SILÊNCIO DA VIDRAÇA Conto da Série Quaresma-Pandemia 2021.





Àquela tarde, lá fora, tão convidativa. Disse a si mesmo, iria até aonde o coração suportasse. Não iria muito longe. Não demoraria a descobrir o porquê. Não lembrava exatamente a quanto tempo, o céu, passara a ser sua maior paixão. Talvez, de quando amadureceram as maçãs, do rosto. O raiar do dia, o clarear lento e calmo da manhã, ia namorá-lo. No silêncio da vidraça - os olhos inchados ainda, da noite de sono - ia cumprimentá-lo. Agradecido, mandava um abraço pra Deus. A tarde porém, se apresentava ainda mais bonito. Acenava pra nossa Senhora. Aquelas nuvens, fazendo-lhe terno carinho. Trazendo lembranças, de um moço sonhador, de lá atrás. Quem sabe, viesse de volta.

A menina Sayane, além do nome, outras coisas mais havia de diferente nela. Olhos amendoados, parecia querer captar o mundo com eles. Garimpava as coisas com os olhos. Com eles, ia pulando as eiras e beiras das fachadas das casas, como quem brincava. Andava como quem passeava, mesmo apressada. Falava sozinha. Talvez cantarolasse uma música, baixinho. Ria sozinha. Como quem ria pra dentro. Vestia-se, como menina que se veste sozinha. Sem alguém que lhes dissesse: “Menina, essa blusa fica melhor com esse short.” E se tivesse uma irmã? Com quem dividisse as tristezas, as angústias, as alegrias, e às vezes lhes fizesse umas raivas? Por que não? Irmãs, tiram-nos oportunidades, são chatas, roubam coisas da gente. Melhor não. Estava bom assim mesmo, do jeito que estava. Morando com um tio, irmão de sua mãe. Pena que com o tio, não dava pra falar de menstruação, de pêlos, crescendo em lugares muito doidos. De seios inchando, cada vez mais. E os pés! Meu Deus!

Na beira da estrada, pedaços de tronco, de uma árvore abatida. Semelhavam troncos humanos, decepados braços e pernas, retorcidos. Evidências do crime havia por toda parte. O chão forrado de lascas de madeira, feito tapete do ser vivo trucidado. O sangue derramado ainda ardia. O cheiro era forte. O egoísmo falaria mais alto, sobressaindo o sentimento de posse, gritando de lá dentro. Dizendo ao homem, que dava pra tirar algum proveito, daqueles restos mortais. Sem o menor constrangimento aceitaria arrastar aquele ex-ser vivo, agora morto, até sua casa. Igual um leão que arrasta uma zebra morta, até sua caverna e simplesmente a devora, junto com seus filhotes. Sem nenhum remorso, era a lei da selva.  Achava que àquele ex-vivente, do reino vegetal, ainda podia tornar-se, para si, algo útil. Quem sabe, viraria belíssima caqueira de plantas.

O rabo de cavalo da menina era fino, leve, de pouco cabelo. E ia dizendo: “não”, “não”, balançando pra lá e pra cá. Vestia uma camiseta, na estampa o desenho dum ursinho de pelúcia dentro de um coração vermelho, rosáceo, e a palavra “Happy”. Short jeans, chinelo de dedos. Seios e glúteos, nela, uma verdade, muito mais pro futuro, do que pra agora. Tudo parecia muito real, tão real que apertava-lhe o coração. Era numa hora daquelas que uma irmã fazia falta. Se tivesse, ia perguntar-lhe o que achava daquele menino, do mercadinho? Dá pro gasto. Por quê? É que ele andava olhando demais pra ela. O negro asfalto, quente de sol, abrupto daria sua fatal contribuição. As casas deram pra brincar de roda. Um pingo de sangue caiu, do nariz na estrada negra de resina quente. Teve que sentar na calçada pra não desmaiar. O mundo virou carrossel. Ficou um tempão, até passar a ruindade. A cabeça levantada. Lá vinha uma amiga, um aparelho celular na mão. Laura! Pergunta aí no Google: “O que significa sangrar pelo nariz?” O Google disse: “São as vias respiratórias ressecadas, devido ao tempo seco.” Será que eu tô com Covid? Nada a vê!

O homem entrou na sala azul, climatizada. O médico, de jaleco branco, óculos de grau, cabelos revoltos, pretos. Sentado, atrás de sua mesa. Os olhos no celular. Algo, mais interessante que o paciente: o aparelho de telefonia móvel. E sem tirar os olhos do dispositivo, disse ao homem que se sentasse. A máscara de proteção do esculápio, contra o novo Corona vírus, estava nas orelhas. Porém, puxada pra debaixo do queixo. Teve vontade de chamá-lo atenção para o risco, que corria, e que expunha as demais pessoas. Desistiu. Ele, mais do que ninguém sabia disso. O paciente continuou esperando. Situação vexatória. Se soubesse que seria assim, jamais teria ido. Tarde demais. Se arrependimento matasse, ali estava um morto.

A mãe de Sayane, estava de namorado novo. Isso a irritava. Deixava-a na retranca. Não queria fazer amizade com mais ninguém. Isso incluía, claro, o dito cujo.  Aliás, amizades tinha demais. Precisava livrar-se de algumas virtuais, das redes sociais. Indesejáveis até. O tio a aconselhava, calado. Era exemplo pra ela, sem nada dizer. Desejava ter a tranquilidade que tinha o tio. Parecia que nada tirava-o do sério. Não era bem assim. Sabia de alguns defeitos dele, teimosia, arrogância, cabeça dura, pavio curto. Em alguns pontos se achava muito parecida com ele. Agora, se bebia, se transformava noutro, ficava meloso, excessivo nos carinhos. Desavergonhado, urinava no quintal, despia-se sem o menor pudor, e tomava banho nu, ali mesmo. Sobre a doença crônica que tinha, nenhum dos dois sabia.

Um eletrocardiograma, a tirinha de papel cheia de riscos, que subiam e desciam, estava dizendo, ao homem, que tivera um enfarto do miocárdio, havia muitos anos. Os laudos médicos confirmavam. Eles nunca erram. Quedou-se perplexo O médico, pareceu-lhe agora, um ser de outra galáxia. Sua voz, de repente ficou lenta, distorcida, vinda do além. E de repente, o cara do jaleco, ficou verde, um chifre de rinoceronte nasceu-lhe na testa. Dizia, algo como: “não havia motivo pra preocupação.” Escrevia e escrevia, ao tempo que falava e falava. Caindo em si o homem, ponderou que poderia, nem mais estar ali. Ao mesmo tempo considerou que, se não morrera era porque algo teria pra fazer. Para merecer ainda estar aqui. Eram coisas que, nem a chuva, nem o silêncio da vidraça, poderiam responder.

Fabio Campos, 27 de Março de 2021.

 

 

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