Era um tempo muito velho. Desses
que o céu fica triste só de ouvir contar. As roças de milho e de algodão, vinham
parar atrás dos terreiros da casa do sítio. Abóbora, melancia, umbu, uma mão de
milho, um cozinhado de feijão de corda, uma cuia de feijão de arranca. Essas
coisas chegavam nos balaios, nas arupembas, nos embornais. Trazido na cabeça, nos
caçuás dos jumentos, nos lastros dos carros de boi. Trazidos por um povo, da
cor da terra que a galinha ciscava em busca de um trisco de cereal, ou uma
proteína da minhoca. Num tempo em que as horas, era compreendida no relincho do
jegue. Mas percebida mesmo com precisão, era a do sol. Na sua imponente
trajetória pelos caminhos, trançado de berduega, de rasga-beiço, de pega-pinto.
O Ouricuri verdinho no cacho, ou arrotado pelo gado semeava os encostos das
veredas.
Mãe, deixa isso aí, que eu lavo.
Senta aí. A filha fazia questão que a mãe se sentasse, ainda agora, chegara da
roça e queria já se debruçar numa pedra, pra lavar a louça do café da manhã. Intencionava
iniciar o preparo do almoço. Xô galinha! E o diálogo de uma pessoa só. Recheado
de impropérios, se descerrava contra a invasão dos galináceos ao ambiente
culinário. A casa era de taipa, os móveis resumia-se a uma mesa, meia dúzia de
tamboretes, e umas cadeiras. As vasilhas, os utensílios domésticos se distribuíam
pelos cantos do cômodo, dependurados nos caibros negros de fumo, da acanhada tapera.
A luz frugal vinha do fogão à lenha, também da janela lateral.
Mãe, deixa isso aí, que eu ajunto!
O rádio, ligado, a dizer o que bem entendia, sem de fato ser ouvido. Uma
modinha sertaneja acompanhada do som de uma sanfona fluía pelo oitão. Umas dez
cuias de feijão de arranca, estendida em cima dumas esteiras de palha. O sol,
no firmamento azul, se demoraria ainda um pouco mais, antes de declinar, pras bandas donde se põe. A hora de
recolher a leguminosa, era depois do terço da misericórdia, que era rezado as
três horas da tarde, em ponto. A mãe esquecida, e vexada nos afazeres queira tirar
antes da hora. Casteado foi nos tanques buscar um caminho d’água. Seria bom se
resolvesse tomar um banho, e tirar aquela inhaca de rabujo de jumento. Maria e
José, de Zefinha, ao perceberem que passava do meio dia, largava as enxadas e
estrovengas no pé de trapiá no aceiro da roça. E se punha a caminho da casa de
mãe. Se lá nada encontrasse. Tomava cada um caneco d’água, e partiam pra casa
de vó, que ficava umas dez braças de distância dali.
Mãe, deixa isso aí que eu faço! Urubu,
ô que ave agourenta, meu Deus! Não tinham
nada que ficarem sobrevoando o terreiro. Na certa isso era pra ver, se
conseguia um pinto desgarrado da mãe, uma galinha doente, com gogo. Na pior das
hipóteses, um ovo pra beber. A goiabeira, chamada de pé de goiaba! Tava que
tava garregada de frutos! Tudo “de vez”, que é quando nem tá maduro, nem verde.
Se os netos chegassem ali, a bagaceira estava feita! Derrubavam tanta folha,
mas tanta folha que chegava a ter pena do pé de goiaba. O mês era maio, tempo
duma segunda safra. Mamoeiro era chamado um pé de mamão! Nasceu quase rente ao
oitão da casa, foi onde Jacinta e Lúcia comeram um fruto e deixaram lá as
sementes, e Deus fez o que tinha de ser feito.
Seu Tomaz na barbearia, conversava
conversa de barbeiro, concentrado no seu ofício, mais ouvia, do que falava.
Tendo na cadeira de fígaro o seu cliente de cabelo e barba, Enéas, que por sinal,
era primo legítimo da sua esposa Amância. E que trazia na cabeça, gravado e bem
decorado, os Santos Evangelhos de nosso Senhor Jesus Cristo. Tinha tudinho,
palavra por palavra, na ponta da língua. Saber ler, sabia, mas era muito pouco.
O que deu pra aprender com sua prima Dineusa, professora, aprendeu. A vida de
casado, foi todinha lendo a bíblia, até que um dia ficou viúvo. E cria que Deus a tivesse recebido e acomodado numa de usas moradias Terezinha sua fiel
companheira. As sagradas escrituras era tema principal, entremeado de fuxicos,
da vida alheia. Pra cada deslize cometido no mundo real, havia uma citação
bíblica para sublinhar. Se ninguém tivesse matado ninguém, nem morrido de morte
morrida. Se nenhum ladrão tivesse da polícia levado umas lapadas no meio da
rua, e ter que gritar bem alto: Eu sou ladrão de galinha! Eu roubei galinha, e
fui vender ao doutor juiz! Aí sim, se falava sobre São Mateus e os três
evangelistas, com muita ênfase. Enquanto durasse, a barba a ser escanhoada, o corte
do cabelo.
Mãe, deixa que eu faço! Olha a
hora! Deixa que eu vou moer, o milho pra senhora! O milho, já os grãos
inchados, túrgidos de água dentro da bacia. O cuscuz do jantar à caminho. Tá na
hora do Santo Ofício, o rosário, a senhora lembra onde deixou? Claro que
lembrava. Com certeza, estava, ou no cabide dos chapéus, ou na mesinha da
penteadeira junto com os pentes e prizilhas, ao lado da camarinha, no quarto.
Não estava em nenhum desses lugares. Havia esquecido, lá na casinha, nos fundos
do terreiro, pendurou numa das palhas de coqueiro que compunha a rústica
construção, para o banho, e necessidades fisiológicas. Esqueceu que o Ofício
não precisava do rosário. E a oração começava. “Agora lábios meus dizei e
anuncia/os grandes louvores da Virgem Mãe de Deus” O livrinho gasto, na mão, a
reza na boca, o pensamento na moenda de milho.
Mãe, deixe isso assim mesmo! Pai, depois dá um jeito. Tentava dar um jeito na bica, que pendida precisava de
reparos. No canto enferrujado, quando chovia, pingava bem em cima do batente da
janela, e respingava no pote, no pratinho com os copos. Era a única coisa que conseguia fazer, dentro das suas limitações, do afastamento que a vida rude lhes impusera. Perdera a conta das vezes que chorou, engolindo o choro nos lençóis para não ser ouvida. E se alguém ouvia e a questionava, dizia que estava gripada. Os relatos da mãe, do tempo de menina, de cortar coração, seus pais eram índios. E não aguentando mais ouvir, saía para o terreiro, se afastava deixando-a sozinha, com as suas lembranças, que nem gosto amargo tinham mais, de tão velhas. Passar sede, não se alimentar por um dia, isso encaliçara seu corpo. Como que preparando para o que seria parte de sua natureza.
Mãe deixa isso aí! Sonhou um
sonho assim. Conversava com ela. A senhora e eu estamos no céu, mãe. Não
precisa se preocupar mais com nada! Nem com essas plantas, crescendo aí no meio do
caminho, tem anjos pra ajeitar isso. Vamos nos abraçar, passear, andar pelos
jardins. Enquanto eu seguro a sua mão, coisa que só fazia quando era pequena. Fui
crescendo, e ficamos ranzinzas, de amor. Acariciar meu rosto, como a senhora
fazia, com sua mão cascuda, do trabalho duro na roça. E que passava bem de leve
pra não arranhar o rosto de criança. Vamos, Vamos! Aproveitar, tudo que nunca, lá embaixo, tivemos tempo, nem coragem de fazer.
Fabio Campos, 08 de Maio de 2021.
Nenhum comentário:
Postar um comentário