DIA ASSIM, TÃO DOWN... Da Série PAN-PASC 2021.


 

A tristeza dos dias, multiplicada pela ceifa de vidas com a pandemia. Um dos mais triste dia que vivera, foi o dia que sua mãe partiu. O trauma ocorrera, um pouco antes do início da virose. Estaria vivendo, naquele momento, outra grande perda. Um amigo, se fora. O céu carregado de nuvens, uma constante, um aviso, um presságio. Sempre, sempre perguntava: céu, tem algo a dizer-me? Ele porém, permanecia calado. As chuvas ficavam rodeando, rodeando, trazendo seu vento frio, sua cor cinza de coisas frias, queimadas, molhadas de tristeza. Corria por detrás da serra. E de surpresa pegava-o, a caminho do mercado no início da rua, a comprar mantimentos.

A igreja, ávida de silêncio, de sepulcrais velas choronas. Cheia de rezas sussurradas, silvo abafados escapados dos lábios, trêmulos. Escondidos pelas máscaras. O brilho emanado dos lustres, indo refletir-se nas pedras polidas, no fosco verniz que cobria os santos. A madeira aparelhada das bancas, nada entendia, nada queria, nada compreendia, cega de sentimentos. Apenas, fazia, os outros sentirem o cheiro da cruz. O aperto no coração, entre ave-marias e padre nosso. A comadre falou, que teria morrido exatamente na hora que se encontrava na igreja. Solidão, distanciamento das pessoas, a máscara sufocante, tapando a reza, tapando a respiração, tapando a vida. Tapando a morte.

A moça vestia seu melhor short. Cheio de rasgões que deixavam ver pedaços de pele mais alva, pedaços de tatuagens, que fizera escondido da mãe. A ponta de uma flecha que mais parecia um falo peniano, um rabo de peixe, algumas pétalas de flor. A pele naquelas nesgas, por não receber luz solar como as demais partes do corpo, mais clara. O cabelo, vontade de pegar, de cheirar. Sentir sua maciez, sua textura, seu sabor de abacate e avelãs, anunciado no xampu que usava. Aproximaria seu rosto, sua boca, perto da orelha dela. O quente de sua respiração, descendo pelo seu pescoço. Um beijo na fronte. Seco, mudo. Malícia quando apenas um sentia, acabava tornando-se abuso.

O aparelho móvel de telefonia, insistentemente tocava. Porém, ninguém ouvia, ninguém sentia-o, ninguém atendia-o. Se ao menos alguém olhasse para o aparelho, perceberia a luz emanada dele, a vibração. Quem sabe, o amigo que partira, querendo despedir-se, dos amigos, da família. A hora registrada acusaria isso. Alguém atenda esse telefone, por favor! Ninguém atendeu. Gravou uma mensagem de voz. Comovido disse que sua hora havia chegado, sentia isso, uma luz muito intensa estava vindo da parte de cima, não era nada físico. Não tinha nada a ver com as luzes do hospital. Não cegava, não emanava calor. A respiração antes ofegante, foi se tornando algo que não mais lhe pertencia. Pediu a enfermeira o aparelho de telefonia móvel emprestado. Queria despedir-se da esposa, dos filhos. Não conseguindo, apelou para um homem negro, vestido num terno branco, que estava ao lado da cama. Emprestou-lhe seu aparelho, que de tanta luz, mais parecia uma lanterna ligada. Aproveitou pra se despedir de todo mundo. Mandou que cada um se cuidasse. A paz que estava sentindo era tanta, que não sabia se queria ficar.

O caminhão do lixo, com sua betoneira magicamente colorida, porém, fedida. Ia exalando cheiro ruim, no leito da via urbana. No colo do avô, o bebê ficou admirando, enquanto o comboio passava. Os olhos pretos, brilhantes captavam o mundo, aprendia algo mais. Humanamente maquinal, os homens recolhiam os sacos de lixo nas calçadas, nas portas das casas. Homens com macacões alaranjados, cheio de adesivos de cores berrantes. Pareciam robôs, desses que os laboratórios de cibernéticas fabricam e logo descartam por considerarem inadequados. Abruptos, brutos, engonçados. Bebê, velho, homens, rua, lixo, tempo de pandemia, vivendo, morrendo, aprendendo.

 A rua molhada, os olhos molhados nada proposital, nem era pra combinar com a rua. Era saudade mesmo. Outra vez, lembrou da mãe. O choro vinha contido, uma dor como de um machucão sarado, que se machucava novamente.  O dia muito down, as coisas tão brown. Se algum dia tivesse que lembrar daquele dia, tudo apareceria em tons marrons. O chão da estrada, o tronco da mangueira, o telhado, os saguis. As pessoas que passavam na rua, e que não conhecia. E mesmo os vizinhos, o caixa do mercadinho, o açougueiro, o burro, o cachorro, o pardal que pousou no beiral do telhado. Quer dizer-me alguma coisa passarinho? Por que me olhas assim? Tudo tão marrom, tão frio, tão inverno. Um dia ideal pra se viver. Um dia tão ideal pra morrer.

Ser as pessoas soubessem, tentariam, ao menos tentariam, fazer de outra maneira. A neta, disse ao avô, ficara sabendo, pela internet, que no final daquele mês, do céu desceria um cavaleiro, que iria matar metade do povo do mundo. Estava curiosa: será que o cavalo teria asas, vô? Seria de carne e osso, ou de ferro e lata? Precisava checar debaixo da cama, se estava limpo ali. Era pra lá que iria no dia que viesse, o cavaleiro. Providenciaria pra que alguns amigos estivessem em sua companhia, Amora sua cadela de pelúcia, um unicórnio azul chamado Celeste.

Fabio Campos, 16 de Maio de 2021.   

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