THOR E ISIS IN Z A NOS 17/08/2025


Monalisa se percebeu dentro de um ônibus. Não lembrava direito como havia chegado ali. Estava, a mais da metade do corredor do coletivo, quase vazio. Além dela, só mais três, talvez quatro passageiros.  Através da janela, via as coisas passando. Árvores, montanhas lá longe, postes, e o fio brincando de ficar, ora esticado, ora flácido, tanto que parecia que ia tocar o chão. Lá no horizonte o céu parecia jovial como no seu tempo de menina. Lembrava com suas ondas loiras de calor, por debaixo das nuvens, os cabelos de uma amiga que tivera na escola. Os meninos a apelidavam de galega sarará, cabelo de milho, desbotada! O que sempre era motivo para uma briga. Muitos anos se passaram até descobrir que Adeilda sofria de albinismo. Aquela tarde tão parecida com a amiga, magra, aparentemente calma, porém, irriquieta, imprevisível. O ônibus parou, era uma estação rodoviária, tudo muito simples, acanhado. A construção de alvenaria, porém muito antiga. Tudo carecia de reparos. Foi ao toalete de paredes ensebadas, azulejo gasto,, enferrujado, tudo ali implorava por reforma, limpeza, urgente.

Monalisa, sentou-se num banco, no salão de espera. Abriu a bolsa, tirou um livro de capa azul, “Gente Pobre” de Dostoiévski, Abriu numa página, onde havia um marcador de página com uma oração de São Miguel Arcanjo. Tudo parecia tão calmo que era possível se ouvir o silêncio, passando junto a brisa suave, da tarde galega. Dava para ouvir uma mosca voando em direção ao seu braço, subiu rapidamente a sua orelha, a cabeça, o lábio. Instintivamente afastou com nojo do inseto. Sentado noutro banco, logo adiante, em atitude de espera, um camponês. Um imenso chapéu de palha na cabeça, óculos escuro, rodeado de apetrechos, um saco contendo quinquilharias. Uma gaiola sem nenhuma ave aprisionada, uma enxada, uma estrovenga. O roceiro ligou um rádio de pilhas, que trazia ao colo. Uma moda sertaneja saiu voando, enchendo os espaços. Dando algum sentido aquela tarde.

Estirado no chão, Thor, no meio terreiro, rosto pontilhado de areia. A poeira grudara no suor que lhe escorria. O semideus, filho de Zeus acabara de levar um tremendo golpe de colossal cimitarra, ardente em chamas, da deusa Íris, que o pegou de surpresa. Do nada aparecera montada em Pégassus, seu cavalo alado. A rainha tentava destruir o filho do seu maior rival. Afinal, ele havia invadido seu território em busca da tão cobiçada pedra filosofal, enterrada na caverna do dragão Amon. O martelo de Thor onde teria caído?

Monalisa ouviu um barulho ensurdecedor. Algo descomunal havia provocado aquele estrondo, naquele fim de mundo. Na estação rodoviária naqueles confins aonde Judas perdeu as botas. Pareciam terras mexicanas, talvez os Montes Apalaches, ou os Grand Canyons. Lembrou de casa, lembranças muito fortes da casa paterna vieram. E do nada se plasmou na sua frente, o velho quartinho, onde se guardavam todo tipo de coisas, especialmente as que não se usava mais. A máquina de costura de sua mãe, que um dia, tinha sido de sua vó, uma espingarda soca-tempero, de seu avô, uma cangalha, um alforje de caçador, um par de alpercatas xô-boi, uma touceira de corda velha de agave, um candeeiro de pavio, tantos outros atavios ali se encontravam. No entanto, cada objeto daquele guardava uma história, que era a soma da saga dos Silva Santos. Seu Antonio,  mantinha um garrafão de um destilado artesanal, chamado cachaça de cabeça. E quando lembrava de alguém com quem bebera muitas vezes, e que já não se encontrava no mundo dos vivos, dizia: aquele velho safado foi dormir. Para ele, os que morriam tinham ido dormir. E logo que passasse a ressaca estariam de volta. Com os netos, Seu Antonio desenvolvera uma língua de sinais, pra enganar dona Maria. As guloseimas todas rebatizadas, pirulito virava, "pirú", chocolate, "chocó". Era de uma bruta evidência. No entanto, aquela forma engraçada de comunicação, de reduzir os vocábulos, podia se estender a outros itens, jacaré reduzido a "jacá", rinoceronte, em "rinó".  

Monalisa levantou-se do banco em que se encontrava. Lembrava da filha que um dia teria, e o mundo que esperava que ela vivesse, naturalmente desejava, que fosse melhor que aquele vivido por Makar Diévuchkin e Várvara Aleksieevna, no subúrbio de St Petersburgo, na Rússia. A música melancólica a seguia, dizendo no miado do fole chorador, da paixão incontida do sertanejo, carente de voltar pra sua terra. 

A tarde agalegada, meio americanizada, acabara de ganhar, após magnífico estrondo, um rolo de fumo que subia e subia enegrecendo de fuligem, a pele limpa e alva da tarde.

Lá, no fundo dos olhos azuis de Monalisa, refletiu-se o que seu semblante perplexo contemplava, o gigantesco martelo de Thor fincado no teto da garagem da estação.        



 

Nenhum comentário:

Postar um comentário