OS TEMPOS ERAM OUTROS 3º Conto da Série Quaresma-Pandemia 2021


 

Os tempos, pouco a pouco, eram outros. Nas mãos do povo, o mundo ficando velho. O arado do tempo, devagar e sempre, lavrando sua ceifa. Os olhos aos poucos anuviando. Os sons, paulatinamente, caindo de capacidade de serem ouvidos. A voz, cada vez mais rouca. Músculos ficando flácidos, articulações endurecendo. Uns ais, a cada vez que precisava levantar-se dum acento. A filha, querendo eternizar aquele momento, chamou: Mãe vamos tirar uma foto! Chamou várias vezes. E estavam à poucos metros de distância. Mas não a escutava. Ficou triste, era dia de sua data natalícia. Acabara de tornar-se octogenária. Pegou na sua mão, conteve o choro. Os dedos nodosos, encaliçados de tanto trabalho. Anos a fio dedicados a família, a casa, que já perdera o esteio. Pediu que sentasse, queria ver seus pés. Colocou-os, em seu colo. Massageou, um a um, os dedos entrevados, de articulações comprometida, pelo tempo. Providenciou uma bacia com água morna. Cuidou de fazer-lhe as unhas. Foi, o melhor presente que a filha poderia ter dado a mãe.

Um céu nublado, dentro do coração. O céu de verdade, estava com o azul de nossa Senhora, pontilhado de carneirinhos, de São José! Bem no seu dia! Uma tempestade de tristeza, invadindo o ar, onde só a alegria deveria reinar. A atmosfera, se movendo provocando sentimentos, evocando emoções variadas. A sala, de repente virou uma arena. A discussão generalizada, era se valia a pena, comemorar uma data natalícia, numa época tão crítica que se vivia. Tempo de pandemia, pelo novo corona vírus. A reclamação de alguns, era por conta da exposição. E colocar em risco a vida da própria mãe. Aglomeração de filhos, netos, bisnetos, reunidos pelo aniversário da matriarca da família. Alguns viera de uma distância considerável, enquanto outros que moravam só a alguns metros, decidiram não ir. As desculpas, pela iniciativa começaram a aflorar. As culpas desabrocharam. Aquela poderia ser, gente, a última vez que estaríamos reunidos! Qualquer um de nós, poderíamos não mais estar ali, nos próximos anos. A demais, quem inventou a surpresa, pensou que seriam poucos os que iriam. E que todos os que foram, iriam respeitar o uso da máscara de proteção. Tudo na vida, foge do controle. É assim mesmo. É a vida.

Até os cachorros ficaram mais agressivos. A xícara de café, abandonada sobre guardanapo branco maculava de negro o tecido, à espera da atitude digna de alguém. Nada podiam fazer, tudo ficara parado, esperando. As fatias de bolo, os copos de refrigerante. Os dissabores das palavras exaltadas, sobrepujavam os sabores, abandonados. Um tronco de árvore reclamava alguém, que viesse, se encostar, acendesse um cigarro, e enchesse sua copa, suas folhas, de fumo. Alguém tiraria as próprias conclusões. As evidências, e nada poderia ser feito. Aqueles cachorros, com certeza estavam percebendo algo que ninguém mais além deles pressentiam. Algo de errado, alguma coisa que alterava o estado de paz das coisas. E que poderia ser, desse ou de outro mundo.

Nada mais podiam fazer. Mesmo que quisessem nada podiam fazer. Lá fora, o toque de recolher estava decretado. A demais era sábado. Sendo assim, tornavam-se, quer queiram quer não, todos sabatistas, segundo os Evangelhos. Feitos judeus que guardavam o dia de sábado por excelência. A noite veio silenciosa, mansa, desarmando sentidos. Acalmando a alma. A lei do silêncio impondo sua própria regra. Qualquer indicio de muita gente junta, virava alvo da viatura da polícia, em ronda permanente. O coração, como se alguém segurasse com as duas mãos e o apertasse. Assim o sentia. O mar das crianças sertanejas de antigamente chegava dentro de um búzio. Isso era herança do passado. O búzio agora, servia de escora pra manter a porta aberta. O mar dos homens velhos, era sal puro. Areia dentro dos olhos, lágrimas que nunca quisera chorar. O coração duro não deixava. Abraçar-se tornara-se um crime hediondo.

Nunca pensou que viveria tanto, o suficiente pra ver tempos tão difíceis. Na adolescência os abraços, os beijos tão escassos, não vinham por conta dos grilos, próprios dos jovens. Das restrições impostas pelos pais. Os namoros, a ingenuidade, a pureza dos corações. As lembranças amornando o espírito, a moça lembrando-se dos domingos. Ainda cedo o namorado chegando a casa. O pai, chamava-o para ir olhar o roçado, o milho seco, as tarefas do campo, os hectares de palma bem cuidada. O gado, resumido a algumas poucas cabeças: uma parelha de boi de carro, umas reses, uma vaca leiteira. Na hora do almoço, uma lapada de cachaça, arroz branco, feijão tropeiro com carne de galinha, e muita pimenta. Não recusada para não fazer uma desfeita com o futuro sogro. Arre! Égua! Pimenta ardida da peste! O que disse? Nada, não! Estava aqui, pensando alto, me lembrando de outra coisa.

Agora que a maturidade ensinara que valia a pena, abraçar, beijar, acariciar. Uma maldita pandemia impedia de o fazerem. De abraçarem-se, beijarem-se. Não os impediam porém, de se amarem. Os olhos viam os homens como árvores que andavam. Assim como via o cego, que Jesus curou da cegueira. De nada adiantaria subir a serra, se não houvesse um motivo justo pra isso. E correr o risco de não serem reconhecidos, pelos espíritos que andavam vagando pelo mundo. Pelas almas vaqueiras que precisavam de rezas, e serem salvas. Pois também as penitências da semana santa, estavam suspensas. Pela primeira vez, em muitos anos, não subiriam a serra. Não contemplariam do alto do cruzeiro, a vida, o ano que a pouco iniciara-se. Ano diferente, estranho, onde os tempos eram outros. A luz do sol, as pedras, as nuvens, os espíritos.

Fabio Campos, 20 de Março de 2021.

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