NA TARDE, DE CHUVA. Da Série PAND-PASC-2021


 O lago estava lá, sabia que eles viriam, tinha plena certeza disso. Nenhum deles vivia sem ele. Sondava a vida de cada um. Tornaram-se dependentes, um do outro. Magnífico cenário, pano de fundo, do vício, o lago o era. A mulher lavadeira, o pescador de pitú, os girinos, a cobra, o lagarto, não passavam de intrusos. O vaqueiro ia dar de beber água ao gado. Aproveitava pro banho, juntos, homem e cavalo. Os meninos, ao cair da tarde, viriam depois da escola. Jamais perdiam o encontro, da tardinha.

O homem, de paletó, conversava na calçada com uma mulher, uma amiga da sua mãe. Precisava seguir, mas a conversa esticada da mulher o impedia. Lembrou daquele dia que estava no banco, a moça bonita, pediu-lhe ajuda. A chave do carro onde deixara? Pronto, era sempre assim, toda vez que se inventava de ajudar alguém, um imprevisto ocorria. Um olhar malicioso, esticado para a blusa da moça, cuidadosamente guardando seus lindos seios. A moça, a pressa, os seios perfeitos. Não podia negar a ajuda. Estava atrasado, precisava ir. Onde será que deixara a chave do carro? O tempo todo ali no porta-luvas, não viu quando caiu. O trânsito intenso, tentaria evitar, indo por ruas transversais. A insistência do menino de rua, por uma moeda. Um mendigo sentado na esquina, encostado no poste silenciosamente, nada pedia. Se alguém quisesse dar-lhe algo que desse. A barba negra, o velho chapéu, as botas furadas, sujo, fedido. Um Jesus atirado às moscas.

A menina encontrou um caderno que julgava perdido. Dentro, havia uma mensagem para a mãe, do dia das mães do ano passado. Serviria para aquele ano, bastava apagar a data. Jamais faria isso. Os olhos enchiam de lágrimas, só de pensar, o quanto era feliz quando fez aquela mensagem. Não entendia porque tornaram-se tão distantes. Tão ocupadas que não podiam dar, uma a outra, a atenção que tanto necessitavam. Negligenciava os cuidados de higiene, por puro desleixo. Quem sabe, pra chamar a atenção. A mãe se irritava. Vá tomar banho! Lave esse cabelo! Escove estes dentes! Limpe esses ouvidos. Queria tanto apenas ouvir um: “Filha eu te amo”. Provocava, a resposta vinha em forma de cobranças.

O moço, trocara o traje de advogado, por camiseta e bermuda colorida. Parou o carro próximo a margem do lago. Desceram, numa alegre conversa. Ele, alguns amigos. Acendeu um cigarro, o fumo se esvaiu, na imensidão azul, na folhagem verdinha do pé de umbu, quase sem frutos. A caatinga no mês de maio exibia toda sua exuberância em tons de verde. O céu tinha uma lua, docemente flutuante, feito uma pena de pato branco. As galinhas d’água emitiam seus piados, enquanto passavam, num voo rasante sobre o espelho do lago. O gravador cassete, dava tudo que tinha de seu som, numa música de Raul Seixas que dizia: “Eu devia estar feliz porque consegui comprar um corcel 73”. Os amigos, tendo a montanha gigante como testemunha, firmaram um pacto de voltarem lá. Quando estivessem todos com sessenta anos. Dali, a quarenta anos. As garrafas de cerveja espirravam mais forte, a cada vez que eram abertas. O violão sujo de farofa. O toca-fitas precisaria de pilhas novas para que Tim Maia continuasse pedindo motivos e completando: “Melhor assim”.  O jovem rábula, ele porém, nunca mais retornaria ali. Jamais poderia cumprir a promessa. Debaixo d’água, de olhos abertos, sem vida, contemplava o céu rubro e azul, do cair da tarde.

O vento que soprou lá do sul, afastou os amigos. Para longe, bem longe. Teve deles que rodeou o mundo, Roma, Berlim, Amsterdã. Batia ponto na receita federal. Outro, com um tiro no ouvido, suicidou-se. Outros, que nunca tiraram os pés de dentro do lago, pescavam sua vivência, a sobrevivência. E o céu anunciou temporal, limpou-se em tons de azul tantas vezes que até as pedras envelheceram. O azul de então, não era mais um azul celeste, rabiscando de nuvens negras, não demoraria, desabariam. Saiu rodeando, rodeando. Pra despencar nos quintais, nos oitões dos casebres, enchendo de pingueiras o abrigo das galinhas, o curral do gado, o balaio de cipó, a baia dos porcos. As galinhas protegeriam os pintos, nos seus instintos de sobrevivência, enquanto houvesse a trovoada.

O homem, parou o carro na margem do lago. Estava sozinho. Chovia, os pingos no para-brisa, parecia um choro, de uma recordação que vinha. Dentro do automóvel, a música o levava pra um tempo lá atrás, que jamais voltaria. O tempo de agora, pandemia viral, e o que imperava era o medo, dos homens pelos homens. Esperou a chuva se ir. A montanha, continuava lá. Molhada, lhe olhando. O cantor, no som estéreo falava de amor, um amor não correspondido, e  outra vez pedia: "Me dê motivos". Por fim dizia: “Melhor assim”. De repente, o céu, começou a se descortinar, afastando, pra longe o aguaceiro, a tristeza, a solidão. Como se adivinhasse que o céu se abria, a música, agora falava das praias do Brasil “Angra dos Reis e Ipanema, Iracema Itamaracá/ Pois bem cheguei!”

Fabio Campos, 01 de Maio de 2021.

 

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