Da janela, o horizonte, uma
estrada de barro, uma encruzilhada, dava pra ver. Estava tendo mais uma de suas
conversas com Deus. Mesmo sem nada dizer, dizia o quanto admirava as suas obras.
Se envergonharia, de não ser agradecido, o quanto devia, pela vida que tinha. Uma
música, de um desenho animado, desde que acordara, nos ouvidos. Não tinha
certeza se fizera parte de um sonho, que não lembrava mais. Sempre era assim,
coisas que jamais pensara que impactaram, ficavam, por muito tempo, lembrando,
relembrando, meio que inconsciente. Repisando. Enquanto que outras, mais
corriqueiras, e mesmo, bem mais prazerosas, e que tanto gostaria de lembrar,
nunca vinham, nunca estavam lá. Caídas lá no fundo. No profundo poço do
esquecimento.
Relembrava de coisas do passado.
Queria, muitas vezes, pensar em coisas que não tivessem lhe causado nenhum tipo
de trauma. Algo que nem tivesse influído negativamente, ou que jamais tivesse
aflorado emoções fortes. De estar sentado, na praça, ao lado de um amigo, sem
nada conversarem. Apenas admirando um céu, azul, cheio de nuvens branquinhas. Como
nunca mais teriam visto outro igual. A moça só tinha corpo, na verdade não
passava de uma menina. Sem noção, sem medo do perigo que rondava-lhe. Jamais
devia conversar com estranhos. Os pais negligenciaram este cuidado, ou era falta
de noção, dela mesmo. Nunca devia olhar nos olhos, de quem não conhecia. Quanto
mais dirigir a palavra, fosse para quem fosse. Informações se busca em lugar
seguro. De um guarda, de um sorveteiro, do rapaz da lanchonete. Nunca de um
homem, sentado num banco da praça. O sentido de posse, o sentimento de domínio. Maldita pandemia.
Pensava pessoas como personagens
de filmes, que um dia assistira. A moça ingênua sem noção. A mulher negra, gorda de vestido estampado,
lenço na cabeça, olhos grandes, lábios grossos. Viera tão primeiro, que a
mucama de “E o Vento Levou...” Como se já estivesse em algum lugar, e tomasse
forma, plasmasse, vindo a ser assim na vida. E ser de um coração grande, de um
preocupar-se com os outros. Como se a vida precisasse disso. E vivê-la com pura
subserviência, pura doação. Onde os próprios sentimentos, não tivessem o menor
valor, o mínimo de interesse. Servir, apenas, era o que importava, era suficiente.
Não precisava entender nada. Estar no mundo implicava em ser do jeito que era.
Se um pintor fosse, se tivesse
que pintar a cena, que se descortinava a sua frente, precisaria de uma paleta
bem simples: branco, preto, talvez um pingo de verde. O céu acinzentado, conseguiria misturando
um pouco de preto com bastante branco. E ia dosando até conseguir aquele céu
plúmbeo, que se fazia. Um céu assim, Djavan, num dia frio. Quase cubista. As chuvas vinham
de um lado, que se não fechasse a vidraça molharia o rosto, pingos translúcidos,
gelados, de umas quase lágrimas. Um quadro de Picasso.
Enquanto isso, ia a menina, solta
na vida Sem sequer saber que era observada, se ia. Sem saber que um par de
olhos a seguia. Talvez aquele tipo, fosse um psicopata, a estudar seus passos.
Talvez aguardasse uma oportunidade para atacá-la. Seria questão de dias, de horas,
de chance para que isso acontecesse. Quem sabe, nunca tivesse coragem para tanto.
Sob efeito de drogas, as chances aumentavam bastante. As unhas que jamais
seriam cuidadas, ruía, de nervoso, ruía. O cheiro de maça, e de uva. Aquele
cheiro de chiclete, tão antigo, aroma trazido da infância. A menina, com
certeza gostaria daquele cheiro. Dar-lhe-ia a cheirar. Algo na mão fechada,
sujas de pigmento verde, escuro, granuloso, e limpava na roupa.
Pensava no cárcere. De quando
fosse preso. E quantas bolas de futebol, o tempo que passaria na cadeia, daria
pra fazer. Os pedaços de sola de couro, no formato quase de um solado de pé,
costuradas a mão, uma a uma. Desde criança soubera que eram os presidiários que
faziam as bolas de futebol, usadas nos campeonatos. Os bonés bufantes dos
torcedores, a camisa de meia listrada, do árbitro, as chuteiras cheias de
cravos. Os enormes calções pretos com detalhes em branco. Os jogadores, as
torcidas dos dois times, ninguém se lembraria deles, condenados, presos.
Pagando pelos seus crimes premeditados, duplamente hediondo, estuprou, e matou
a vítima. Pobre menina.
Toda vez que passava na
encruzilhada muitas coisas, o assolavam. Primeiro os despachos de macumba,
tantas vezes encontrados ali. Trabalhos feitos, planejado por alguém que
acreditava canalizar algum tipo de energia negativa, sobre a vida de uma outra
pessoa. Feitiçaria, bruxaria, mandinga. E sempre havia quem, em nada daquilo
acreditava. E pegava as cédulas de dinheiro, o litro de cachaça, o prato de
tira-gosto. Não muito longe dali, ia dar-se ao prazer de degustar,
despreocupado de qualquer tipo de vaticínio. E boêmio, sublinharia com a frase:
“Só pega em quem acredita!”.
A poucos metros, outro cruzamento.
Repleto de episódios, destinos cruzando-se a todo instante. O tempo todo, todo
tempo, infinitamente. Anjos e demônios, seguindo, perseguindo, defendendo, seus
afetos, desafetos, protegidos. As coisas ruins aparentemente sobrepujando as
boas. A cravejarem as margens dos quatro braços de estradas, de cruzes, de
nomes, fatídicos e silêncio. Um quadro, uma pintura que fala sem nada dizer. Como se as vidas ceifadas ali, permanecessem lá. Feito
filme pausado por um controle remoto, aguardando um play, que lhes tirasse
daquela infinita pausa. Paralisadas vidas, Congeladas, petrificadas, como no quadro de Pablo Picasso. Aguardavam uma continuidade que sabia-se lá, talvez
jamais aconteceria.
Lembrava, e outra vez, lamentava,
as perdas. Uma burra, morrera eletrocutada. Um fio de alta tensão caíra numa
poça d’água. O carroceiro nada sofreu. Já o tempo, desdobrado em anos decorridos.
A lembrança porém vinha toda vez que passava ali. A burra mordia o ar, os
corpos mutilados pelos acidentes. Em preto e branco, suspenso no ar. Uma cruz
preta, encimada de uma coroa de flores, gastas. O nome era do barbeiro, morador
da última casa da ruela, da vila. A tesoura e o pente, pintados de branco na
cruz negra. Os instrumentos de trabalho acompanhou-o na morte. Morte por
atropelamento, naquele mesmo local. Teve quem dissesse, o motorista causador do
sinistro, um desafeto do pobre fígaro. Parecia ser um homem pacato. A pele
curtida, dava-lhe aparência de agricultor, de pescador. Ao cair de tarde, a
ceifa, a pesca, única conseguida, a morte.
Fabio Campos, 23 de Abril de
2021.
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