SOMBRAS REFLETIDAS Conto da Série PAND-QUAR [Fechando Mês das Mulheres]


Estava muito mal. O dia todo, parecia um bêbado, dentro de casa. Sonolência, pelo dia, e com o avançar da noite, insônia. Um zumbido nos ouvidos.  Ansiedade, alucinações, medo, só não sabia do que. Não podia continuar daquele jeito. Não conseguia almoçar.   Da tela da tevê, terra de cemitério, caía em cima da mesa sujando a travessa de macarrão, a salada, o bife. Velórios, um atrás do outro. O homem de paletó, na tevê, nenhuma palavra de ânimo. Nem uma luz, só desgraça. Talvez, quisesse incutir nos telespectadores que vivia-se o apocalipse. Falava do número de suicídios. Dizia, eram mais de trinta por dia, o número dos que tiravam a própria vida, no país. Os dentes de vampiro, saltavam-lhes sujos de sangue. Jurava que estaria vendo aquilo, em algum lugar. Sim, claro, nele mesmo. O copo de vidro, contendo suco de acerola, acabara de morder. Mastigava os cacos, um fio de sangue desceu pelo canto da boca. A pandemia, o isolamento, Os psicotrópicos, severamente, dando-lhes nos nervos.

A menina disse que não mais iria consumir nada, que fosse de origem animal. Não apenas pararia de ingerir. Passaria também, a não usar cinto, sapatos, ou bolsa de couro, não queria mais. E ovo de páscoa, podia? Podia! Ovo vegano, feito de cacau, açúcar, margarina, totalmente de origem vegetal. Vô, quando for responder as atividades, pode me ajudar, nas questões de matemática? Ok. Mas, e o limite pra o uso do aparelho de telefonia? Pra cada hora de uso, duas horas sem. Ordem da mãe. Tentava chantagear, pedia, um desconto. Pediu-lhe que fosse no quarto, pegar o cabo carregador da bateria do aparelho. Não queria. Por quê? Medo. Medo de que? De ir no quarto sozinha. Mas, à luz do dia! A mãe a obrigava a ir. Desatava num choro, incontido. Comovia-se o vô. De que tinha medo? Do escuro do quarto. Então, lhes aparece alguma coisa lá? Sim, mas não quero falar sobre isso. Agora?... Não, nunca. Mas precisamos.  

De repente, os sintomas, dor de cabeça, dor atrás dos olhos, dor nas articulações, febre. Indícios fortes de ter contraído Covid. A diretora disse a professora, vá pra casa! Minha filha! Vá fazer o teste, e aguarde. Fique isolada! Mantenha-nos informada. Não se preocupe, arranjaremos alguém pra lhe substituir, por esses dias. Até depois da semana santa. Ligou orientando o filho de ir pra casa da vó. Pegue seus pertences. O filho mais novo, foi pra casa dos pais do companheiro. Não aguentavam mais o isolamento social, mesmo antes, sem ter contraído o vírus. Imagine agora que adoecera. Recostou a cabeça nas respaldo da poltrona da frente, da Van. Estava de volta pra casa. Máscara no rosto, de olhos fechados. Viu-se menina, correndo na praia. Devia ter uns seis ou oito anos. O pai, a mãe, todos em trajes de banho, era um cair de tarde de domingo. Estava de maiô, o mesmo com o qual aparecia nas fotos, do velho álbum de família. O cabelo voando ao vento. Outras vezes lembrara daquela cena. Não entendia o porquê. Ali, grudado na mente, como vídeo repetido de redes sociais. Talvez, viesse sempre que passava por emoções fortes.  Ao seu lado, vestida na farda, os cabelos presos a uma fita rosa, no alto da cabeça, de franja. Uma menina. Olhava através da janela do automóvel. Divertia-se com a sombra do carro refletida, avançando sobre as pedras, as árvores do acostamento. Olhar sereno. Teria a mesma idade dela, na cena que acabara de rever, na recordação recorrente.

A pedra rolou, quebrou o cano da água. Pandemia, isolamento social, comércio fechado, e o cano achou de quebrar. Havia uma pedra, no meio do jardim. Lembrou de Drummond, e sua pedra implicante, em versos. Mas, a pedra rolou sozinha?  Claro que não, não rolara sozinha. A vó a empurrou, enquanto varria. O problema era que a água estava jorrando, seguindo seu curso, sarjeta a fora. Deixando de servir. Deixando de aguar as plantas, sedentas. Que pena, a água era só desperdício! A manhã inteira. O homem, foi lá tentar dar um jeito. Não se deu ao trabalho de trocar a roupa. Molhou-se todo. E o jeito que deu, não foi dos melhores. Conseguiu interromper o fornecimento de água pra casa. Pelo menos evitou o gasto desnecessário. Mais um isolamento, dentro do outro isolamento.

A vacina era coisa remota. Não tinha ideia quando chegaria sua vez. Mas, era grupo de risco. A viatura da polícia passou bem devagar. O policial, com cara de poucos amigos. Parou bem na porta. Cumpria sua missão de empurrar as pessoas pra dentro de suas casas. Lembrou daquele dia do sarau, aniversário de dezoito anos da irmã. Os polícias não gostavam da gente. Achava a galera barra pesada. Entraram na garagem, reviraram tudo, procuravam drogas. Ninguém tinha nenhum bagulho. Só havia bebidas alcoólicas ali. Estavam todos limpos. Então, foi só a polícia sair, um carinha, que até penetra era, começou uma discussão com a aniversariante. Tinha uma bronca com ela, uma questão de rejeição. Gente, que não sabia aceitar um não. Uma briga, era algo inevitável. O resultado foi um quebra-quebra, em pleno meio da rua, que acabaria com a morte de um violão, escoriações num contra-baixo, hematomas na bateria. Um amigo da irmã, caiu de mau jeito por cima do braço, quebrou o punho, um outro ganhou um corte profundo na cabeça.   

Estava chocada, com os nomes, que chegavam pelas redes sociais, dizendo que morrera. Custava acreditar. Ainda mais que não podia, ir velar os retos mortais. Tem gente que só acredita que alguém morreu se for ao velório, se ver o defunto dentro do caixão. Nem queria pensar, em algumas pessoas queridas, que perdera. Se pudesse ver o futuro. As pessoas novamente sorrindo, se confraternizando. Onde a pandemia fosse algo de um passado, tão triste, que ninguém mais queria lembrar. Um tempo, em que a menina, ao seu lado no banco da Van, fosse agora uma moça. Curtindo o seu belo emprego de modelo, tinha seu carro, e morava sozinha num apartamento, igual a tia. Talvez, no mínimo, fosse feliz, como revendedora de cosméticos e lingerie, porta a porta. Sonhando em juntar uma grana para ir pra Salvador, ou Olinda, no próximo carnaval. Quem sabe, a menina refletida no vidro da janela da van. Talvez, ela acreditasse, em dias melhores.

Fabio Campos, 02 de Abril de 2021.

 

 


 

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