A tristeza dos dias, multiplicada
pela ceifa de vidas com a pandemia. Um dos mais triste dia que vivera, foi o
dia que sua mãe partiu. O trauma ocorrera, um pouco antes do início da virose. Estaria
vivendo, naquele momento, outra grande perda. Um amigo, se fora. O céu carregado
de nuvens, uma constante, um aviso, um presságio. Sempre, sempre perguntava:
céu, tem algo a dizer-me? Ele porém, permanecia calado. As chuvas ficavam
rodeando, rodeando, trazendo seu vento frio, sua cor cinza de coisas frias,
queimadas, molhadas de tristeza. Corria por detrás da serra. E de surpresa
pegava-o, a caminho do mercado no início da rua, a comprar mantimentos.
A igreja, ávida de silêncio, de sepulcrais velas
choronas. Cheia de rezas sussurradas, silvo abafados escapados dos lábios, trêmulos. Escondidos pelas máscaras. O brilho emanado dos lustres, indo refletir-se nas pedras polidas, no
fosco verniz que cobria os santos. A madeira aparelhada das bancas, nada
entendia, nada queria, nada compreendia, cega de sentimentos. Apenas, fazia, os
outros sentirem o cheiro da cruz. O aperto no coração, entre ave-marias e padre nosso. A comadre
falou, que teria morrido exatamente na hora que se encontrava na igreja. Solidão,
distanciamento das pessoas, a máscara sufocante, tapando a reza, tapando a respiração,
tapando a vida. Tapando a morte.
A moça vestia seu melhor short. Cheio de rasgões que deixavam ver pedaços de pele mais alva, pedaços de tatuagens, que fizera escondido da
mãe. A ponta de uma flecha que mais parecia um falo peniano, um rabo de peixe, algumas pétalas de flor. A pele naquelas nesgas, por não receber luz
solar como as demais partes do corpo, mais clara. O cabelo, vontade de pegar, de
cheirar. Sentir sua maciez, sua textura, seu sabor de abacate e avelãs,
anunciado no xampu que usava. Aproximaria seu rosto, sua boca, perto da
orelha dela. O quente de sua respiração, descendo pelo seu pescoço. Um beijo na
fronte. Seco, mudo. Malícia quando apenas um sentia, acabava tornando-se abuso.
O aparelho móvel de telefonia, insistentemente tocava. Porém, ninguém ouvia, ninguém
sentia-o, ninguém atendia-o. Se ao menos alguém olhasse para o aparelho, perceberia a
luz emanada dele, a vibração. Quem sabe, o amigo que partira,
querendo despedir-se, dos amigos, da família. A hora registrada acusaria isso. Alguém
atenda esse telefone, por favor! Ninguém atendeu. Gravou uma mensagem de voz. Comovido disse
que sua hora havia chegado, sentia isso, uma luz muito intensa estava vindo da
parte de cima, não era nada físico. Não tinha nada a ver com as luzes do
hospital. Não cegava, não emanava calor. A respiração antes ofegante, foi se
tornando algo que não mais lhe pertencia. Pediu a enfermeira o aparelho de
telefonia móvel emprestado. Queria despedir-se da esposa, dos filhos. Não
conseguindo, apelou para um homem negro, vestido num terno branco, que
estava ao lado da cama. Emprestou-lhe seu aparelho, que de tanta luz, mais
parecia uma lanterna ligada. Aproveitou pra se despedir de todo mundo. Mandou
que cada um se cuidasse. A paz que estava sentindo era tanta, que não sabia se
queria ficar.
O caminhão do lixo, com sua
betoneira magicamente colorida, porém, fedida. Ia exalando cheiro ruim,
no leito da via urbana. No colo do avô, o bebê ficou admirando, enquanto o comboio passava. Os olhos pretos, brilhantes captavam o mundo, aprendia algo
mais. Humanamente maquinal, os homens recolhiam os sacos de lixo nas calçadas,
nas portas das casas. Homens com macacões alaranjados, cheio de adesivos de
cores berrantes. Pareciam robôs, desses que os laboratórios de cibernéticas
fabricam e logo descartam por considerarem inadequados. Abruptos, brutos,
engonçados. Bebê, velho, homens, rua, lixo, tempo de pandemia, vivendo,
morrendo, aprendendo.
A rua molhada, os olhos molhados nada
proposital, nem era pra combinar com a rua. Era saudade mesmo. Outra vez,
lembrou da mãe. O choro vinha contido, uma dor como de um machucão sarado, que
se machucava novamente. O dia muito
down, as coisas tão brown. Se algum dia tivesse que lembrar daquele dia, tudo
apareceria em tons marrons. O chão da estrada, o tronco da mangueira, o
telhado, os saguis. As pessoas que passavam na rua, e que não conhecia. E mesmo os vizinhos, o caixa do
mercadinho, o açougueiro, o burro, o cachorro, o pardal que pousou no beiral do
telhado. Quer dizer-me alguma coisa passarinho? Por que me olhas assim? Tudo tão marrom, tão frio, tão inverno. Um dia ideal pra se viver. Um dia tão ideal pra morrer.
Ser as pessoas soubessem,
tentariam, ao menos tentariam, fazer de outra maneira. A neta, disse ao avô,
ficara sabendo, pela internet, que no final daquele mês, do céu desceria um cavaleiro, que iria
matar metade do povo do mundo. Estava curiosa: será que o cavalo teria asas, vô?
Seria de carne e osso, ou de ferro e lata? Precisava checar debaixo da cama, se
estava limpo ali. Era pra lá que iria no dia que viesse, o cavaleiro. Providenciaria
pra que alguns amigos estivessem em sua companhia, Amora sua cadela de pelúcia, um
unicórnio azul chamado Celeste.
Fabio Campos, 16 de Maio de 2021.
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