COMO EM GUERNICA Conto da Série PAND-PASC-2021.

Da janela, o horizonte, uma estrada de barro, uma encruzilhada, dava pra ver. Estava tendo mais uma de suas conversas com Deus. Mesmo sem nada dizer, dizia o quanto admirava as suas obras. Se envergonharia, de não ser agradecido, o quanto devia, pela vida que tinha. Uma música, de um desenho animado, desde que acordara, nos ouvidos. Não tinha certeza se fizera parte de um sonho, que não lembrava mais. Sempre era assim, coisas que jamais pensara que impactaram, ficavam, por muito tempo, lembrando, relembrando, meio que inconsciente. Repisando. Enquanto que outras, mais corriqueiras, e mesmo, bem mais prazerosas, e que tanto gostaria de lembrar, nunca vinham, nunca estavam lá. Caídas lá no fundo. No profundo poço do esquecimento.

Relembrava de coisas do passado. Queria, muitas vezes, pensar em coisas que não tivessem lhe causado nenhum tipo de trauma. Algo que nem tivesse influído negativamente, ou que jamais tivesse aflorado emoções fortes. De estar sentado, na praça, ao lado de um amigo, sem nada conversarem. Apenas admirando um céu, azul, cheio de nuvens branquinhas. Como nunca mais teriam visto outro igual. A moça só tinha corpo, na verdade não passava de uma menina. Sem noção, sem medo do perigo que rondava-lhe. Jamais devia conversar com estranhos. Os pais negligenciaram este cuidado, ou era falta de noção, dela mesmo. Nunca devia olhar nos olhos, de quem não conhecia. Quanto mais dirigir a palavra, fosse para quem fosse. Informações se busca em lugar seguro. De um guarda, de um sorveteiro, do rapaz da lanchonete. Nunca de um homem, sentado num banco da praça. O sentido de posse, o sentimento de domínio. Maldita pandemia.

Pensava pessoas como personagens de filmes, que um dia assistira. A moça ingênua sem noção.  A mulher negra, gorda de vestido estampado, lenço na cabeça, olhos grandes, lábios grossos. Viera tão primeiro, que a mucama de “E o Vento Levou...” Como se já estivesse em algum lugar, e tomasse forma, plasmasse, vindo a ser assim na vida. E ser de um coração grande, de um preocupar-se com os outros. Como se a vida precisasse disso. E vivê-la com pura subserviência, pura doação. Onde os próprios sentimentos, não tivessem o menor valor, o mínimo de interesse. Servir, apenas, era o que importava, era suficiente. Não precisava entender nada. Estar no mundo implicava em ser do jeito que era.

Se um pintor fosse, se tivesse que pintar a cena, que se descortinava a sua frente, precisaria de uma paleta bem simples: branco, preto, talvez um pingo de verde. O céu acinzentado, conseguiria misturando um pouco de preto com bastante branco. E ia dosando até conseguir aquele céu plúmbeo, que se fazia. Um céu assim, Djavan, num dia frio. Quase cubista. As chuvas vinham de um lado, que se não fechasse a vidraça molharia o rosto, pingos translúcidos, gelados, de umas quase lágrimas. Um quadro de Picasso.

Enquanto isso, ia a menina, solta na vida Sem sequer saber que era observada, se ia. Sem saber que um par de olhos a seguia. Talvez aquele tipo, fosse um psicopata, a estudar seus passos. Talvez aguardasse uma oportunidade para atacá-la. Seria questão de dias, de horas, de chance para que isso acontecesse. Quem sabe, nunca tivesse coragem para tanto. Sob efeito de drogas, as chances aumentavam bastante. As unhas que jamais seriam cuidadas, ruía, de nervoso, ruía. O cheiro de maça, e de uva. Aquele cheiro de chiclete, tão antigo, aroma trazido da infância. A menina, com certeza gostaria daquele cheiro. Dar-lhe-ia a cheirar. Algo na mão fechada, sujas de pigmento verde, escuro, granuloso, e limpava na roupa.

Pensava no cárcere. De quando fosse preso. E quantas bolas de futebol, o tempo que passaria na cadeia, daria pra fazer. Os pedaços de sola de couro, no formato quase de um solado de pé, costuradas a mão, uma a uma. Desde criança soubera que eram os presidiários que faziam as bolas de futebol, usadas nos campeonatos. Os bonés bufantes dos torcedores, a camisa de meia listrada, do árbitro, as chuteiras cheias de cravos. Os enormes calções pretos com detalhes em branco. Os jogadores, as torcidas dos dois times, ninguém se lembraria deles, condenados, presos. Pagando pelos seus crimes premeditados, duplamente hediondo, estuprou, e matou a vítima. Pobre menina.

Toda vez que passava na encruzilhada muitas coisas, o assolavam. Primeiro os despachos de macumba, tantas vezes encontrados ali. Trabalhos feitos, planejado por alguém que acreditava canalizar algum tipo de energia negativa, sobre a vida de uma outra pessoa. Feitiçaria, bruxaria, mandinga. E sempre havia quem, em nada daquilo acreditava. E pegava as cédulas de dinheiro, o litro de cachaça, o prato de tira-gosto. Não muito longe dali, ia dar-se ao prazer de degustar, despreocupado de qualquer tipo de vaticínio. E boêmio, sublinharia com a frase: “Só pega em quem acredita!”.

A poucos metros, outro cruzamento. Repleto de episódios, destinos cruzando-se a todo instante. O tempo todo, todo tempo, infinitamente. Anjos e demônios, seguindo, perseguindo, defendendo, seus afetos, desafetos, protegidos. As coisas ruins aparentemente sobrepujando as boas. A cravejarem as margens dos quatro braços de estradas, de cruzes, de nomes, fatídicos e silêncio. Um quadro, uma pintura que fala sem nada dizer. Como se as vidas ceifadas ali, permanecessem lá. Feito filme pausado por um controle remoto, aguardando um play, que lhes tirasse daquela infinita pausa. Paralisadas vidas, Congeladas, petrificadas, como no quadro de Pablo Picasso. Aguardavam uma continuidade que sabia-se lá, talvez jamais aconteceria.

Lembrava, e outra vez, lamentava, as perdas. Uma burra, morrera eletrocutada. Um fio de alta tensão caíra numa poça d’água. O carroceiro nada sofreu. Já o tempo, desdobrado em anos decorridos. A lembrança porém vinha toda vez que passava ali. A burra mordia o ar, os corpos mutilados pelos acidentes. Em preto e branco, suspenso no ar. Uma cruz preta, encimada de uma coroa de flores, gastas. O nome era do barbeiro, morador da última casa da ruela, da vila. A tesoura e o pente, pintados de branco na cruz negra. Os instrumentos de trabalho acompanhou-o na morte. Morte por atropelamento, naquele mesmo local. Teve quem dissesse, o motorista causador do sinistro, um desafeto do pobre fígaro. Parecia ser um homem pacato. A pele curtida, dava-lhe aparência de agricultor, de pescador. Ao cair de tarde, a ceifa, a pesca, única conseguida, a morte.

Fabio Campos, 23 de Abril de 2021.

 

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