MÃE, DEIXA ISSO AÍ! Da Série PAN-PASC 2021


 

Era um tempo muito velho. Desses que o céu fica triste só de ouvir contar. As roças de milho e de algodão, vinham parar atrás dos terreiros da casa do sítio. Abóbora, melancia, umbu, uma mão de milho, um cozinhado de feijão de corda, uma cuia de feijão de arranca. Essas coisas chegavam nos balaios, nas arupembas, nos embornais. Trazido na cabeça, nos caçuás dos jumentos, nos lastros dos carros de boi. Trazidos por um povo, da cor da terra que a galinha ciscava em busca de um trisco de cereal, ou uma proteína da minhoca. Num tempo em que as horas, era compreendida no relincho do jegue. Mas percebida mesmo com precisão, era a do sol. Na sua imponente trajetória pelos caminhos, trançado de berduega, de rasga-beiço, de pega-pinto. O Ouricuri verdinho no cacho, ou arrotado pelo gado semeava os encostos das veredas.

Mãe, deixa isso aí, que eu lavo. Senta aí. A filha fazia questão que a mãe se sentasse, ainda agora, chegara da roça e queria já se debruçar numa pedra, pra lavar a louça do café da manhã. Intencionava iniciar o preparo do almoço. Xô galinha! E o diálogo de uma pessoa só, recheado de impropérios, se descerrava contra a invasão dos galináceos ao ambiente culinário. A casa era de taipa, os móveis resumia-se a uma mesa, meia dúzia de tamboretes, e umas cadeiras. As vasilhas, os utensílios domésticos se distribuíam pelos cantos do cômodo, dependurados nos caibros negros de fumo, da acanhada tapera. A luz frugal vinha do fogão à lenha, também da janela lateral.

Mãe, deixa isso aí, que eu ajunto! O rádio, ligado, a dizer o que bem entendia, sem de fato ser ouvido. Uma modinha sertaneja acompanhada do som de uma sanfona fluía pelo oitão. Umas dez cuias de feijão de arranca, estendida em cima dumas esteiras de palha. O sol, no firmamento azul, se demoraria ainda um pouco mais, antes de  declinar, pras bandas donde se põe. A hora de recolher a leguminosa, era depois do terço da misericórdia, que era rezado as três horas da tarde, em ponto. A mãe esquecida, e vexada nos afazeres queira tirar antes da hora. Casteado foi nos tanques buscar um caminho d’água. Seria bom se resolvesse tomar um banho, e tirar aquela inhaca de rabujo de jumento. Maria e José, de Zefinha, ao perceberem que passava do meio dia, largava as enxadas e estrovengas no pé de trapiá no aceiro da roça. E se punha a caminho da casa de mãe. Se lá nada encontrasse. Tomava cada um caneco d’água, e partiam pra casa de vó, que ficava umas dez braças de distância dali.

Mãe, deixa isso aí que eu faço! Urubu, ô que ave agourenta, meu Deus!  Não tinham nada que ficarem sobrevoando o terreiro. Na certa isso era pra ver, se conseguia um pinto desgarrado da mãe, uma galinha doente, com gogo. Na pior das hipóteses, um ovo pra beber. A goiabeira, chamada de pé de goiaba! Tava que tava garregada de frutos! Tudo “de vez”, que é quando nem tá maduro, nem verde. Se os netos chegassem ali, a bagaceira estava feita! Derrubavam tanta folha, mas tanta folha que chegava a ter pena do pé de goiaba. O mês era maio, tempo duma segunda safra. Mamoeiro era chamado um pé de mamão! Nasceu quase rente ao oitão da casa, foi onde Jacinta e Lúcia comeram um fruto e deixaram lá as sementes, e Deus fez o que tinha de ser feito.

Seu Tomaz na barbearia, conversava conversa de barbeiro, concentrado no seu ofício, mais ouvia do que falava. Tendo na cadeira de fígaro o seu cliente de cabelo e barba, Enéas, que por sinal, era primo legítimo da sua esposa Amância. E que trazia na cabeça, gravado e bem decorado, os Santos Evangelhos de nosso Senhor Jesus Cristo. Tinha tudinho, palavra por palavra, na ponta da língua. Saber ler, sabia, mas era muito pouco. O que deu pra aprender com sua prima Dineusa professora, aprendeu. A vida de casado, foi todinha lendo a bíblia, até que um dia ficou viúvo. E cria que Deus tivesse recebido e acomodado numa de usas moradias Terezinha sua fiel companheira. As sagradas escrituras era tema principal, entremeado de fuxicos, da vida alheia. Pra cada deslize cometido no mundo real, havia uma citação bíblica para sublinhar. Se ninguém tivesse matado ninguém, nem morrido de morte morrida. Se nenhum ladrão tivesse da polícia levado umas lapadas no meio da rua, e ter que gritar bem alto: Eu sou ladrão de galinha! Eu roubei galinha, e fui vender ao doutor juiz! Aí sim, se falava sobre São Mateus e os três evangelistas, com muita ênfase. Enquanto durasse, a barba a ser escanhoada, o corte do cabelo.

Mãe, deixa que eu faço! Olha a hora! Deixa que eu vou moer, o milho pra senhora! O milho, já os grãos inchados, túrgidos de água dentro da bacia. O cuscuz do jantar à caminho. Tá na hora do Santo Ofício, o rosário, a senhora lembra onde deixou? Claro que lembrava. Com certeza, estava, ou no cabide dos chapéus, ou na mesinha da penteadeira junto com os pentes e prizilhas, ao lado da camarinha, no quarto. Não estava em nenhum desses lugares. Havia esquecido, lá na casinha, nos fundos do terreiro, pendurou numa das palhas de coqueiro que compunha a rústica construção, para o banho, e necessidades fisiológicas. Esqueceu que o Ofício não precisava do rosário. E a oração começava. “Agora lábios meus dizei e anuncia/os grandes louvores da Virgem Mãe de Deus” O livrinho gasto, na mão, a reza na boca, o pensamento na moeda de milho.

Mãe, deixe isso assim mesmo! Pai, depois dá um jeito. Tentava dar um jeito na bica, que pendida precisava de reparos. No canto enferrujado, quando chovia, pingava bem em cima do batente da janela, e respingava no pote, no pratinho com os copos. Era a única coisa que conseguia fazer, dentro das suas limitações, do afastamento que a vida rude lhes impunha. Perdera a conta das vezes que chorou, engolindo o choro nos lençóis para não ser ouvida. E se ouviam, dizia que estava gripada. Os relatos da mãe, do tempo de menina, de cortar coração, seus pais eram índios. E não aguentando mais ouvir, saía para o terreiro, se afastava deixando-a sozinha, com as suas lembranças, que nem gosto amargo tinham mais, de tão velhas. Passar sede, não se alimentar por um dia, isso encaliçara seu corpo. Como que preparando para o que seria parte de sua natureza.

Mãe deixa isso aí! Sonhou um sonho assim. Conversava com ela. A senhora e eu estamos no céu, mãe. Não precisa se preocupar mais com nada! Nem com essas plantas, crescendo aí no meio do caminho, tem anjos pra ajeitar isso. Vamos nos abraçar, passear, andar pelos jardins. Enquanto eu seguro a sua mão, coisa que só fazia quando era pequena. Fui crescendo, e ficamos ranzinzas de amor. Acariciar meu rosto, como a senhora fazia, com sua mão cascuda, do duro trabalho na roça. E que passava bem de leve pra não arranhar o rosto de criança. Vamos, Vamos! Aproveitar, tudo que nunca tivemos tempo, nem coragem de fazer, lá embaixo.

Fabio Campos, 08 de Maio de 2021.

 

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