosões, produzissem um som qualquer, talvez uma sirene.
Uma forma de amenizar o susto que causava a toda a vizinhança. Acabava
esquecendo, deixava pra lá. Um minuto depois já nem lembrava mais do medo que
sentira. Da dose extra de adrenalina, voando corrente sanguínea a dentro. Em
questão de milésimos de segundo. Uma descarga elétrica. Um frio subindo pela
espinha. O coração, bombeando mais intensamente o sangue. As têmporas
latejando. As pupilas dilatando. A pele eriçando os pelos. O corpo e seus
mecanismos misteriosos. Isso poderia mudar o destino. Sua vida. Lembrou dos pescadores, usavam um búzio, pra anunciar-se quando chegavam a praia.
Imaginou a pedra, como um imenso
pedaço de carne. Onde minúsculos açougueiros como se vindos da terra de
Lilipute, tivessem fatiando os músculos de um ex-ser vivo. De repente estava lá,
no meio do deserto. O sol à pino. O chapéu ajudava a proteger-se. Um lenço
vermelho descia da cabeça até os ombros. De vez em quando enxugava a testa.
Levando o cantil a boca, tomava um gole de água. Isso ajudava a tirar a poeira
da garganta. Duas mil vidas, num formigueiro humano. Homens feitos de músculos,
suados, dos pés ao couro cabeludo. Deslizavam sobre a areia do deserto, um bloco
de pedra gigante. Era a construção de uma pirâmide. O Egito em toda
magnificência. Contemplava o feitio de uma das sete maravilhas do mundo. E o
sol era Deus. Não o Deus sol. Mas o único Deus, em poder e glória, olhava o
mundo.
O homem estava sentado no lance
de degraus que compunha a entrada da casa. De onde estava, não dava pra ver o
seu rosto. Tinha cabelo grande, escorrido, acastanhado. Tinha barba, bem cultivada, não via seu rosto mas
imaginava-o de rosto anguloso, ossudo. Olhos esverdeados. Um caubói. A camisa
de tecido enxadrezado, calça jeans bem surrada. As botas bem gastas também. Parecia um cara do bem.
Sentara-se no lugar mais
plausível diante de toda aquela aridez. Uma sala, que tinha entrada mas não
tinha porta. O céu visto de lá dentro parecia um quadro de Dali. Chumaços de
nuvens branquíssimas suspensas num azul estonteante. Haviam mosaicos nas
paredes, cerâmica no piso. Tudo muito antigo. Também gravuras e imagens até o
teto. Um crucifixo monocromático, sozinho, numa parede. Dos pés de Jesus uma sombra descia com a luz do sol, e ia até o rodapé da sala. Pensou ter ouvido
alguém chamando-lhe pelo nome. Não devia ser ninguém. Era assim mesmo. Sempre
que optava pelo silêncio. Se não permitia som de rádio, nem de radiola, nem de
televisão, acontecia. Bastava deixar o silêncio gritar ainda mais alto. E dava pra ouvir, alguém
chamando-lhe pelo nome. Era como um sinal. Uma luz que se acendia, um sininho
que tilintava lá dentro da mente. Os ouvidos ouviram novamente. Precisava ter a
certeza, e teve. Alguém realmente o chamava.
O rapaz estava sentado, esperava-o sentado nos degraus. Tinha algo pra contar. Sabia de uma história
sobre aquela pedra. Sobre aquele lajeiro. Dum passado muito remoto, disse que morava ali
um eremita. Morreu, e deixou uma pedra preciosa, escondida. E que os pedreiros
estavam bem próximo de a encontrarem. Se tivessem sorte. Poderiam enterrá-la mais ainda.
Não saberia, jamais explicar porque,
mas naquele momento lembrou dos pescadores. Lembrou dos barcos de pesca,
chegando na praia. O barulho do motor sendo levado pro alto-mar. O vento levando, levando, até
se calar. Deixando apenas o vapor de diesel do velho motor. Os cheiros brigando, óleo queimado,
cheiro de peixe, maresia. O pescado sendo separado em imensos balaios, na
areia molhada. Areia da cor de doce de leite. O vento quebrando a aba dos chapéus de
palha. Suado, molhado de mar. O povo vindo a praia, pra comprar peixe, atendendo ao chamamento do som
produzido, pelo búzio. Era som abafado, quase inaudível. Remetia por sua vez,
ao som do berrante que os vaqueiros no sertão, usavam pra chamar o gado. O som
de trombetas, anunciadores das inícios dos jogos de verão, no Coliseu. Um
turbilhão de sentimentos de percepções aflorando. Parecendo sem nexo algum. Diferente do som dos clarins,
dos cavaleiros do apocalipse, que derrubavam por terra os ímpios, que
dilaceravam os tímpanos dos monstros perversos. Monstros marinhos, monstros humanos. Com raiva, com força, e
arrebatamento. Era assim.
A marreta sobre o cinzel, ti-lim,
ti-lim ti-lim. Pensou na dor que a pedra poderia estar sentindo. Porque todas as
coisas eram criaturas de Deus. Os pedreiros sem piedade, implacáveis marretavam
os músculos da pedra. Tentou lembrar-se, aonde, nas sagradas escrituras, lera
aquela afirmativa. A marreta descia ti-lim, ti-lim. Os ímpios verdugos. Os
pregos perfurando a carne, da palma da mão, das costas às plantas dos pés. A
dor, indescritível dor, de cortar coração. O sangue, pingando no chão, pingando
na madeira. Pingando na pedra.
Fabio Campos, 06 de Março de 2021.
Nenhum comentário:
Postar um comentário