O homem, de paletó, conversava na
calçada com uma mulher, uma amiga da sua mãe. Precisava seguir, mas a conversa
esticada da mulher o impedia. Lembrou daquele dia que estava no banco, a moça
bonita, pediu-lhe ajuda. A chave do carro onde deixara? Pronto, era sempre assim,
toda vez que se inventava de ajudar alguém, um imprevisto ocorria. Um olhar
malicioso, esticado para a blusa da moça, cuidadosamente guardando seus lindos
seios. A moça, a pressa, os seios perfeitos. Não podia negar a ajuda. Estava
atrasado, precisava ir. Onde será que deixara a chave do carro? O tempo todo ali no porta-luvas, não viu quando caiu. O trânsito
intenso, tentaria evitar, indo por ruas transversais. A insistência do menino
de rua, por uma moeda. Um mendigo sentado na esquina, encostado no poste
silenciosamente, nada pedia. Se alguém quisesse dar-lhe algo que desse. A barba
negra, o velho chapéu, as botas furadas, sujo, fedido. Um Jesus atirado às
moscas.
A menina encontrou um caderno que
julgava perdido. Dentro, havia uma mensagem para a mãe, do dia das mães do ano
passado. Serviria para aquele ano, bastava apagar a data. Jamais faria isso. Os
olhos enchiam de lágrimas, só de pensar, o quanto era feliz quando fez aquela
mensagem. Não entendia porque tornaram-se tão distantes. Tão ocupadas que não
podiam dar, uma a outra, a atenção que tanto necessitavam. Negligenciava os
cuidados de higiene, por puro desleixo. Quem sabe, pra chamar a atenção. A mãe
se irritava. Vá tomar banho! Lave esse cabelo! Escove estes dentes! Limpe esses
ouvidos. Queria tanto apenas ouvir um: “Filha eu te amo”. Provocava, a resposta
vinha em forma de cobranças.
O moço, trocara o traje de
advogado, por camiseta e bermuda colorida. Parou o carro próximo a margem do
lago. Desceram, numa alegre conversa. Ele, alguns amigos. Acendeu um cigarro, o
fumo se esvaiu, na imensidão azul, na folhagem verdinha do pé de umbu, quase
sem frutos. A caatinga no mês de maio exibia toda sua exuberância em tons de
verde. O céu tinha uma lua, docemente flutuante, feito uma pena de pato branco.
As galinhas d’água emitiam seus piados, enquanto passavam, num voo rasante
sobre o espelho do lago. O gravador cassete, dava tudo que tinha de seu som, numa
música de Raul Seixas que dizia: “Eu devia estar feliz porque consegui comprar um
corcel 73”. Os amigos, tendo a montanha gigante como testemunha, firmaram um
pacto de voltarem lá. Quando estivessem todos com sessenta anos. Dali, a quarenta
anos. As garrafas de cerveja espirravam mais forte, a cada vez que eram abertas.
O violão sujo de farofa. O toca-fitas precisaria de pilhas novas para que Tim Maia
continuasse pedindo motivos e completando: “Melhor assim”. O jovem rábula, ele porém, nunca mais
retornaria ali. Jamais poderia cumprir a promessa. Debaixo d’água, de olhos
abertos, sem vida, contemplava o céu rubro e azul, do cair da tarde.
O vento que soprou lá do sul,
afastou os amigos. Para longe, bem longe. Teve deles que rodeou o mundo,
Roma, Berlim, Amsterdã. Batia ponto na receita federal. Outro, com um tiro no ouvido, suicidou-se. Outros, que nunca tiraram os pés de dentro do lago,
pescavam sua vivência, a sobrevivência. E o céu anunciou temporal, limpou-se em tons de
azul tantas vezes que até as pedras envelheceram. O azul de então, não era mais
um azul celeste, rabiscando de nuvens negras, não demoraria, desabariam. Saiu rodeando,
rodeando. Pra despencar nos quintais, nos oitões dos casebres, enchendo de
pingueiras o abrigo das galinhas, o curral do gado, o balaio de cipó, a baia
dos porcos. As galinhas protegeriam os pintos, nos seus instintos de
sobrevivência, enquanto houvesse a trovoada.
O homem, parou o carro na margem
do lago. Estava sozinho. Chovia, os pingos no para-brisa, parecia um choro, de
uma recordação que vinha. Dentro do automóvel, a música o levava pra um tempo lá
atrás, que jamais voltaria. O tempo de agora, pandemia viral, e o que imperava era o medo, dos homens pelos homens. Esperou a chuva se ir. A montanha, continuava lá. Molhada,
lhe olhando. O cantor, no som estéreo falava de amor, um amor não correspondido, e outra vez pedia: "Me dê motivos".
Por fim dizia: “Melhor assim”. De repente, o céu, começou a se descortinar, afastando,
pra longe o aguaceiro, a tristeza, a solidão. Como se adivinhasse que o céu se
abria, a música, agora falava das praias do Brasil “Angra dos Reis e Ipanema, Iracema
Itamaracá/ Pois bem cheguei!”
Fabio Campos, 01 de Maio de 2021.
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