NA PEDRA... Conto: O primeiro da Série: PANDEMIA - QUARESMA 2021.

 

De repente um estrondo se ouviu. Tão forte que as paredes da casa balançaram. Tinha sido mais uma das detonações de explosivos, numa imensa rocha que os pedreiros tentavam tirar do caminho da construção. Ocorriam várias daquelas por dia. Não tinha porém, como se acostumar com aquilo. Toda vez, assustava-se. Era tão próximo. Logo ali, num terreno baldio, anexo a casa do vizinho. Noutro dia passara por lá. Viu o estrago, que já haviam causado a rocha. Pensara em sugerir aos encarregados, que antes de provocarem as explosões, produzissem um som qualquer, talvez uma sirene. Uma forma de amenizar o susto que causava a toda a vizinhança. Acabava esquecendo, deixava pra lá. Um minuto depois já nem lembrava mais do medo que sentira. Da dose extra de adrenalina, voando corrente sanguínea a dentro. Em questão de milésimos de segundo. Uma descarga elétrica. Um frio subindo pela espinha. O coração, bombeando mais intensamente o sangue. As têmporas latejando. As pupilas dilatando. A pele eriçando os pelos. O corpo e seus mecanismos misteriosos. Isso poderia mudar o destino. Sua vida. Lembrou dos pescadores, usavam um búzio, pra anunciar-se quando chegavam a praia.

Imaginou a pedra, como um imenso pedaço de carne. Onde minúsculos açougueiros como se vindos da terra de Lilipute, tivessem fatiando os músculos de um ex-ser vivo. De repente estava lá, no meio do deserto. O sol à pino. O chapéu ajudava a proteger-se. Um lenço vermelho descia da cabeça até os ombros. De vez em quando enxugava a testa. Levando o cantil a boca, tomava um gole de água. Isso ajudava a tirar a poeira da garganta. Duas mil vidas, num formigueiro humano. Homens feitos de músculos, suados, dos pés ao couro cabeludo. Deslizavam sobre a areia do deserto, um bloco de pedra gigante. Era a construção de uma pirâmide. O Egito em toda magnificência. Contemplava o feitio de uma das sete maravilhas do mundo. E o sol era Deus. Não o Deus sol. Mas o único Deus, em poder e glória, olhava o mundo.  

O homem estava sentado no lance de degraus que compunha a entrada da casa. De onde estava, não dava pra ver o seu rosto. Tinha cabelo grande, escorrido, acastanhado. Tinha barba, bem cultivada, não via seu rosto mas imaginava-o de rosto anguloso, ossudo. Olhos esverdeados. Um caubói. A camisa de tecido enxadrezado, calça jeans bem surrada. As botas bem gastas também. Parecia um cara do bem. 

Sentara-se no lugar mais plausível diante de toda aquela aridez. Uma sala, que tinha entrada mas não tinha porta. O céu visto de lá dentro parecia um quadro de Dali. Chumaços de nuvens branquíssimas suspensas num azul estonteante. Haviam mosaicos nas paredes, cerâmica no piso. Tudo muito antigo. Também gravuras e imagens até o teto. Um crucifixo monocromático, sozinho, numa parede. Dos pés de Jesus uma sombra descia com a luz do sol, e ia até o rodapé da sala. Pensou ter ouvido alguém chamando-lhe pelo nome. Não devia ser ninguém. Era assim mesmo. Sempre que optava pelo silêncio. Se não permitia som de rádio, nem de radiola, nem de televisão, acontecia. Bastava deixar o silêncio gritar ainda mais alto. E dava pra ouvir, alguém chamando-lhe pelo nome. Era como um sinal. Uma luz que se acendia, um sininho que tilintava lá dentro da mente. Os ouvidos ouviram novamente. Precisava ter a certeza, e teve. Alguém realmente o chamava.

O rapaz estava sentado, esperava-o sentado nos degraus. Tinha algo pra contar. Sabia de uma história sobre aquela pedra. Sobre aquele lajeiro. Dum passado muito remoto, disse que morava ali um eremita. Morreu, e deixou uma pedra preciosa, escondida. E que os pedreiros estavam bem próximo de a encontrarem. Se tivessem sorte. Poderiam enterrá-la mais ainda. 

Não saberia, jamais explicar porque, mas naquele momento lembrou dos pescadores. Lembrou dos barcos de pesca, chegando na praia. O barulho do motor sendo levado pro alto-mar. O vento levando, levando, até se calar. Deixando apenas o vapor de diesel do velho motor. Os cheiros brigando, óleo queimado, cheiro de peixe, maresia. O pescado sendo separado em imensos balaios, na areia molhada. Areia da cor de doce de leite. O vento quebrando a aba dos chapéus de palha. Suado, molhado de mar. O povo vindo a praia, pra comprar peixe, atendendo ao chamamento do som produzido, pelo búzio. Era som abafado, quase inaudível. Remetia por sua vez, ao som do berrante que os vaqueiros no sertão, usavam pra chamar o gado. O som de trombetas, anunciadores das inícios dos jogos de verão, no Coliseu. Um turbilhão de sentimentos de percepções aflorando. Parecendo sem nexo algum. Diferente do som dos clarins, dos cavaleiros do apocalipse, que derrubavam por terra os ímpios, que dilaceravam os tímpanos dos monstros perversos. Monstros marinhos, monstros humanos. Com raiva, com força, e arrebatamento. Era assim.

A marreta sobre o cinzel, ti-lim, ti-lim ti-lim. Pensou na dor que a pedra poderia estar sentindo. Porque todas as coisas eram criaturas de Deus. Os pedreiros sem piedade, implacáveis marretavam os músculos da pedra. Tentou lembrar-se, aonde, nas sagradas escrituras, lera aquela afirmativa. A marreta descia ti-lim, ti-lim. Os ímpios verdugos. Os pregos perfurando a carne, da palma da mão, das costas às plantas dos pés. A dor, indescritível dor, de cortar coração. O sangue, pingando no chão, pingando na madeira. Pingando na pedra.

Fabio Campos, 06 de Março de 2021.


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